Momentos económicos… e não só

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sobre a discussão do Relatório Gulbenkian na Assembleia da República

Teve ontem, dia 12 de maio, lugar uma sessão de apresentação e debate do relatório da Gulbenkian “Um Futuro para a Saúde- todos temos um papel a desempenhar” no Senado da Assembleia da República, onde os principais partidos apresentaram as suas posições.

Antes de dar conta do que retive das posições apresentadas em detalhe, há vários aspectos que se devem referir. O relatório tem a proposta do que na versão inglesa se chama “compact for health”, e que em português fica “pacto”. Pacto tem uma conotação mais forte, a meu ver, do que é necessário alcançar – o que é preciso conseguir é uma visão partilhada e comum, com princípios, valores e objectivos gerais. Não é assinar uma política comum de saúde para os próximos 25 anos, é assumir objectivos, que podem ser alcançados de várias formas, com margem para diferentes políticas de cada um. E pareceu-me que esses princípios são em grande medida comuns, com diferenças na importância relativa de alguns objectivos e sobretudo nos “instrumentos”. Fiquei com a sensação de apenas o combate político em tempo de eleições impedir que se consiga essa visão partilhada a 25 anos.

Pontos gerais de consenso: disponibilidade para pensar num horizonte alargado, Serviço Nacional de Saúde como elemento central sem que isso signifique eliminar o sector privado do sistema de saúde português (a extensão do sector privado é um dos pontos de diferença), maior participação dos cidadãos (o que significa exactamente também terá diferenças).

Mas vamos aos pontos (telegráficos) de cada intervenção (o que deles retive, naturalmente), tentando ser fiel ao que cada pessoa disse:

Helena Pinto (Bloco de Esquerda)

  • importância de melhorar as condições de saúde e as condições de vida, expressando preocupação com o agravamento das desigualdades sociais cujo aumento afecta as condições de saúde
  • não rejeita trabalhar num horizonte temporal mais alargado, embora não se possam ignorar as necessidades urgentes dos dias que correm
  • colocar o SNS no centro das políticas de saúde
  • a participação dos cidadãos deve permitir que estes tenham uma palavra a dizer sobre como organizar toda a prestação de cuidados de saúde (expressou preocupações quanto a restrições à carta de direitos do utente)
  • defesa das equipas multidisciplinares
  • ir mais longe nos desafios: quantificar e dar meios, não serem apenas projectos, com referência ao que é proposto no relatório
  • realce ao papel dados às autarquias
  • no financiamento do SNS, defesa do uso exclusivo do Orçamento do Estado, rejeitando introduzir pagamentos na prestação e defendendo eliminar os que já existem
  • o financiamento das unidades de saúde deve ser feito com base nas suas necessidades
  • recusar que o Estado saia da prestação de cuidados de saúde; o sector privado é complementar e suplementar, não concorrencial
  • – actualmente, o sector da saúde não colhe a confiança dos cidadãos.

Paula Santos (PCP)

  • A saúde como parte da democracia social
  • Serviço Nacional de Saúde e não sistema de saúde (redução do papel do sector privado)
  • aspecto central – prevenção da doença e promoção da doença é um elemento estratégico, é necessário intervir antecipadamente
  • importância da visão de longo prazo
  • participação da comunidade em geral – é um objectivo meritório desde que não seja no sentido de transferência de responsabilidades do Estado
  • relevância do contributo da comunidade na definição das linhas estratégicas
  • mudança de centralidade dos hospitais para os cuidados de saúde primários
  • preocupação com as desigualdades
  • saúde deve ser vista como um investimento
  • a visão economicista não se pode sobrepor à visão clínica

Teresa Caeiro (CDS/PP)

  • salvaguardar o Serviço Nacional de Saúde
  • a importância de mais desafios: demências, papel dos cuidadores informais e cuidados paliativos
  • a importância de como enfrentar o desafio da inovação (incluindo a distinção entre novidade e verdadeira inovação)?
  • não há soluções fáceis e não há soluções únicas
  • não vale a pena fingir que não há problema de sustentabilidade
  • base de envolvimento alargado: prevenção, literária, acesso a informação, envolver também toda a comunidade
  • as questões da saúde serão transversais a várias áreas
  • necessidade de uma visão estratégica a 25 anos

Luisa Salgueiro (PS)

  • melhoria do SNS depende da capacidade dos actores políticos
  • há uma nova dimensão das responsabilidades a dar aos cidadãos – as estratégias para promoção de estilos de vida saudável estarão associadas com uma nova cidadania
  • evolução positiva nos 35 anos do SNS não impede que haja espaço para melhoria
  • relevância da definição de uma estratégia de sustentabilidade
  • é positivo o reforço da saúde pública
  • relevância de aprender para depois generalizar
  • este relatório não critica os limites constitucionais e confia no actual sistema
  • o próximo governo encontrará um SNS fragilizado

