tinha pensado não dizer nada, pois as opiniões têm tido um cunho emocional imediato, e considerei ser preferível deixar passar algum tempos; adicionalmente, o J Gomes Ferreira (aqui) e a Helena Garrido (aqui) expressaram em grande medida a minha reacção inicial. Além disso, custa-me reagir ao manifesto com base apenas no que “os mercados” ou “os credores” possam pensar, ou aquilo com que queremos imputar que seja o pensamento deles. É um jogo de adivinhação pouco interessante para mim.
E como no fundo o manifesto irá passar adiante sem grande efeito, como outros documentos no passado, estava a programar manter a minha “teimosia” de continuar a escrever sobre cuidados de saúde. Afinal, cada um é livre de expressar a sua opinião, qualquer que seja o seu fundamento e sentido.
Contudo, a importância que acaba por ter a exoneração de dois dos assinantes do manifesto do cargo de assessores do Presidente da República e as reacções às reacções fez-me pensar que talvez valesse a pena chamar a atenção num par de aspectos, diferentes do que a maioria das pessoas tem referido, mas que me surgem como mais centrais e fundamentais:
a) a ligeireza com que o texto se encontra escrito (pode ser lido aqui, entre outras possibilidades);
b) a ausência de uma concretização de como definir e ter uma estratégia macro-económica em Portugal.
Vejamos o porquê desta visão e porque era de exigir mais na própria escrita do manifesto, e nos comentários produzidos (não dá normalmente para perceber se as pessoas que comentam leram de facto o manifesto, ou se comentam com base em comentários que ouviram ou resumos que leram).
O meu primeiro comentário ao manifesto é não ser claro (rigoroso) quanto ao que é opinião/interpretação e quanto ao que é matéria de facto. Apresentar opiniões ou opções como verdades é pelo menos discutível, embora possa ser efectivo como mensagem num primeiro momento. Por exemplo, a frase de abertura do manifesto “Nenhuma estratégia de combate à crise poderá ter êxito se não conciliar a resposta à questão da dívida com a efectivação de um robusto processo de crescimento económico e de emprego num quadro de coesão e efectiva solidariedade nacional.” Para ser totalmente correcto, deveria dizer dívida pública (?). E ao dizer-se que não há “nenhuma estratégia”, o que querem dizer é que na opinião dos subscritores não há alternativa, mas tal não significa que outros não considerem melhores outras opções. Ou existe uma demonstração cabal do “nenhuma” – não haver outra possibilidade – que possam referenciar ou apresentar?
O segundo parágrafo refere que “tem sempre em atenção (…) as melhores práticas de rigorosa gestão orçamental”. Como não se diz quais são, cada subscritor pode entender as suas, cada leitor pode entender as suas, como estando aqui reflectidas, ganhando adesão para o manifesto, mas sendo vazio em termos de conteúdo de acção proposta.
Terceiro parágrafo, começa com a culpabilização da crise internacional iniciada em 2008. Subscrevem os autores do manifesto que sem crise internacional Portugal não teria qualquer problema? e o problema foi a crise, ou foi aumentado por decisões nacionais, que se adicionaram ao funcionamento dos chamados “estabilizadores automáticos” (despesa pública que aumenta naturalmente em situações de recessão, receita pública que diminui naturalmente em situações de recessão)? Considerar que tudo se deveu ao que se passou lá fora é errado e não ajuda a procurar soluções, tal como dizer que a crise internacional não teve efeito não é razoável.
De seguida, é referido que saldos “orçamentais primários verdadeiramente excepcionais” (suponho que queiram dizer positivos e elevados, no seguimento do argumento) são “insusceptíveis de imposição prolongada” – até posso concordar, mas sei quais as razões que estão subjacentes a esta afirmação. Porque é que não são possíveis?
Continuando, “A nossa competitividade tem uma base qualitativa demasiado frágil (…) É preciso uma profunda viragem, ruma a especializações competitivas geradas pela qualidade (….)”. Certo, mas qual a diferença para o que se disse há dez anos, e há 20 anos, e quando o Michael Porter fez um famoso relatório sobre os clusters em Portugal? porque ainda não sucedeu?
A secção seguinte está dedicada à necessidade de “reestruturar a dívida para crescer” – a abertura “deixemo-nos de inconsequentes optimismos” aplica-se curiosamente à própria proposta de achar que apenas reestruturar a dívida pública (aqui é acrescentado o “pública”) resolverá todos os problemas de crescimento. Quando muito podem defender que será uma condição necessária, mas dificilmente se consegue estabelecer um nexo de causalidade suficiente.
Para que o argumento seja único, haveria que definir uma estratégia de crescimento e mostrar (demonstrar) que a reestruturação da dívida é condição necessária, ou que ajuda a essa estratégia e minimiza os riscos para os credores. Por exemplo, será que a reestruturação da dívida implica uns ganharem e outros perderem obrigatoriamente, ou consegue-se encontrar situações em que todos possam ganhar? e ganhar o quê?
