Na semana passada, diversas notícias referiram a intenção de adoptar medidas que procurem aumentar a quota de mercado de medicamentos genéricos, com um objectivo de 60% até ao final da legislatura, 2019, (ver aqui notícia do Diário de Notícias, e aqui a notícia no Expresso). Em particular, é referido que o anterior mecanismo adoptado para estimular a venda de medicamentos genéricos não produziu os resultados pretendidos, e que agora se pretende introduzir uma remuneração fixa por embalagem de medicamentos genéricos vendidos.
O ponto de partida para esta ideia é simples: se a margem para a farmácia tem uma componente que é uma percentagem do preço, e se o medicamento genérico tem preço mais baixo, a farmácia terá menos interesse em disponibilizar o genérico face a um medicamento de preço mais elevado. Com a alteração da regra de remuneração, então haverá um maior equilíbrio entre a margem que a farmácia recebe quando vende um medicamento genérico e quando vende um medicamento de marca, e como o preço dos primeiros é mais baixo, ficam preenchidas as condições para se venderem mais genéricos, deixando farmácias, Serviço Nacional de Saúde e utentes melhor do que antes.
Sendo a situação descrita clara, o problema está em que esta é uma descrição incompleta da realidade dos números, e a preferência por genéricos pode vir a resultar em discriminação injustificada de umas empresas face a outras. Vejamos porquê.
O pressuposto do argumento pode ser ilustrado com um exemplo fictício muito simples: ter-se um medicamento (que já teve patente), denominado o original, e um medicamento genérico, que é nos seus efeitos similar ao medicamento original.
Se o medicamento original tiver um preço de 30 e o medicamento genérico tiver um preço de 10, então se a margem da farmácia for dada por uma regra que seja receber 1 € + 10% do preço do medicamento, então dispensar o medicamento genérico dá-lhe uma margem de 2 euros enquanto dispensar o medicamento original dá-lhe uma margem de 3 euros. (tantos os preços como as regras das margens são fictícios e apenas para ilustração do argumento)
A preferência da farmácia para que seja dispensado o medicamento original é evidente. E a medida anunciada o que faz é dizer que se for vendido um medicamento genérico então a parte fixa da remuneração é 2 euros, fazendo com que então as duas margens, a do medicamento original e a do medicamento genérico, se igualem.
Toda esta lógica baseia-se no pressuposto que os preços dos medicamentos originais são sistematicamente superiores aos preços dos medicamentos genéricos. Ora, esse é um pressuposto que deve ser verificado olhando para os preços realmente praticados. Nalguns casos, tal será verdade – o preço do medicamento original é substancialmente superior, ainda, ao preço do medicamento genérico. Mas noutros casos, o preço do medicamento original não é muito diferente do preço do medicamento genérico.
Retomando o exemplo acima, se o preço do medicamento original for 10 euros em vez de 30 euros, então não há diferença de preço face ao medicamento genérico, e a remuneração fixa adicional ao medicamento genérico traduz-se numa vantagem artificial, numa discriminação que deixou de ter justificação. Na verdade, se os preços dos medicamentos genéricos e dos medicamentos originais estiverem alinhados, a quota de medicamento genéricos não é um objectivo que continue a fazer sentido.
Ora, se adoptarmos a visão de que um medicamento original com preço muito próximo do medicamento genérico deve ser visto como incorporando ele próprio as vantagens de preço usualmente atribuídas aos medicamentos genéricos, pode-se definir o medicamento original como sendo um pseudo-genérico (comporta-se como genérico em termos de preços). Assim, a quota de mercado relevante para aferir do potencial ganho, em termos de menor despesa para o utente e para o Serviço Nacional de saúde, não é a quota de mercado dos genéricos e sim a quota de de mercado de todos os medicamentos que têm preço que possa ser denominado como correspondendo a uma situação de concorrência no mercado (ou seja, a quota de mercado dos medicamentos genéricos acrescida da quota de mercado dos medicamentos que sendo originais têm preço semelhante ao dos medicamentos genéricos correspondentes). Se esta quota for igual ou superior a 60%, então alcançar o objectivo de ter maior quota de medicamentos genéricos através de uma remuneração adicional na margem da farmácia corresponde na realidade a maior despesa do Serviço Nacional de Saúde – se os medicamentos genéricos e o original têm essencialmenre preços similares aumentar a quota de mercado dos primeiros à custa do segundo não leva a qualquer vantagem de preço, e como se estará a pagar mais pela dispensa do genérico, o SNS acabará por ter uma despesa superior.
Claro que o efeito final dependerá das diferenças de preços que ainda existam entre os medicamentos genéricos e os medicamentos originais que estes possam substituir em termos de utilização. No trabalho sobre politicas públicas na saúde realizado no ano passado (disponível aqui), o capítulo 10 introduzia estes conceitos e com valores referentes a 2014, havia um número considerável de situações em que os medicamentos originais tinham preço similar ao dos medicamentos genéricos. Desconheço como a situação tenha evoluído, mas será relevante saber para se poder avaliar que efeitos produzirá realmente a política anunciada.
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