Luis Montenegro (PSD)

  • relatório foi elaborado num período de dificuldade acrescida para Portugal
  • o sistema de saúde apresentou resiliência pela dedicação dos profissionais de saúde
  • não colhe a ideia de que o SNS está mais fragilizado hoje
  • atender ao esforço feito para regularizar a dívida, o que foi feito mantendo o essencial do SNS
  • importância do combate às situações de fraude
  • apesar de todas as dificuldades, o SNS conseguiu oferecer mais (melhoria de acesso com mais consultas, internamentos, urgências; evolução da política do medicamento).
  • aumento das isenções das taxas moderadoras
  • fazer o debate sem estar à procura de limitações ideológicas, encarar a evolução do SNS com a distância possível do combate político imediato
  • proposta de um pacto, comprometimento alargado dos partidos políticos, mas também dos cidadãos, autarquias, profissionais de saúde, etc… – ideia que não deve ser desmerecida
  • imperioso garantir estabilidade para que se produzam resultados
  • não há divergências de fundo quando aos grandes objectivos

Paulo Macedo (Ministro da Saúde)

  • o relatório teve o cuidado de conhecer o presente e as tendências para estabelecer o ponto de partida
  • necessidade de um compromisso quanto ao futuro, com um conjunto de princípios que não sejam apenas generalidades
  • temos um SNS de elevada qualidade que presta serviços relevantes e é tido em apreço pela população
  • para o futuro: reduzir a mortalidade precoce, aumentar a qualidade de vida acima dos 60 anos, melhor cuidados informais também potenciais pelas tecnologias de informação, cuidados de proximidade, maior transparência, maior conhecimento dos resultados em saúde, redução das iniquidade
  • primeira iniciativa, redução da infecção hospitalar, está no terreno
  • a prazo, obter custos de infraestrutura mais baixos
  • como aumentar a liberdade de escolha do cidadão?
  • é saudável a diferença entre partidos, dentro de um compromisso global

Guilherme Silva (presidente da sessão, vice-presidente da Assembleia da República)

  • comum a todas as intervenções – contributo positivo do relatório produzido pela Fundação Calouste Gulbenkian
  • necessidade de passos de convergência para uma visão estratégica a 25 anos
Créditos fotográficos: Facebook da deputada Luisa Salgueiro

Créditos fotográficos: facebook


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Os dados do INE e o dia mundial da saúde

O INE publicou a propósito do dia mundial da saúde um destaque e dados referentes a 2013 (os dados encontram-se disponíveis para download para quem os quiser analisar em detalhe). O destaque cobre os anos 2002 e 2013, e merece alguns comentários, até porque várias análises foram surgindo ao longo destes dois dias. Dados podem ser lidos de várias formas, e frequentemente são usados mais como confirmação do que é o ponto de vista de quem os comenta do que para questionar o que é a realidade.

Antes de entrar nos números agora disponibilizados pelo INE é, pois, útil fazer alguma “arrumação mental” de ideias (sem preocupação de exaustividade).

Primeiro, sobre o que é o Serviço Nacional de Saúde: tem duas faces – 1) protecção que é dada, pela garantia de acesso a cuidados de saúde quando for necessário independentemente da capacidade financeira; 2) fornecer esse acesso, ou parte dele, por prestação pública directa desses cuidados de saúde (os equipamentos de saúde do SNS). A protecção pode ser dada incluindo a prestação privada e os pagamentos que o SNS faz para essa protecção. Esse aspecto não é suposto ser tratado aqui. Por isso, não podemos inferir daqui que o SNS não dá a protecção na doença. Dois exemplos: no caso de cuidados hospitalares de elevada tecnologia, a prestação pública está presente de forma dominante; no caso de medicamentos, é a prestação privada que domina – laboratórios farmacêuticos que produzem medicamentos – mesmo que a protecção seja pública (a parte que o SNS enquanto financiado paga dos medicamentos prescritos). Os números agora divulgados pelo INE nada dizem sobre a componente de protecção financeira quando se necessita de cuidados de saúde (o que normalmente se designa por financiamento da saúde). Quem estiver interessado pode encontrar essa informação na Conta Satélite da Saúde, também ela disponibilizada pelo INE.

O que estes números do INE traduzem é a prestação de cuidados de saúde, com a sua combinação público privado. Não se pode inferir automaticamente se o SNS está ou não a funcionar bem na protecção que dá. Apenas se pode analisar o que é a organização da prestação de cuidados de saúde.

