Momentos económicos… e não só

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Sobre o Relatório de Primavera 2015 (1)

Saiu na semana passada o Relatório da Primavera do Observatório Português dos Sistemas de Saúde. Mantém uma tradição iniciada em 2001, e que é de agradecer. Tal como em anos anteriores, este ano repetiu-se a “dança mediática” habitual, com as notícias baseadas no Relatório a dizerem que tudo vai mal no sistema de saúde Português (sobretudo dedicam-se ao Serviço Nacional de Saúde) e do lado do Governo a reacção a desvalorizar as observações do Observatório.

O Relatório tem oscilado ao longo dos anos na linha fina que separa o relatório técnico do relatório de intervenção política, pendendo com regularidade mais para o segundo do que para o primeiro tipo de relatório, e as reacções que suscita são reflexo disso mesmo. Tem também faltado uniformidade temporal ao relatório – se é certo que todos os anos haverá aspectos que é importante focar de novo, também seria importante que quem lesse os vários relatórios elaborados ao longo do tempo conseguisse ficar com uma ideia rápida do que tem sido a evolução do sistema de saúde português. Por exemplo, lembro-me que nos primeiros relatórios havia propostas interessantes de como pensar na relação entre todos os interessados (“stakeholders”), e que essencialmente desapareceu nas versões mais recentes.

É recorrente a queixa de quem faz o relatório da falta de informação, e sendo verdade em considerável medida creio que ainda assim se poderia fazer mais do que surge no relatório. Pelo menos este ano não é dado tanto destaque como no passado recente a notícias de jornal como sendo exemplos de regularidades do Serviço Nacional de Saúde.

O grande tema deste ano é o acesso aos cuidados de saúde em tempos de crise. A este tema é dedicado o capítulo 2 do Relatório de Primavera 2015. Há, logo no início, o cuidado de estabelecer o que se deve entender por acesso, contemplando um quadro conceptual que se começa a generalizar onde entram o tempo em que se consegue satisfazer uma necessidade de cuidados de saúde, a capacidade de resolver essa necessidade e a protecção financeira existente. O texto fala frequentemente em procura e oferta, e não há qualquer referência ao equilíbrio entre as duas. Esta questão não é meramente de quadro conceptual, pois altera a forma de interpretação dos indicadores que são recolhidos.

Por exemplo, o acesso a consultas ou o acesso aos serviços de urgência resultam da oferta da procura – se houver o equipamento e os recursos humanos disponíveis, mas a procura exceder em muito a capacidade o tempo de espera será muito elevado, e não haverá acesso em tempo adequado, como resultado dos aspectos de oferta e procura; se houver oferta e não houver procura, há acesso mas é irrelevante e é apenas um desperdício de recursos; se houver procura e não houver oferta, tem-se um problema de falta de acesso.

De forma similar, quando se fala em despesas de saúde no momento de utilização (o chamado “out of pocket”), não é uma aspecto do lado da procura e sim um aspecto da arquitectura financeira da protecção concedida em caso de doença. As despesas dependem da procura que se realizar. O que é pedido como pagamento directo irá influenciar a procura, e logo a definição do que é acesso adequado em tempo útil, mas é o pagamento por serviço utilizado e não a despesa out of pocket (que é o pagamento por serviço vezes o número de utilizações do serviço, numa versão simples). Assim, o quadro conceptual apresentado no Relatório necessita de afinamentos para que depois a evidência que se consiga recolher possa ser interpretada apropriadamente.

(continua…)


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sobre a discussão do Relatório Gulbenkian na Assembleia da República

Teve ontem, dia 12 de maio, lugar uma sessão de apresentação e debate do relatório da Gulbenkian “Um Futuro para a Saúde- todos temos um papel a desempenhar” no Senado da Assembleia da República, onde os principais partidos apresentaram as suas posições.

Antes de dar conta do que retive das posições apresentadas em detalhe, há vários aspectos que se devem referir. O relatório tem a proposta do que na versão inglesa se chama “compact for health”, e que em português fica “pacto”. Pacto tem uma conotação mais forte, a meu ver, do que é necessário alcançar – o que é preciso conseguir é uma visão partilhada e comum, com princípios, valores e objectivos gerais. Não é assinar uma política comum de saúde para os próximos 25 anos, é assumir objectivos, que podem ser alcançados de várias formas, com margem para diferentes políticas de cada um. E pareceu-me que esses princípios são em grande medida comuns, com diferenças na importância relativa de alguns objectivos e sobretudo nos “instrumentos”. Fiquei com a sensação de apenas o combate político em tempo de eleições impedir que se consiga essa visão partilhada a 25 anos.

