Nos últimos dias voltou a ganhar atenção a questão de haver vantagem, ou não, de colocar na constituição limites ao défice público e/ou à dívida pública. O André Barata lançou aqui ontem a discussão, defendendo que tal não deverá ser feito. O principal argumento é a perda de flexibilidade de decisão que implica.
Curiosamente, a perda de flexibilidade é também o principal argumento para que seja inscrito um limite constitucional ao défice e/ou à dívida pública. Embora em geral a perda de flexibilidade seja má, uma vez que é fácil pensar que o resultado sem flexibilidade pode ser sempre conseguido com flexibilidade de decisão, pois se for óptimo pode-se actuar exactamente da mesma forma. Ou seja, sem restrições é sempre possível alcançar pelo menos o mesmo resultado que com restrições.
Só que esta descrição é demasiado simples em muitas situações. A minha preferida para ilustrar intuitivamente o problema está presente na ilustração abaixo.
Esta ilustração corresponde a um vaso grego relatando um episódio da Odisseia – Ulisses amarrado ao mastro para poder ouvir o canto das sereias. Neste caso, a perda de flexibilidade (estar amarrado ao mastro) permite-lhe ouvir o canto das sereias, melhor resultado do que a alternativa com flexibilidade – ouvir o canto das sereias e afogar-se no mar atrás delas.
A decisão de ficar amarrado constitui um “compromisso credível” com uma acção concreta, não se atirar ao mar. E esse compromisso tem um valor, no caso ouvir o canto das sereias.
A transposição desta ideia simples para o campo da actividade económica, e em particular para as decisões dos governos quanto a despesa pública, a discussão das condições em que é desejável e quais as suas implicações para a própria gestão dos ciclos económicos e do crescimento económico, tem sido feita desde há praticamente três décadas e meia. Deu mesmo origem à atribuição do prémio Nobel de 2004 a Finn Kydland e Edward Prescott (a justificação pode ser vista aqui), e as raízes da discussão já estavam de alguma forma presentes no trabalho iniciado por Buchanan nos anos 60 (também ele um prémio Nobel da economia, ver aqui). Uma descrição mais detalhada em português do valor da perda de flexibilidade pode ser consultada no capítulo 4 do livro Economia Pública, de Pinto Barbosa.
Sendo então que existe valor em “regras” que limitam decisões futuras, não se deve saltar imediatamente para a conclusão de que é melhor ter uma regra constitucional de limitação do défice ou da dívida, ou que é melhor não ter apenas para não perder flexibilidade. É preciso conhecer quais os benefícios da perda de flexibilidade, e quais os riscos de manter a flexibilidade.
Há também o problema operacional de definir como os limites seriam definidos, qual a definição de défice? estrutural, ajustado do ciclo económico? (que mantém alguma flexibilidade)? quem o calcula? que verificações existem? permite-se reacção a choques extremos não antecipados (por exemplo, catástrofes naturais, como é sugerido pelo André Barata)? Existem mecanismos alternativos para garantir o mesmo resultado?
Antes de concluir por um lado ou por outro, a favor ou contra a limitação constitucional ao défice público, importa dar resposta a diversas perguntas – não é uma tarefa fácil, mas definir posições nesta matéria deve ir para além de intuições ou ideologias.
A forma de apresentação também influencia fortemente a nossa percepção e posição – suponhamos que o governo anunciava um compromisso de não aumentar mais impostos, presentes e futuros. Colocado a votação ou sondagem, certamente que este compromisso teria o acordo da maior parte da população (toda?). Mas esse compromisso significa que a despesa pública, o défice público, fica limitado pela evolução dos impostos de acordo com a actividade económica. E se houver uma catástrofe natural, para respeitar o compromisso, terá que reduzir outra despesa pública. Um compromisso de não aumentar impostos é equivalente a colocar na Constituição um limite ao défice público.