Antes de olhar para os valores divulgados, vale a pena relembrar três políticas / evoluções tecnológicas da última década, e as suas implicações para o que devemos encontrar nos dados:

  1. reconhecimento de excesso de recurso às urgências e necessidade de encontrar outras respostas a essas necessidades – deveríamos ver baixar o número de urgências e aumentar o número de consultas programadas, mais consultas nos cuidados de saúde primários;
  2. concentração da actividade de atendimento de urgência para garantir a qualidade técnica no atendimento, e distinguir o que é urgência de consulta não programada – devemos ver uma redução das urgências em unidades de cuidados de saúde primários; uma parte substancial da utilização dos serviços de urgência são na verdades consultas sem marcação prévia e fora de horas.
  3. internamentos – com o aumento das cirurgias de ambulatório, mais convenientes para o doente, e a procura de mecanismos de resposta que evitem internamentos (ver por exemplo aqui a discussão no âmbito do Plano Nacional de Saúde) devemos ver redução do número de  internamentos, se o volume global de intervenções se mantivesse constante.

Os dados do INE o que nos dizem?

a) Redução dos episódios de urgência globalmente no sector público – se as políticas que procuram “desviar” da utilização das urgências para outras formas de atendimento estiverem a ter algum resultado, é o que se devia observar. Não se pode partir imediatamente para a conclusão da falta de resposta. Contudo, não se pode deixar de reparar que houve um aumento da utilização dos serviços de urgência em prestadores privados praticamente do mesmo montante que a redução na utilização dos sector público. Como houve abertura de hospitais privados e como a presença de mais serviços usualmente cria procura para os mesmos, não é claro, dos valores agregados, se houve uma transferência de casos do sector público para o sector privado, ou se houve diminuição nalgumas zonas de utilização das urgências do sector publico compensadas em termos agregados por maior utilização de urgências no sector privado. É provável que haja um pouco de cada efeito, a importância relativa de cada um não se pode retirar dos valores agregados. É igualmente relevante saber se o crescimento das urgências privadas corresponde a consultas não programadas ou a situações de emergência, para conhecer melhor a natureza da necessidade a que estão a dar resposta.

b) uma redução dos locais de atendimento de urgência nos cuidados de saúde primários.  Dadas as políticas anunciadas de concentração de atendimento de urgência, com base em propostas técnicas, estes números estão de acordo com o que seria expectável. O número total de centros de saúde, na contagem do INE, manteve-se praticamente inalterado, tendo-se reduzido o número de centros de saúde com serviços de urgência básica ou serviço de atendimento básico. É a evolução que se esperaria.

c) Foi dado grande destaque ao aumento do número de hospitais privados. Porém, os hospitais privados são, em média, cerca de um quarto dos hospitais públicos. Ou seja, são em média bastante mais pequenos. E nesse aspecto não mudaram muito, mesmo que tenha aumentado o número de hospitais privados a sua dimensão média é muito inferior à dos hospitais públicos. Por outro lado, os valores dos hospitais do sector público (hospitais oficiais na terminologia usada pelo INE) são na verdade estabelecimentos, pois com a criação de centros hospitalares ao longo da última década o número formal de hospitais diminui mas como não houve grandes encerramentos definitivos de estabelecimentos hospitalares e houve aberturas, o número destes manteve-se relativamente constante.

d) Redução de internamentos e redução do número de camas no sector público – temos que ver em conjunto com a cirurgia de ambulatório. Se não houvesse qualquer outro efeito, o desenvolvimento da “tecnologia”, com o aumento das intervenções em ambulatório a substituirem os internamentos (com vantagem para todos) bem como a redução dos tempos médios internamento, devem levar a um redução no número de internamentos, que se observa, e a uma menor necessidade de camas, o que também se observa.  Informação das cirurgias em ambulatório: proporção de casos operados em ambulatório – de 15,5% em 2006 para 53,3% em 2013; de 53 mil em 2006 para 290 mil em 2013 (retirados do último relatório da actividade do SIGIC disponível). Também é possível que haja outras actividades de ambulatório que tenham substituído internamentos além das cirurgias.

Calculo que a questão seja então porque cresceu o sector privado, em termos de hospitais? Há duas hipóteses que me parecem plausíveis, embora não tenha forma de as testar com a informação do destaque do INE. Por um lado, há uma transformação, nesta década, do que é o sector privado. Tem ocorrido uma passagem do consultório privado individual ou em pequenos grupos para a consulta dada a partir de uma actividade mais geral dentro de um hospital privado. Isto faz com que o crescimento da actividade de consultas nos hospitais privados possa ser em parte transferência de consultas que já eram realizadas no sector privado.

Por outro lado, no crescimento dos internamentos no sector privado, a vontade do quarto privado parece ser o factor determinante (são 60% dos internamentos nos hospitais privados, e menos de 1% nos hospitais públicos). Como é vemos essa utilização dos quartos privados?

