A atribuição de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) gerou uma onda de impacto devido à sua redução considerável (ou enorme ou brutal ou…. conforme os diversos adjectivos que têm sido usados). Há que ver além do descontentamento dos candidatos que não ganharam bolsa, e do descontentamento das instituições que os esperavam, bem como do calor da luta política (partidária).
Nesta discussão há alguns pontos prévios que importa estabelecer:
a) a FCT iniciou no ano passado um sistema de atribuição de bolsas de doutoramento baseado nas instituições com programas de doutoramento financiados pela FCT. Esta iniciativa, que não foi contestada nos seus princípios, levaria naturalmente a uma redução do número de bolsas atribuídas directamente pela FCT. No actual contexto da despesa pública seria complicado que essas bolsas de doutoramento inseridas no financiamento a programas de doutoramento fossem adições líquidas ao número global de bolsas.
b) Falou-se também na taxa de sucesso, que foi muito baixa. Ora, a taxa de sucesso (número de candidatos aprovados vs número de candidatos total) não é uma escolha, é uma consequência de se fixar o número de bolsas a atribuir e do número de candidatos que houver (que em momentos de crise económica é natural que aumentem por redução de outras oportunidades fora do contexto do trabalho científico). Uma taxa de sucesso muito baixa significa que pequenas diferenças entre candidaturas se traduzem em decisões muito diferentes (ter ou não ter bolsa), e que a avaliação das pequenas diferenças entre candidaturas tem sempre um grau de subjectividade dos avaliadores quanto ao conteúdo que potencialmente origina resultados discutíveis (por diferentes opiniões, igualmente válidas, quanto ao potencial do projecto proposto, da qualidade da instituição de acolhimento, etc.).
c) As verbas destinadas à ciência têm que ser repartidas por vários programas, e não aumentando se a FCT pretende criar programas novos, tem que desviar verbas de alguma outra utilização. A forma de distribuir as verbas pelas diferentes actividades é o que define a política de actuação da FCT.
d) A renovação dos quadros científicos obriga a um fluxo regular de entradas e saídas nas posições de investigação avançadas. Note-se que estamos a falar de investigadores cuja missão é alargarem a fronteira do conhecimento. Estas bolsas não são, não constituem, nem devem constituir, situações de emprego permanente.
e) A redução das bolsas em 2013 face a 2012 foi realmente muito elevada. Usando os dados publicamente disponíveis no site da FCT e apenas para os concursos directos da FCT (não incluindo por isso as bolsas disponibilizadas dentro dos programas de doutoramento), a redução atingiu todas as áreas em igual proporção.
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Aprovadas 2012
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BD 2012
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BPD 2012
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Aprovadas 2013
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BD 2013
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BPD 2013
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BDE 2013
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Ciências da Vida e da Saúde
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269
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185
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84
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74
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40
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33
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1
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Ciências Exatas e da Engenharia
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648
|
416
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232
|
194
|
101
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86
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7
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Ciências Naturais e do Ambiente
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420
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232
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188
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116
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67
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48
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1
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Ciências Sociais e Humanidades
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538
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365
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173
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163
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90
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66
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7
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1875
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1198
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677
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547
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298
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233
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16
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BD: bolsas de doutoramento; BPD: bolsas de pós-doutoramento; BDE: bolsas de doutotamento em empresas
f) Não se conhece (ou pelo menos não consegui encontrar) a forma como as verbas recebidas pela FCT são distribuídas pelas diferentes atividades para o ano de 2014. Há alguma informação pública sobre o passado recente:
Linhas de ação da FCT : (informação retirada do site da FCT)
* Projectos de investigação
* Formação avançada, inclui
a) emprego científico (cerca de 47M€/ano);
b) bolsas de doutoramento e pós-doutoramento (cerca de 160M€/ano, para 10,000 bolseiros)
* Instituições de investigação (56M€/ano)
* Cooperação internacional (44M€/ano)
* Sociedade da informação (0,252M€/ano)
* B-on e rede ciência, tecnologia e sociedade (13M€/ano)
* Outros apoios – à Comunidade Científica e à Cultura Científica (8M€/ano)
Tomando estes valores médios como representativos, cada um dos 10,000 bolseiros receberá cerca de 16,000€/ano (os de doutoramento menos, os de pós-doutoramento mais). Admitindo que este valor médio não se altera muito, por não ser muito grande a diferença de redução de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento, a diminuição da verba deverá ser à volta dos 20M€ (mais coisa menos coisa), pelo que é relevante saber onde será aplicada dentro das outras linhas de acção, para se conhecer qual é o custo de oportunidade real desta alteração (ou se simplesmente corresponde a menor orçamento para a ciência, de facto).
Do Plano de actividades da FCT para 2013 (o último disponível):
“Está prevista a reestruturação do concurso para Bolsas Individuais, que integrará em 2013, para além das Bolsas de Doutoramento e Pós-Doutoramento, as Bolsas de Doutoramento em Empresas (BDE), deixando o concurso para as BDE de estar aberto em permanência, ficando sujeito a prazos idênticos ao do concurso anual de bolsas individuais de Doutoramento e de Pós-Doutoramento.
No âmbito da política de convergência gradual dos instrumentos de apoio da FCT serão revistos o número e o calendário dos concursos centralizados de bolsas individuais, quer de doutoramento quer de pós-doutoramento. De facto, considera-se que as primeiras devem estar, por regra inseridas em programas de doutoramento e as segundas em projetos de investigação. Neste sentido, os Investigadores Responsáveis com projetos financiados no concurso de 2012 foram informados da possibilidade de revisão das rúbricas orçamentais de modo a contemplar custos com recursos humanos, nomeadamente bolsas de pós-doutoramento.
Não obstante, considera a FCT dever manter concursos nacionais de bolsas individuais de menor dimensão para apoio aos melhores candidatos cujos planos de investigação ou percurso de formação não se integrem, adequadamente, nos programas de doutoramento apoiados ou nos projetos de investigação em curso.”
Ou seja, a redução de bolsas não deveria ser novidade, mas a magnitude dessa redução não foi prevista ou tornada previsível para os candidatos (e para as instituições de acolhimento). (mas quantas pessoas leram este relatório de actividades? eu só li agora, reactivamente, na procura de mais informação sobre a política anunciada da FCT).
A discussão e instabilidade criadas pelas recentes decisões de atribuições de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento resultam de um choque que podia e devia ter sido melhor anunciado, bem como de expectativas que se deveriam ter ajustado face às políticas científicas da FCT. Mas há claramente a necessidade de conhecer melhor que opções foram tomadas e o que veria as suas verbas reduzidas caso as bolsas tivessem sido mantidas nos números absolutos do ano passado.
Como seria de esperar, esta redução de bolsas tornou-se num instrumento de luta política, mais ou menos clara consoante os intervenientes na discussão.
Face aos valores envolvidos e ao número de bolsas que se reduziu é difícil perceber como evoluirá o sistema científico. E esta redução surge, sem mais explicações, como perigosa se permanente.
Igualmente importante, e talvez até mais crucial, é saber como é que as actuais opções irão alterar o emprego científico de natureza permanente.
Sobre ciência e economia, por agora, a sugestão do artigo de Carlos Fiolhais no Público de hoje. É um tema a que também vale a pena voltar um destes dias.
Declaração de interesses: sou docente e investigador na Universidade Nova de Lisboa.
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