(post gémeo com o blog No Reino da Dinamarca)
13 \13\+00:00 Dezembro \13\+00:00 2011 às 11:51
Excelente artigo. De que serve ter um limite ao déficit na Constituição se a medição desse mesmo déficit é efectuada pelos eventuais prevaricadores? E já tivemos limites europeus ao déficit e um pseudolimite à divida pública que nenhum Estado cumpriu!
Se for uma medida para acalmar apenas os mercados, mais vale esquecer porque só aumentará a crise de expectativas (esta sim, é a crise mais grave que estamos a atravessar)!
Ulisses amarrou-se ao mastro porque estava em causa a sua própria vida. Mas muitas vezes a sobrevivência do politico no curto prazo implica que se sigam outros caminhos que não o da sustentabilidade economica do próprio Estado. Como é que conseguimos criar incentivos para minimizar este paradoxo? Essa sim devia ser a discussão mas dá mais que pensar do que um limite contabilistico e que pode ser adulterado criativamente. O nosso regime politico favorece os politicos gastadores e penaliza os restantes.
Pessoalmente não vejo outra solução que não seja mais transparência, melhores oposições, jornalistas menos permeáveis a influências e maior participação dos cidadãos. Isso implica um combate feroz às corrupções e a dinamização de uma meritocracia de facto, sem lugar a promoções automáticas.
É uma utopia? Talvez! Mas a União Europeia não era também uma utopia que foi construida passo a passo?
Mais uma vez estamos perante um fenómeno similar ao que ocorreu no periodo “pré-Troika”. Todas as pessoas minimamente informadas sabiam o que era necessário fazer para sairmos do desfiladeiro mas tivemos de chegar ao abismo para assinarmos um papel que nos dizia desde o exterior o que precisávamos de implementar!
Quem não tem dinheiro não pode ter vicios, sejam as familias, as empresas ou o Estado. Isso implica começar a viver dentro das nossas possibilidades e passar rapidamente a uma situação de superavit porque a nossa divida (publica e privada) é assustadora!
GostarGostar
13 \13\+00:00 Dezembro \13\+00:00 2011 às 12:14
E a nossa dívida pública só é assustadora porque deixámos que passasse de 115 mil milhões de euros no final de 2007 para 172 mil milhões de euros no final de 2011 (segundo o INE – procedimento dos défices excessivos, 2ª notificação de 2011).
E como é que os portugueses permitiram que se passasse de 68% do PIB para 101% do PIB? deixaram porque “ninguém” viu. Deixaram porque a maioria dos que votam não acompanham esta realidade. Deixaram porque não perceberam onde isso os ia levar. Fosse qual fosse o argumento utilizado, até mesmo o de apoio ao melhor investimento que estivesse disponível na altura, um limite é um limite, um limite é a certeza de que nem tudo é possível a quem gere (será depois fundamental analisar e decidir como, e com que maioria, se pode exceder tal limite, mas aí a discussão e a publicidade ao tema será inevitável).
Depois da citação à Odisseia qualquer outra será “menor” mas ainda assim arrisco algo bem mais contemporâneo mas que considero que bem se adapta – já assim cantava a Sara Tavares:
Sei que posso fazer tudo,
Mas nem tudo me convém.
O que escolho fazer hoje
Vou vivê-lo amanhã.
E é esse amanhã que creio ser importante proteger.
GostarGostar
14 \14\+00:00 Dezembro \14\+00:00 2011 às 10:44
Dois comentários recebidos via facebook:
a) Na constituição ou em documento “semelhante” de igual obrigatoriedade o importante, creio, é mostrarmos, interna e externamente, qual o nosso objectivo (limite máximo) de longo prazo. É darmos nota de que temos consciência de que não há almoços grátis e que não podemos sacrificar as gerações futuras a qualquer preço. Poderá ser, talvez, a única forma de garantirmos que os nossos filhos ainda terão país.
b) Parece-me completamente anormal e até atentatório da inteligência consagrar na lei fundamental uma coisa cujo controle não está ao nosso alcance. Quando tanto se critica a constituição por ter coisas a mais, é completamente incompreensível essa proposta.
GostarGostar