Globalmente, a leitura do que se passou nos últimos anos pode ser diferente de simplesmente afirmar que o sector privado está a tomar o lugar do Serviço Nacional de Saúde. Há uma evolução do sector privado que tem elementos que o tornam mais visível neste conjunto particular de informação (por exemplo, não sabemos o que sucedeu às consultas nos consultórios privados de pequena dimensão). Há uma evolução do sector público de uma forma que o torna menos visível nestas estatísticas (desenvolvimento de actividade de ambulatório nos hospitais públicos que substituem anteriores episódios de internamento e necessidade de camas).

Relativamente aos recursos humanos, houve um aumento do número de médicos e de enfermeiros ao longo desta década. E esse aumento ocorreu sobretudo no sector público. Como o destaque do INE dá informação sobre emprego de médicos e enfermeiros nos hospitais, é possível calcular rapidamente o que sucedeu em termos de rácio enfermeiros – médicos nos hospitais, e o que sucedeu ao número absoluto de profissionais. E aqui apesar do aumento do número de hospitais privados, o número de médicos nesses hospitais reduziu-se face a 2002, efeito sobretudo dos últimos 5 anos de crise (de 2009 a 2013). Em 2013, os médicos oficialmente a trabalhar em hospitais privados são apenas 10% do total de médicos a trabalhar em hospitais, o que resulta provavelmente de outros vínculos de trabalho com esses hospitais que não a contratação a tempo inteiro. Em termos de recursos humanos, não é visível qualquer recuo do sector público, hospitais ou centros de saúde, apesar das saídas que houve por reforma ou outros motivos.

Se quisermos avaliar o sistema de saúde, ou o Serviço Nacional de Saúde, deveremos olhar para os resultados alcançados com os recursos que estão disponíveis, o que nestes número do INE estão associados à mortalidade infantil, que tem durante esta década uma evolução favorável.

Seria interessante que o INE também tivesse um indicador sobre mortalidade evitável, por exemplo (no site da Direcção Geral de Saúde existe um único estudo da ARS Norte sobre este tema, ver aqui).

E sobretudo saber qual o grau de necessidades não satisfeitas pelo Serviço Nacional de Saúde e reconhecidas como fazendo parte da cobertura (protecção) dada pelo SNS, e em que medida o sector hospitalar privado cobre essas necessidades.

Não deixou de ser também surpreendente que havendo um consenso relativamente geral sobre a necessidade do sistema de saúde português deixar de estar tão centrado no hospital que a discussão se tenha centrado quase exclusivamente sobre os hospitais!

 

 


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Observatório mensal da dívida dos hospitais EPE, segundo a execução orçamental (nº 12 – março 2015)

A execução orçamental do mês de Fevereiro de 2015 trouxe um acréscimo de dívida de 21 milhões de euros num mês, valor inferior ao de Janeiro de 2015. Contudo, em média, mantém-se dentro do foi o ritmo tendencial de crescimento dos últimos dois anos, retirados os períodos de regularização de dívidas. As figuras seguintes mostram 1) a dívida; 2) a estimação da tendência, com e sem inclusão de tendência diferente em 2015, excluindo o fim do Verão de 2014 onde houve uma tendência distinta por alguns meses, 3) a visão gráfica da tendência comum em 2013 – 2015 (Fevereiro), e 4) a evolução caso não tivesse ocorrido a regularização extraordinária de Dezembro de 2014.

Evolução da dívida

Evolução da dívida

Estimativas de regressão das tendências

Estimativas de regressão das tendências

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tendências  comuns - regresso à evolução histórica média em 2015

tendências comuns – regresso à evolução histórica média em 2015

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Comparação com tendência, expurgado o efeito da transferência excepcional de Dezembro de 2014

 

 


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falta de médicos de família (continuação)

No post anterior comentava a falta de médicos de familia, que tem maior expressão na área de Lisboa, ao contrário de outros médicos que faltam noutras zonas do país. Dai resultaram várias questões, trazidas por leitores do blog:

a) que plano estratégico do SNS face aos recursos humanos? bom, não cabe aqui (nem tenho capacidade de) estabelecer esse plano, embora haja alguns elementos que me parecem cruciais – a distribuição de recursos humanos não diz apenas respeito a médicos, há outras profissões de saúde que podem e devem ser incluídas nesse plano; que os instrumentos a usar são financeiros – remuneração e apoios – e não financeiros – projecto profissional, incluindo inserção na formação e investigação;

b) há falta de médicos? de acordo com os números agregados, não haverá, a grande questão, que não dos últimos anos mas mais permanente, é a sua distribuição, em termos geográficos e de formação especifica. Esta situação não deve ser, a meu ver, razão para limitar admissões nas escolas de medicina (para isso ver outros posts sobre as entradas em medicina, escritos em 2012: (1), (2), (3), (4), (5), (6), (7)).

