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António Ferreira: Reforma do sistema de saúde (1)

1 Comentário

A intervenção como comentador do livro de António Ferreira “Reforma do sistema de saúde –a minha visão” na sessão organizada pela APAH em parceria com a Bristol-Meyers Squibb permitiu-me a leitura do livro numa lógica de elementos para discussão.

Tendo feito alguns comentários diretamente, há ainda assim um corpo adicional de notas, comentários e perguntas, que decidi colocar para discussão neste e nos próximos textos.

António Ferreira, o conhecido Presidente do Conselho de Administração do Hospital de São João, é uma pessoa de afirmações fortes. O livro que escreveu fornece uma leitura agradável, foi claro o esforço de procurar chegar ao cidadão que não é especialista, sem que se deixe de sentir o estilo do autor, quase como se o pudéssemos realmente ouvir falar em diversas partes do livro. Como seria de esperar o livro está fortemente marcado pela sua experiência de gestão hospitalar. Aliás, quem vá à procura apenas das frases fortes que costuma usar nas suas intervenções públicas encontra-as aqui em muito menor grau, a favor de uma maior clareza de pensamento e argumentação, que o tempo mediático dessas outras intervenções não permite. Devo dizer que partilho de várias das preocupações apresentadas, mesmo que aqui e ali tenha algumas diferenças de caracterização, e noutros casos creio que será preciso mais discussão sobre os vários tipos de solução, mas a seu tempo faremos essa discussão.

No balanço de uma frase: satisfeito com os resultados obtidos em termos assistenciais, com a certeza do desastre se continuarmos como até aqui na parte de custos e despesa.

Antes de apresentar a sua visão, António Ferreira percorre um caminho de caracterização da situação do sistema de saúde português no contexto europeu, com recurso aos dados da OCDE.

Recolhe dessa caracterização diversos factos, que organiza sob o título de evidências:

  • o SNS está falido – embora falte aqui uma definição do que é falido, pois o sentido empresarial do termo não é diretamente aplicável, uma vez que a mesma entidade, o Estado, determina em grande medida as receitas e as despesas. Falido deve ser visto aqui como a incapacidade política (será apenas económica do país?) de garantir os fundos necessários para os níveis assistenciais pretendidos. Aspecto que depende tanto dos objectivos como das restrições. Mais importante é saber o que teria sucedido se tivesse sido dado mais receita / transferência… mas orçamento demasiado curto justifica divida a acumular-se – qual o equilíbrio sobre a forma de determinar o valor a ser pago, ainda antes de discutir a forma como será pago?
  • a ADSE é economicamente insustentável – neste campo, poderíamos discutir o papel da dupla cobertura da ADSE, e que caminho tomar, mas como as decisões políticas já aumentaram as contribuições da ADSE de modo a que esta é hoje contribuinte líquida para o orçamento, o aspecto financeiro está ultrapassado. A defesa da extinção da ADSE é uma possibilidade, como também deve ser a sua passagem a associação mutualista gerida pelos próprios beneficiários que dela queiram fazer parte (e nesse contexto alargar a outros fora do sector público?). Mas não é um elemento crucial do que António Ferreira discute como propostas.
  • não existe em Portugal, economia privada da saúde – não tenho a certeza de que seja verdade, sempre houve economia privada da saúde em Portugal, creio que deve ser lido como não existe em Portugal espaço para actividade hospitalar privada de grande dimensão. Mas mesmo isso não tenho a certeza que seja hoje verdade. Mas mais uma vez não é algo que seja crucial para o que discute António Ferreira.
  • o sistema de saúde português favorece algumas regiões em detrimento de outras – bom, comparar despesa média sem ajustar pelo risco para acomodar as diferentes populações é suas necessidades é um passo que precisa de ser dado antes de retirar esta conclusão, que provavelmente será verdade no sentido em que com todos os factores que afectam a despesa será muito improvável que dê exactamente o mesmo valor em todas as regiões. Resta saber se a dispersão que existe é aceitável ou não. E aqui mais do que olhar para despesa vale a pena olhar para outros indicadores, reconhecendo ainda que diferentes regiões podem atingir os mesmos objectivos assistenciais de forma diferente – por exemplo, a proximidade ao cidadão no Alentejo implica maior dispersão física dos equipamentos e dos profissionais de saúde do que em Lisboa, e pode ter custos superiores, justificados pelos objectivos assistenciais. Mas a maior proximidade em Lisboa pode levar a maior utilização, fazendo subir a despesa. Na tabela 8 de indicadores, gostava de ter visto também o indicador de despesa em medicamentos por mil habitantes, até pelo papel que o medicamento tem na discussão posterior.
  • a economia está em recessão e o défice público é uma constante – mas não será sempre assim; é interessante retirar implicações para o que possa ser uma forma de organização do sistema de saúde que isole mais das flutuações da economia?
  • Portugal gasta mais do que os seus parceiros e do que pode – o gastar mais ou menos é uma escolha legitima de cada país; não há razão para a média da OCDE ser o padrão adequado – neste ponto, em lugar desta discussão é preferível pensar em termos de value for money, aspecto que é tratado, e bem, por António Ferreira, mais à frente.
  • o sistema de saúde assenta em cuidados curativos agudos e no medicamento – totalmente de acordo, e de acordo com a necessidade de transformação desta característica, e não é só a longevidade, é a morbilidade associada com os últimos anos de vida que nos deve preocupar em termos de objectivos assistenciais e de despesa – reduzir essa morbilidade permite pessoas mais saudáveis e menos despesa. Mas o envelhecimento por si só não fará explodir a despesa em saúde (mas a inovação dirigida a essa população envelhecida sim).
  • previsão de crescimento explosivo dos custos – bom a previsão usa dados desde 1970, e pelo que percebi não desconta a inflação ocorrida, pelo que tende a ter natureza exponencial. De qualquer modo, revendo para a existência de pressão para subida da despesa, creio que não haverá grande discussão sobre a direcção do movimento, mesmo que a magnitude não seja a indicada. É de realçar que em termos de despesa per capita, despesa em % do PIB e até despesa pública como parte da despesa total em saúde estamos no grupo europeu sem ser um caso extremo.
  • estado não conseguirá acompanhar o crescimento da despesa pelo que a presença pública diminuirá – importante será também saber quanto da despesa é determinada pelo sistema público, serviço nacional de saúde, mesmo que seja paga por dinheiro privado (pagamentos directos) e quanto passa para fora, passando a ser relação entre privados, em formato de seguro ou de pagamento directo.
  • desafio da internacionalização – há um problema básico que tem sido largamente ignorado – como é que empresas do estado vão competir num mercado global (ou europeu)? haverá certamente intervenção da Comissão Europeia para evitar ajudas de estado – se querem estar na internacionalização, a possibilidade de falência terá que seguir os moldes empresariais, mesmo que isso implique cortes de serviço à população. Será mesmo possível seguir este caminho em Portugal, e com que sucesso?
  • houve ganhos em saúde extraordinários – ok
  • sistema de saúde português tem recursos adequados, é acessível, menoriza diferenças sociais e tem boa qualidade – então o problema é apenas gastar a mais, ou ser demasiado para um país como Portugal, ou para as finanças públicas; é um problema financeiro, de organização ou de expectativas excessivas face à riqueza do país?
  • sistema não se preparou para a pressão demográfica
  • os portugueses não estão satisfeitos com a resposta do sistema de saúde e têm hábitos de vida pouco saudáveis – teria sido apropriado separar em dois pontos distintos.

Sobre a avaliação dos portugueses quanto ao sistema de saúde, além do habitual pessimismo, há que ressalvar que quem usa o SNS tem melhor opinião do que quem não usa e forma opinião apenas por ouvir falar.

Senti a falta de um capítulo sobre o papel dos profissionais de saúde, como está a mudar e como evoluíram os recursos humanos, até porque depois terão um papel relevante na discussão sobre soluções.

O sector público pode ajustar de três formas – preço/custo, quantidade e grau de cobertura – gostava de ver mais claro como é que a(s) solução(ões) proposta(s) se divide(m) nestes elementos.

 

(continua amanhã)

Autor: Pedro Pita Barros, professor na Nova SBE

Professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa.

One thought on “António Ferreira: Reforma do sistema de saúde (1)

  1. Embora em termos de gastos a doença e o medicamento tenham o maior peso, a verdade é que muito trabalho rem sido feito ao nível da prevenção primária e secundária, o que justifica o aumento da esperança de vida.

    Com a generalização dos acordos da ADSE com os hospitais privados (pelo menos em Lisboa) a realidade mudou radicalmente. Sugiro que seja feito um Estudo sobre satisfação, resultados em saúde e eficiência, para percebermos se o caminho deve ser o tradicional SNS de gestão pública ou a generalização de um Sistema como o da ADSE. Embora falte , a meu ver, introduzir uma Contratualização Esclarecida orientada para a eficiência e resultados no actual regime de convenção com a ADSE que facilita um a facturação de um excesso de actos. Curioso será também verificar se a ADSE se torna de facto auto sustentável apenas com as contribuições dos seus beneficiários o que contorna o falso problema da percentagem do PIB para Saúde.

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