as últimas semanas têm sido férteis em reportagens sobre tempos de espera para atendimento nas urgências e sobre mortes ocorridas em pessoas à espera de atendimento (que são evidentemente de lamentar). A reacção as estas situações tem ido desde a justificação pelo pico da gripe e o frio que se tem feito sentir às acusações de descalabro e caos no Serviço Nacional de Saúde. O impacto mediático destas situações tem levado a diversas reacções, incluindo o anúncio de utilização dos serviços hospitalares privados (para grande surpresa destes conforme confirmei numa entrevista televisiva a um responsável da actividade privada), entretanto já contrabalançado com um esclarecimento colocado no portal da saúde (original aqui)
As informações que são conhecidas não permitem ter uma visão completa, mas há alguns aspectos que se podem desde já usar para várias implicações:
a) os serviços de saúde, incluindo as urgências hospitalares, nunca estão dimensionadas para satisfazer o máximo pico de procura que possa existir, pois isso implicaria que durante a maior parte do tempo haveria excesso de capacidade (isto é, profissionais de saúde sem ocupação). Assim, o que os sistemas de saúde têm de possuir é capacidade de antecipação e capacidade de resposta sempre que for antecipado um pico de procura. As situações ocorridas mostram que não existiu, em várias ocasiões, essa capacidade de resposta em diversos hospitais. Falta saber se noutros hospitais houve essa capacidade de antecipação e respostas preparadas que evitaram que ocorressem situações similares.
b) o segundo aspecto é saber se estes são casos episódicos ou constituem já uma regularidade. Pela própria natureza das urgências hospitalares, é natural que haja pessoas que pela gravidade da sua situação tenham, infelizmente, falecido na urgência. O que é menos natural é que tal ocorra antes de serem vistas. E o tempo que medeia entre a sua chegada e a atendimento depende de três elementos: quantas pessoas afluem à urgência, quantos profissionais de saúde estão a atender quem chega à urgência e qual o tempo de resolução de cada caso. É relativamente claro que houve um aumento de afluência à urgência. Não é claro (excepto num caso ocorrido no Natal) que tenha havido um menor número de profissionais presente. Sobre se os casos que estão a chegar à urgência são ou não mais graves, necessitando de mais tempo para o seu encaminhamento ou resolução, não consigo adivinhar o papel do tempo de resolução. Na medida em que um aumento de procura fosse antecipáveis, a falta de capacidade de resposta esteve presente. É certo que alguns dos casos de óbito provavelmente ocorreriam de qualquer forma dada a situação clínica, embora seja diferente que tenham ocorrido antes de serem vistos ou depois de serem vistos por um médico depois da sua chegada à urgência.
A questão está então no que deveria ser a capacidade de resposta. E aqui surgiram muitas sugestões – contratação de pessoal, alteração de equipas, horários alargados de funcionamento dos cuidados de saúde primários e, nos últimos dias, o eventual recurso à capacidade do sector privado.
Destas várias possibilidades, há que atender a dois aspectos: primeiro, se o problema é um aumento da procura nesta altura do ano, a solução deverá ter um caracter sazonal e não permanente; segundo, a resposta deve ser de cada unidade e não centralizada, centralmente deve existir apenas a preocupação de que os mecanismos de ajustamento de cada unidade hospitalar estejam à disposição da respectiva gestão, ou solucionar problemas de coordenação dentro do Serviço Nacional de Saúde.
Dentro desta linha de argumentação, o alargamento de horários dos cuidados de saúde primários idealmente não deveria surgir por determinação central do Ministério da Saúde em reacção a problemas, mas como resposta de antecipação. Os hospitais e os centros de saúde das respectivas zonas geográficas deveriam, nas suas funções de gestão, ter capacidade de perceber os riscos de ocorrência de picos de procura, e encontrar os mecanismos de resposta. Se parte substancial das situações corresponde sobretudo a consultas não programadas que podem ser realizadas nos cuidados de saúde primários e não verdadeiras emergências hospitalares, então os diferentes pontos de gestão no Serviço Nacional de Saúde têm que saber como antecipar e responder.
Outra resposta possível está associada à gestão interna de cada hospital, e à forma como o respectivo serviço de urgência se encontra organizado – quem presta serviço, em que condições, se há ou não contratação de empresas de serviços para o efeito, se deveria ser pensado outro modelo de organização, etc. A este respeito, creio que se poderia facilmente ter melhorias se não se ficar preso a regras iguais para todos os hospitais que não têm problemas iguais. Um exemplo de ideias a serem exploradas pode ser encontrado num trabalho de Paul Traicus, a propósito do serviço de urgência num hospital de Toronto (com tempos de espera de 24 horas ou mais), que também colocou questões para discussão (aqui). Ou seja, pensar de forma diferente o sistema de atendimento e os fluxos internos de funcionamento poderão dar uma resposta para mitigar estas situações.
Estando o aumento da procura sazonal na base dos problemas encontrados (ou pelo menos de grande parte deles), é com surpresa que não assisti a uma campanha de divulgação das vantagens de utilização da linha Saúde24, que não só poderá evitar a deslocação como concluindo-se que seja necessária poderá encaminhar da melhor forma. (nota: numa consulta rápida ao site da linha saúde24 até surge uma possibilidade de registo e chat online, mas não testei a ver se funciona bem). Ou seja, há aqui um instrumento útil e relevante, que não tem tido a relevância necessária nas decisões dos cidadãos – pelo menos, neste tempo de entupimento das urgências não se ouviu a referência a que não tenham sido atendidos pela linha saúde24 ou que do recurso a ela tenham surgido atrasos no atendimento necessário.
A outra surpresa foi realmente a referência à utilização da capacidade privada. Aliás, a nota de esclarecimento, a apontar para apenas situações de grande excepcionalidade, vem de algum modo baixar as expectativas quanto a esta utilização. Embora seja tentador pensar que há capacidade privada que pode ser utilizada, o recurso a ela para satisfazer obrigações de atendimento do Serviço Nacional de Saúde cria mais problemas do que resolve. E isso sem entrar na discussão ideológica que certamente será brandida a propósito (os anúncios de destruição do SNS e a “venda aos privados” não devem tardar). Mesmo sem esse elemento, um problema desde logo é que esse recurso deverá ser pago pelo SNS, mas então como é que se distinguirão os casos atendidos nas urgências privadas que deverão ser pagos pelo SNS dos que não devem dar origem a essa compensação. Obrigar a que as pessoas tenham que ir primeiro a uma unidade pública para serem redireccionadas para uma unidade privada atrasa o atendimento necessário e vai levar a quem se dirige actualmente de forma directa ao sector privado (seja qual for a razão para essa preferência) passe a considerar dirigir-se primeiro ao hospital público para depois ser enviado para o privado, para não ter que pagar (ou contar para efeitos de utilização no âmbito do seguro). Ou seja, o comportamento de procura de serviços de urgência pode ser alterado de várias formas (além da possibilidade de quem vai hoje ao hospital privado querer também ter essa escolha paga pelo SNS, haverá quem vá protestar que quer ser atendido no hospital privado quando antes desta possibilidade optaria pelo sector público). Compreendendo a procura de soluções para situações extremas, esta parece-me ser uma solução que gera mais problemas e confusão do que soluções.
De toda esta situação, o problema central parece estar em falta de capacidade de gestão ao nível operacional, com dois pontos centrais: antecipação do aumento pontual da procura de serviços de urgência, respostas locais a essa antecipação. É uma situação onde sobretudo me parece que falhou a gestão. (estou naturalmente disponível para rever, se houver informação e análise que indiquem outra conclusão).
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