c) há falta de enfermeiros? olhando para as comparações internacionais, podíamos e devíamos ter mais enfermeiros com maior intervenção no apoio às populações. (ver também o comentário ao post anterior)

d) que parte da solução estará em pensar novos modelos organizacionais – as USF têm 10 anos, e não é claro que a situação corrente de divisão entre USF e unidades tradicionais seja a desejada pela população, mas também será tempo de pensar que outros modelos de prestação de cuidados de saúde podem ser prestados e até que ponto a divisão entre cuidados de saúde primários, hospitalares e cuidados continuados continua a ser útil ou única. E novos modelos de organização não exigem necessariamente mais recursos humanos a prazo (em fases de transição acaba sempre por suceder alguma duplicação para que não sejam interrompidos serviços ou até que seja conquistada a confiança da população nos novos modelos). Não vejo é como se pensa em traduzir ideias e sugestões para experiências piloto para transposição mais geral, e aqui novamente recordar o que foi o processo de criação das USF é útil: início de legislatura, acção determinada do ministro que então entrava em funções.


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falta de médicos de família

Das notícias: “O ministro da Saúde admitiu hoje que existe um milhão de portugueses sem médico de família, mas anunciou que os concursos que estão a decorrer deverão resultar num ganho destes profissionais para 500 mil pessoas.”

Também pelo que foi sendo divulgado, onde há maior número de residentes em Portugal sem médico de família é na zona de Lisboa e Vale do Tejo.

O que levanta uma questão global de saber que soluções têm que ser procuradas. A contratação é a solução mais simples e de curto prazo, mas será a solução permanente? Independentemente deste esforço neste momento, é necessário ter uma perspectiva de mais longo prazo sobre os recursos humanos e a forma como se articulam dentro do Serviço Nacional de Saúde para dar resposta às necessidades da população. É necessário começar a pensar em novas soluções organizativas, e em conhecer as posições dos vários partidos políticos, agora que nos começamos a aproximar do tempo eleitoral. Arrumado o tempo da troika, e passados dez anos sobre o início das USF, é o momento de repensar que caminho se vai percorrer, algo que deverá ter lugar quando começar uma nova legislatura.


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desertos médicos, take II (ou, comentário a umas medidas anunciadas)

Quando há uns dias falava de “desertos médicos” a propósito das dificuldades de conseguir ter médicos em regiões de Portugal como o litoral alentejano, não antecipava que pouco tempo depois o Ministério da Saúde anunciasse (ver aqui comunicado no portal da saúde) medidas concretas para responder a esse problema.

As medidas referidas no comunicado (não encontrei a proposta de decreto-lei) são “O decreto-lei em fase de aprovação estabelece um conjunto de incentivos para os médicos, designadamente um subsídio de colocação e um incentivo mensal durante cinco anos, que é de 900 euros, nos primeiros seis meses, de 450 euros, nos seis meses seguintes, e de 275 euros, durante os restantes quatro anos. Para além disso, estão ainda previstos incentivos de natureza não pecuniária, como a garantia de transferência escolar dos filhos, a preferência de colocação do cônjuge em serviço ou organismo na localidade do posto de trabalho em causa ou o aumento da duração do período de férias em dois dias, nos primeiros cinco anos, entre outras vantagens.”

Dentro do que pode fazer uma medida centralizada, pode-se discutir se os valores extra são suficientes ou não para induzir maior disponibilidade, e é de saudar a preocupação com outros factores de vida familiar. Mesmo que “chovam criticas” (e entrando em ritmo de campanha eleitoral, será inevitável), é um passo positivo.

E pode-se também perguntar que mais fazer. Em termos de medidas centralizadas, ocorre-me uma possibilidade – a criação de uma “conta poupança” que vai acumulando a ritmo crescente, e que é atribuída ao final de cinco anos aos médicos que permaneçam nesses locais mais desprotegidos durante esse período. Se sairem antes dos cinco anos, também podem recolher o acumulado dessa “conta poupança”, por isso o acumular deve ser feito a uma taxa crescente. É um tipo de prémio de permanência.

Além das medidas centralizadas, haverá a necessidade de cada unidade de saúde que pretende atrair novos profissionais apresentar um projecto profissional atraente, para o qual poderá ou não requerer apoio central. E o melhor é mesmo falar com os médicos (ou outros profissionais de saúde, caso se queiram atrair também para essas unidades outras profissões) e saber o que constitui um projecto profissional aliciante (eventualmente diferente de local para local, de profissional para profissional). Esta parte de construir um projecto profissional futuro não se faz por circular normativa, é parte da boa gestão de cada unidade de saúde.