Do ponto de vista dos credores, porque irão ter interesse em reestruturar? para Portugal voltar a contrair mais divida (pois facilmente haverá um manifesto seguinte a dizer que só com financiamento se consegue fazer investimento necessário ao crescimento…)? ou será que é possível dizer que a reestruturação consegue fazer com que seja mais provável ter certeza no pagamento e no evitar de problemas futuros? e se os nossos credores principais hoje em dia envolvem instituições internacionais, reestruturar em Portugal não dará o sinal para que todos aqueles a quem eles emprestam (socorrem) e irão emprestar no futuro quererão fazer o mesmo, e que antecipado destrói a noção de empréstimo?
Segue-se depois um conjunto de considerações sobre os problemas da economia portuguesa, que são reais, mas surgem todos misturados – por exemplo, se há emigração de desempregados, então há previsivelmente redução de pagamentos sociais, e as desigualdades tendem a baixar – é a forma adequada de o fazer? não certamente, mas há que atender aos vários efeitos dos elementos que se enunciam. De forma similar, o aumento de impostos foi muito grande? foi, reduz desigualdades na distribuição do rendimento? com o aumento da progressividade é muito provável que sim; mas reduzir desigualdades deixando menos rendimento disponível em média não é usualmente a forma como o queremos fazer, mas diminuir as desigualdades se for esse o objectivo. Fica por isso a sensação que o que fica escrito reflecte sobretudo a opinião (de muitos? de alguns?) mas sem ter a força de evidência e de consistência entre os vários argumentos. Há certamente afirmações correctas, mas todas elas ao mesmo tempo poderão ter nuances ignoradas.
É feita também a defesa da reestruturação dentro do espaço europeu, apelando sobretudo à noção de a Alemanha ser o “inimigo”, e indo buscar o que foi feito com as reparações das guerras mundiais do século XX e do perdão da dívida alemã. É muito redutor dizer que é apenas um problema com a Alemanha, e é errado. Há outros países que podem não ter o poder económico da Alemanha nem a sua dimensão mas que são extremamente vocais contra os países do Sul da Europa e os seus excessos, incluindo-se aqui a Finlândia por exemplo, os estados bálticos e a própria Holanda até certo ponto. E no final toda a argumentação apresentada só reforça os receios de “risco moral” que esses países têm sobre o Sul da Europa. Sobretudo quando a proposta de reestruturação não surge associada a qualquer compromisso credível de não repetição da situação, e apenas dizer que problemas num país do euro alargam-se aos outros países do euro – mas então isso só dá força a quem nesses países defende uma europa a duas velocidades, uma zona euro para uns e uma zona de qualquer outra coisa para outros.
Sobre as condições da reestruturação, deveria ter sido reconhecido que discretamente tem ocorrido um abaixamento da taxa média de juro, que houve um alongamento dos prazos da dívida. Além disso, suavizar picos de pagamento de dívida pode ser feito com outros instrumentos (e que pelo que se vai sabendo até vão sendo usados), porque é que a reestruturação tem vantagem sobre a utilização desses instrumentos?
É que em lado algum se refere que possam haver consequências negativas da reestruturação. Se não as há, deveria ser dito; se as há deveriam ser esmiuçadas e demonstrada a presunção razoável que as consequências positivas dominarão as consequências negativas. Sem o fazer, o propósito do documento não será o de gerar uma discussão técnica e depois política sobre a opção, e sim “exigir” que as autoridades económicas, o Governo, aceite que deve fazer o que este manifesto diz, os detalhes depois alguém que trate?
Aliás, também deveria ser explicitado qual o contributo de Portugal para tornar a solução de reestruturação atractiva para os nossos credores, não apenas dizer que nós beneficiamos. E mesmo sobre este último ponto, é evidente que se beneficia por não pagar, mas qual o mecanismo pelo qual a ausência de dívida fará crescer a economia, de forma consistente, o que significa aumentar a produtividade e o seu ritmo de crescimento? E as consequências de não pagar, não afectam o crescimento? (por exemplo, se a reestruturação implicar que internacionalmente não se consegue colocar dívida pública portuguesa durante alguns anos, isso não obriga aos saldos primários positivos para o défice público, que nos termos do manifesto são “insusceptíveis de imposição prolongada”?
Como escrevi anteriormente, noutro post, a nossa principal preocupação deverá ser ter linhas de estratégia para as políticas económicas que sejam credíveis (no sentido em que não vamos querer fazer diferente do que se escrever na primeira oportunidade para o fazer), e que satisfaçam a preocupação fundamental de quem empresta, reaver o que emprestou.
O manifesto é uma desilusão no sentido em que não tem uma estratégia coerente de longo prazo, apenas a ideia de alterar as condições da dívida pública, e depois tudo se resolverá, sem olhar aos efeitos negativos que possa ter e sem enquadrar num contexto mais geral de definição do rumo das políticas económicas. A discussão à volta dele é uma desilusão por focar apenas no que possam ou não possam pensar os “mercados” financeiros (aspecto certamente relevante, mas não único).
Gostar disto:
Gosto Carregando...