é o titulo do mais recente livro de Ana Margarida de Carvalho, que recebeu uma revisão entusiástica no Público (aqui), que se adiciona a muitos outros elogios (ver aqui, via facebook e aqui mais aqui, entre outros).
(nota: o texto que se segue tem spoilers sobre o livro)
Este é um livro que dá grande prazer ler. Da sua qualidade de escrita, as várias recensões, por pessoas da área das letras, são a melhor garantia dessa afirmação. O ritmo das palavras e o ritmo da narrativa são impressionantes em Ana Margarida. Que tem solta a sua imaginação na narrativa das vidas de um conjunto de náufragos, entre os quais se inclui uma santa de madeira (“uma santa de madeira, uma fidalga e a filha, um capataz, um escravo, um criado, um padre, um estudante e um menino preto, sobreviventes do navio negreiro, perdidos numa praia inóspita”, via Público) Vamos conhecendo os nomes dos personagens à medida que as suas histórias passadas são desvendados, passados inesperados e cheios de segredos. De todos eles saberemos o nome e os segredos de decisões passadas, com uma excepção, o capataz. Dele não saberemos nem o nome nem os segredos passados.
Chegando aos últimos parágrafos escritos por Ana Margarida, sente-se a pena de não saber mais, de não ler mais os dilemas e as escolhas, de não conhecer três histórias que também poderiam pertencer a este livro. Uma do passado, outra do presente, outra do futuro. Desde logo, conhecer o capataz, que passado esconde o seu comportamento e os seus olhares, que história esconde a chave e a fechadura que tem tatuados. No presente (do livro), temos uma santa de madeira que discorre inicialmente sobre o mundo dos homens, e da qual fica o fascínio de saber o que pensará ela dos náufragos e das suas relações no processo de sobrevivência. E saber se será uma santa vingativa, ou simplesmente desajeitada. Por fim, o futuro do pai do “estudante”, que é deixado para trás, ficando a curiosidade de saber se conseguiria refazer uma vez mais a sua vida, ou seria já tarde demais. É bom quando um livro nos deixa a adivinhar as histórias que não conta, os fios invisíveis de uma teia mais ampla que se poderiam ligar, a somar aos laços inesperados que vão sendo revelados ao longo do texto.
Um desafio que me foi lançado é se este livro também poderia ter uma leitura “económica”. E curiosamente, ou talvez não, até pode. Um par de exemplos. A “inovação” na criação de um nova actividade económica, a “recuperação e venda de um activo” (escravos), na sua estrutura muito similar à compra de casas devolutas, sua renovação e de novo colocação no mercado, com o desenvolvimento da “tecnologia” específica que o permite fazer. O segundo exemplo é mais simples. Depois do naufrágio, o acesso a bens essenciais escassos (água potável e alimentos) estabelece as relações económicas de troca entre os vários “agentes económicos” presentes. Estabelecendo-se a “propriedade” sobre um dos “bens” de localização fixa (a água), há depois as “relações de troca” de quem procura alimentos. Ana Margarida coloca as relações entre os náufragos mais perto do contexto de um “mercado” onde há trocas entre o que cada um pode fazer do que no campo de uma solidariedade de sobrevivência entre as partes. É um mundo onde há recursos renováveis (os alimentos recolhidos no mar) e os não renováveis (os tecidos com os quais se fazem tochas). Há decisões em contexto de incerteza (virá um barco salvador? o que haverá para lá da curva das rochas e valerá a pena lá ir?). E o comportamento altera-se quando se passa de um espaço fechado mas que tem duração conhecida e recursos fixos, com propriedade clara – o navio antes do naufrágio -, para um espaço “fechado”, a praia que ora existe ora não existe consoante a maré, mas sem duração conhecida e com recursos variáveis (é necessário recolher a água potável e os alimentos em cada dia). Claro que também há no livro a atividade económica associada com o transporte de escravos, com a exploração agrícola no interior do Brasil de mil e novecentos, os “incentivos económicos” para o capitão do navio na sua liderança, a pobreza e suas consequências num Portugal de há dois séculos, etc.
Mas que este “desvio” não distraia do centro do livro, o peso do passado em cada uma das personagens, e como esse passado molda as relações que estabelecem na sua “sociedade de sobrevivência” depois do naufrágio, e como esse evento transforma, ou não, essas mesmas relações pré-naufrágio. É nesses passados e nessas relações que está o fascínio do livro.
Aviso de interesses: a amizade com a Ana Margarida pode ter influenciado a minha visão; para decidir se há ou não parcialidade, será necessário que leiam o livro.
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