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utilização do SNS e barreiras de acesso – mais um estudo, e mais interpretações com problemas

Ontem foi divulgado um estudo da Information Management School (da Universidade Nova de Lisboa, anteriormente conhecido por ISEGI), numa parceria com a AbbVie.

Nesse estudo surge a pergunta que começa a ser frequente (e que por isso permite alguma comparação ao longo do tempo), se a pessoa deixou de ir a cuidados de saúde (consultas de clinica geral, exames, ou urgência) por causa das taxas moderadoras em caso de necessidade de cuidados de saúde, surgindo em vários meios de comunicação a afirmação seguinte, ou uma sua variante: “Por falta de dinheiro, um em cada 10 portugueses deixou de ir ao médico no ano passado. As dificuldades financeiras impediram, também, 16% dos utentes de comprar medicamentos prescritos pelos médicos. São dados de um estudo, realizado pela Universidade Nova, mas que o Ministro da Saúde desvaloriza.”

Ora, a forma como esta pergunta está feita é bastante enganadora na interpretação que depois lhe é dada. O que a resposta 1 em 10 dá é “em pelo menos uma situação em que sentiram necessidade, 1 em 10 portugueses optaram por não ir procurar cuidados de saúde”.

Suponhamos agora que cada português sentiu necessidade de ir ao médico 5 vezes no ano, e que dessas 5 vezes, apenas numa delas 1 em 10 não foi por limitação da taxa moderadora. Tomando 20 portugueses, teremos neste exemplo hipotético 100 situações de necessidade (20×5). Destes 20 portugueses, 2 tiveram limitação por causa da taxa moderadora numa das 5 ocasiões. Ou seja, apenas 2 das 100 situações de necessidade foram limitadas. A resposta à pergunta em quantos casos houve limitação imposta pela taxa moderadora é neste exemplo hipotético 2% em vez de 10%. Significa então que o valor de 10% encontrado no estudo não pode ser lido, tal como nos estudos de outros anos feitos por outras entidades, como dizendo que 10% dos portugueses não tem acesso a cuidados de saúde por causa das taxas moderadoras.

Fica a nota de em futuros trabalhos se melhorar as perguntas realizadas ou então evitar as interpretações erradas.

Acresce que para casos de pouca gravidade se pretende de facto que a taxa moderadora impeça o recurso desnecessário aos serviços de saúde. Por isso, a forma de encontrar o valor pretendido tem que qualificar  o que significa “necessidade”. Uma forma de pensar em “necessidade” é saber se a ausência de recurso resultou num agravamento da situação que ditou então a ida ao serviço de saúde, em pior situação do que na decisão inicial de não procurar auxílio. E perguntar o que sucedeu na última vez que sentiram necessidade de recorrer a cuidados de saúde, para evitar confundir o ano com uma situação em particular.

Curiosamente, e por puro acaso pois não tinha conhecimento da existência deste estudo, lancei há dias via facebook + blog um pequeno inquérito sobre utilização de cuidados de saúde que procura precisamente ser mais detalhado nestes aspectos, que pode ser preenchido aqui. Esta experiência via internet tem 68 respostas (à data de escrita), mas não são de uma amostra representativa (mais de 95% são licenciados pelo menos, por exemplo). Só por curiosidade, 52 pessoas referiram terem-se sentido doentes, das quais 18 não procuraram serviços de saúde. Dessas 15 automedicaram-se. Das 34 que foram procurar serviços de saúde, 4 referiram ter sido por agravamento de condições anteriores em que não houve recurso a cuidados de saúde.

Não transformei estes valores em percentagem para não dar demasiado valor a uma amostra pequena e claramente não representativa. Apenas ilustra que a forma de fazer as perguntas é crucial para a interpretação a dar. E ilustra como se pode estar a construir uma visão errada do que é a realidade (pode, porque até se ter uma análise adequada fica a dúvida de as respostas dos estudos serem ou não generalizáveis a algo mais preciso do que 10% dos portugueses em pelo menos uma situação de necessidade não usaram serviços de saúde, que repito é diferente de dizer que em 10% das situações de necessidade não houve recurso a serviços de saúde).

 


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venda de medicamentos não sujeitos a receita médica

 

Na semana passada a questão da venda de medicamentos não sujeitos a receita médica em mais locais voltou a surgir. Desta vez, com o destaque dado à posição da ANF – Associação Nacional das Farmácias de que se a venda é livre então deverá ser permitida em mais locais do que os actuais, posição que tem também uma visão favorável do Infarmed, com o pressuposto de que nos mesmos locais não seja vendido tabaco. (ver aqui a noticia)

A posição da ANF tem a ressalva de serem contra a venda desses medicamentos fora das farmácias (no que é acompanhada pela AFP – Associação de Farmácias de Portugal), mas dado que é permitida, então que seja o mais ampla possível.

