Ontem foi divulgado um estudo da Information Management School (da Universidade Nova de Lisboa, anteriormente conhecido por ISEGI), numa parceria com a AbbVie.
Nesse estudo surge a pergunta que começa a ser frequente (e que por isso permite alguma comparação ao longo do tempo), se a pessoa deixou de ir a cuidados de saúde (consultas de clinica geral, exames, ou urgência) por causa das taxas moderadoras em caso de necessidade de cuidados de saúde, surgindo em vários meios de comunicação a afirmação seguinte, ou uma sua variante: “Por falta de dinheiro, um em cada 10 portugueses deixou de ir ao médico no ano passado. As dificuldades financeiras impediram, também, 16% dos utentes de comprar medicamentos prescritos pelos médicos. São dados de um estudo, realizado pela Universidade Nova, mas que o Ministro da Saúde desvaloriza.”
Ora, a forma como esta pergunta está feita é bastante enganadora na interpretação que depois lhe é dada. O que a resposta 1 em 10 dá é “em pelo menos uma situação em que sentiram necessidade, 1 em 10 portugueses optaram por não ir procurar cuidados de saúde”.
Suponhamos agora que cada português sentiu necessidade de ir ao médico 5 vezes no ano, e que dessas 5 vezes, apenas numa delas 1 em 10 não foi por limitação da taxa moderadora. Tomando 20 portugueses, teremos neste exemplo hipotético 100 situações de necessidade (20×5). Destes 20 portugueses, 2 tiveram limitação por causa da taxa moderadora numa das 5 ocasiões. Ou seja, apenas 2 das 100 situações de necessidade foram limitadas. A resposta à pergunta em quantos casos houve limitação imposta pela taxa moderadora é neste exemplo hipotético 2% em vez de 10%. Significa então que o valor de 10% encontrado no estudo não pode ser lido, tal como nos estudos de outros anos feitos por outras entidades, como dizendo que 10% dos portugueses não tem acesso a cuidados de saúde por causa das taxas moderadoras.
Fica a nota de em futuros trabalhos se melhorar as perguntas realizadas ou então evitar as interpretações erradas.
Acresce que para casos de pouca gravidade se pretende de facto que a taxa moderadora impeça o recurso desnecessário aos serviços de saúde. Por isso, a forma de encontrar o valor pretendido tem que qualificar o que significa “necessidade”. Uma forma de pensar em “necessidade” é saber se a ausência de recurso resultou num agravamento da situação que ditou então a ida ao serviço de saúde, em pior situação do que na decisão inicial de não procurar auxílio. E perguntar o que sucedeu na última vez que sentiram necessidade de recorrer a cuidados de saúde, para evitar confundir o ano com uma situação em particular.
Curiosamente, e por puro acaso pois não tinha conhecimento da existência deste estudo, lancei há dias via facebook + blog um pequeno inquérito sobre utilização de cuidados de saúde que procura precisamente ser mais detalhado nestes aspectos, que pode ser preenchido aqui. Esta experiência via internet tem 68 respostas (à data de escrita), mas não são de uma amostra representativa (mais de 95% são licenciados pelo menos, por exemplo). Só por curiosidade, 52 pessoas referiram terem-se sentido doentes, das quais 18 não procuraram serviços de saúde. Dessas 15 automedicaram-se. Das 34 que foram procurar serviços de saúde, 4 referiram ter sido por agravamento de condições anteriores em que não houve recurso a cuidados de saúde.
Não transformei estes valores em percentagem para não dar demasiado valor a uma amostra pequena e claramente não representativa. Apenas ilustra que a forma de fazer as perguntas é crucial para a interpretação a dar. E ilustra como se pode estar a construir uma visão errada do que é a realidade (pode, porque até se ter uma análise adequada fica a dúvida de as respostas dos estudos serem ou não generalizáveis a algo mais preciso do que 10% dos portugueses em pelo menos uma situação de necessidade não usaram serviços de saúde, que repito é diferente de dizer que em 10% das situações de necessidade não houve recurso a serviços de saúde).