Apesar de se poder encontrar alguma ironia na posição da ANF há um sentido estratégico mais profundo nessa posição. Olhando para o formato de concorrência na venda de medicamentos não sujeitos a receita médica, encontramos três tipos de agentes económicos: as tradicionais farmácias, as parafarmácias de pequena dimensão e alcance sobretudo local e as redes de vendas, onde se incluem os espaços localizados na grande distribuição retalhista. O que a ANF diz, lendo além do sound bite, é que prefere que as farmácias tenham uma concorrência mais pulverizada do que ter como concorrente poucas cadeias da grande distribuição. Do ponto de vista das farmácias faz todo o sentido ter uma concorrência local, mas que não seja esmagadora. Para o cidadão, fará diferença? há dois efeitos de sinal contrário, e não é à partida possível decidir se domina um ou outro. Por um lado, se as grandes cadeia de distribuição forem mais eficientes (tiverem menores custos), poderão praticar preços menores; por outro lado, se forem poucas, ou muito poucas, as redes de pontos de venda ao cidadão, estas terão capacidade de praticar preços mais elevados, não passando a eficiência conseguida via menores preços aos cidadãos. Ou seja, tem-se um possível efeito de poder de mercado a contrapor-se ao possível efeito de maior eficiência.

Ora, sabemos hoje em dia muito pouco sobre as eficiências de dimensão que possam estar associadas à venda de medicamentos não sujeitos a receita médica e nada sabemos sobre como esses ganhos de dimensão são passados, ou não, aos consumidores finais via menores preços.

Olhar apenas para a evolução dos preços nos locais de venda de medicamentos não sujeitos a receita médica (disponível no site do Infarmed) observa-se que o índice de preços na grande distribuição é mais elevado do que em alguns pequenos retalhistas, e que a grande distribuição tem uma posição de relevo na venda destes medicamentos. Ou seja, se há a presunção inicial de vantagens de dimensão e apresentam preços mais elevados, então ou há custos superiores e a presunção inicial não é válida ou há exercício de poder de mercado. Uma alternativa que não é possível discutir com a informação disponível é se os índices de preços correspondem a quantidades e a produtos distintos (sendo o índice de preços consistente ao longo do tempo para cada entidade, mas não sendo igual entre entidades), não sendo o texto esclarecedor quanto a este aspecto.

Do que sabemos dos primeiros 5 a 6 anos da liberalização da venda destes medicamentos, com recurso a um censo das vendas nas farmácias de Lisboa (por facilidade de recolha), e usando um cabaz de 5 produtos comuns, a pressão concorrencial fazia-se sentir – no sentido em que nas zonas com mais parafarmácias as próprias farmácias tinham preços mais baixos para estes produtos – mas não era muito importante em termos quantitativos. Claro que há fortes limitações de generalização por se ter apenas Lisboa e 5 produtos, e por não ter dados mais recentes, mas tudo indica que a pressão concorrencial existe mas fraca. O principal benefício para os cidadãos será então a existência de mais pontos de venda, e não a redução do respectivo preço. O que ajuda também a perceber porque será para a ANF mais relevante a diluição do poder de mercado de redes concorrentes face a uma maior pressão nos preços que as próprias farmácias pudessem ter.

(Para os medicamentos sujeitos a prescrição, a actualização da sua evolução numa noticia da Marlene Carriço no Observador, disponível aqui)


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Desertos médicos (de volta à discussão?)

Hoje, na rádio, o presidente da ARS do Alentejo falava sobre as dificuldades em atrair médicos para o litoral alentejano. Vale a pena, como comentário rápido, referir que este problema dos “desertos médicos” não é específico de Portugal, e em França diversas tentativas de o resolver com medidas “positivas” para atrair médicos para essas zonas com menor densidade de presença médica. Tanto quanto conheço, o problema não teve ainda uma solução definitiva, apesar de terem sido canalizadas mais verbas. Não há razão para que Portugal seja diferente, no problema e no sucesso das soluções.

Daí que pensar que será somente com salários diferenciados que se resolverá o problema é insuficiente. Será necessário pensar de uma forma mais lata, em termos de projecto profissional e de vida que se oferece nestas zonas carenciadas. Ou seja, o pagamento diferenciado é parte da solução, não será a solução toda. O pensar em termos de projecto profissional implica provavelmente pensar em associações com outras unidades do Serviço Nacional de Saúde para promover o desenvolvimento profissional, por exemplo. Ou pensar no que possa ser o papel do desenvolvimento da prática privada dos mesmos médicos atraídos para o Serviço Nacional de Saúde.

Talvez fosse tempo de ter uma reflexão geral, com contribuições dos problemas e soluções das várias regiões que se sentem mais atingidas por este problema.

(no passado, dois posts tocaram neste aspecto: aqui e aqui)


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Observatório mensal da dívida dos hospitais EPE, segundo a execução orçamental (nº 11 – Fevereiro 2015)

A execução orçamental do mês de Dezembro de 2014 tinha deixado no ar a continuação, ou não, da tendência observada desde o Verão de 2014 para redução das dívidas dos hospitais EPE. A transferência de uma verba para regularização das dívidas, no valor de 455,2 milhões de euros (ver aqui), camuflava de alguma forma a dinâmica subjacente.

O valor agora divulgado para Janeiro de 2015 constitui, em vez de uma confirmação, um alerta. Em concreto, descontando a verba extraordinária transferida em Dezembro de 2014, o incremento ocorrido em Janeiro de 2015 anula os decréscimos que estavam a ocorrer desde o Verão e coloca o crescimento da dívida dos Hospitais EPE novamente no seu ritmo histórico. Ou seja, não há ainda evidência suficientemente segura para se poder dizer que o problema está controlado.

É, por isso, importante saber se os maiores acréscimos de dívida ocorreram nos hospitais que receberam maior reforço financeiro precisamente para regularização de dívidas em Dezembro. A assim suceder, estaremos provavelmente a deixar que se instale novamente na gestão dos hospitais a tradição de gerar mais dívida para ter mais orçamento.

A figura 1 apresenta a evolução da dívida, onde é visível o crescimento de 60 milhões de euros em Janeiro de 2015 face a Dezembro de 2014.

Evolução da dívida em atraso do Ministério da Saúde (esmagadoramente do Hospitais EPE)

Figura 1: Evolução da dívida em atraso do Ministério da Saúde (esmagadoramente do Hospitais EPE)

A Figura 2 ilustra as tendências recentes, em que nos períodos fora de regularização de dívidas até Setembro de 2014 se manteve sempre o mesmo ritmo de crescimento da despesa. De Setembro até final do ano de 2014, houve um ligeiro decréscimo, consistente durante quatro meses. O valor de Janeiro de 2015 volta a estar alinhado com o ritmo histórico desde final de 2012.

A Figura 3 ilustra um teste simples – suponhamos que não tinha existido a transferência de verba de 455,2 milhões de euros em dezembro de 2014. Como compara o valor actual com a evolução histórica que vinha a ser seguida? A resposta é clara – o decréscimo registado desde o Verão que não é imputável à transferência de Dezembro de 2014 foi mais do que compensado pelo crescimento de Janeiro. É como se esse decréscimo no final do ano tivesse sido sobretudo adiado, à espera de um momento de menor pressão, que ocorreu em Janeiro. É importante que se saiba se os hospitais EPE que mais contribuíram foram, ou não, os que mais reforço de verba receberam em Dezembro de 2014. Seria aliás relevante que esta imagem da dinâmica da dívida agregada também fosse construída para cada um dos centros hospitalares. É este o aumento de intervenção sobre as gestões hospitalares que mais contribuíram para este crescimento. A 19 de Dezembro de 2014 o Ministério da Saúde escrevia “Reforça-se em simultâneo a responsabilização das entidades que, após estes aumentos de capital, não poderão acumular novos pagamentos em atraso.” O momento actual é um teste a esta afirmação. O ritmo de crescimento estimado está por volta dos 32,17 milhões de euros por mês, o que dá cerca de 400 milhões de euros por ano, o que corresponde, grosso modo, a outras estimativas informais do que era o crescimento anual médio desde o início do século. Ou seja, historicamente não houve ainda uma ruptura com as dificuldades de lidar com as dívidas hospitalares e o descontrole de gestão que lhe está base e que simultaneamente dela se aproveita.

Figura 2: ritmo de crescimento da dívida dos hospitais EPE

Figura 2: ritmo de crescimento da dívida dos hospitais EPE

Figura 3: descontada a transferência extra de Dezembro de 2014, voltou-se ao ritmo histórico de crescimento da dívida

Figura 3: descontada a transferência extra de Dezembro de 2014, voltou-se ao ritmo histórico de crescimento da dívida

As figuras seguintes foram construídas com base em modelos de regressão baseados unicamente nos valores disponibilizados publicamente no âmbito do acompanhamento da execução orçamental (pela Direcção-Geral do Orçamento), no que tem sido um bom serviço público de escrutínio das despesas públicas.

No primeiro quadro, introduz-se as diferentes tendências, testando-se de seguida a hipótese de o valor de Janeiro de 2015 ser similar ao valor médio de 2013 e até ao Verão de 2014 (descontados períodos de regularização de dívidas). Não se rejeita essa possibilidade, pelo que é depois apresentada a regressão com essa condição. A variável tend1314 traduz essa tendência de crescimento, que se situa num ponto central de estimativa de 32 milhões de euros por mês.

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