Pontos gerais de consenso: disponibilidade para pensar num horizonte alargado, Serviço Nacional de Saúde como elemento central sem que isso signifique eliminar o sector privado do sistema de saúde português (a extensão do sector privado é um dos pontos de diferença), maior participação dos cidadãos (o que significa exactamente também terá diferenças).

Mas vamos aos pontos (telegráficos) de cada intervenção (o que deles retive, naturalmente), tentando ser fiel ao que cada pessoa disse:

Helena Pinto (Bloco de Esquerda)

  • importância de melhorar as condições de saúde e as condições de vida, expressando preocupação com o agravamento das desigualdades sociais cujo aumento afecta as condições de saúde
  • não rejeita trabalhar num horizonte temporal mais alargado, embora não se possam ignorar as necessidades urgentes dos dias que correm
  • colocar o SNS no centro das políticas de saúde
  • a participação dos cidadãos deve permitir que estes tenham uma palavra a dizer sobre como organizar toda a prestação de cuidados de saúde (expressou preocupações quanto a restrições à carta de direitos do utente)
  • defesa das equipas multidisciplinares
  • ir mais longe nos desafios: quantificar e dar meios, não serem apenas projectos, com referência ao que é proposto no relatório
  • realce ao papel dados às autarquias
  • no financiamento do SNS, defesa do uso exclusivo do Orçamento do Estado, rejeitando introduzir pagamentos na prestação e defendendo eliminar os que já existem
  • o financiamento das unidades de saúde deve ser feito com base nas suas necessidades
  • recusar que o Estado saia da prestação de cuidados de saúde; o sector privado é complementar e suplementar, não concorrencial
  • – actualmente, o sector da saúde não colhe a confiança dos cidadãos.

Paula Santos (PCP)

  • A saúde como parte da democracia social
  • Serviço Nacional de Saúde e não sistema de saúde (redução do papel do sector privado)
  • aspecto central – prevenção da doença e promoção da doença é um elemento estratégico, é necessário intervir antecipadamente
  • importância da visão de longo prazo
  • participação da comunidade em geral – é um objectivo meritório desde que não seja no sentido de transferência de responsabilidades do Estado
  • relevância do contributo da comunidade na definição das linhas estratégicas
  • mudança de centralidade dos hospitais para os cuidados de saúde primários
  • preocupação com as desigualdades
  • saúde deve ser vista como um investimento
  • a visão economicista não se pode sobrepor à visão clínica

Teresa Caeiro (CDS/PP)

  • salvaguardar o Serviço Nacional de Saúde
  • a importância de mais desafios: demências, papel dos cuidadores informais e cuidados paliativos
  • a importância de como enfrentar o desafio da inovação (incluindo a distinção entre novidade e verdadeira inovação)?
  • não há soluções fáceis e não há soluções únicas
  • não vale a pena fingir que não há problema de sustentabilidade
  • base de envolvimento alargado: prevenção, literária, acesso a informação, envolver também toda a comunidade
  • as questões da saúde serão transversais a várias áreas
  • necessidade de uma visão estratégica a 25 anos

Luisa Salgueiro (PS)

  • melhoria do SNS depende da capacidade dos actores políticos
  • há uma nova dimensão das responsabilidades a dar aos cidadãos – as estratégias para promoção de estilos de vida saudável estarão associadas com uma nova cidadania
  • evolução positiva nos 35 anos do SNS não impede que haja espaço para melhoria
  • relevância da definição de uma estratégia de sustentabilidade
  • é positivo o reforço da saúde pública
  • relevância de aprender para depois generalizar
  • este relatório não critica os limites constitucionais e confia no actual sistema
  • o próximo governo encontrará um SNS fragilizado

Luis Montenegro (PSD)

  • relatório foi elaborado num período de dificuldade acrescida para Portugal
  • o sistema de saúde apresentou resiliência pela dedicação dos profissionais de saúde
  • não colhe a ideia de que o SNS está mais fragilizado hoje
  • atender ao esforço feito para regularizar a dívida, o que foi feito mantendo o essencial do SNS
  • importância do combate às situações de fraude
  • apesar de todas as dificuldades, o SNS conseguiu oferecer mais (melhoria de acesso com mais consultas, internamentos, urgências; evolução da política do medicamento).
  • aumento das isenções das taxas moderadoras
  • fazer o debate sem estar à procura de limitações ideológicas, encarar a evolução do SNS com a distância possível do combate político imediato
  • proposta de um pacto, comprometimento alargado dos partidos políticos, mas também dos cidadãos, autarquias, profissionais de saúde, etc… – ideia que não deve ser desmerecida
  • imperioso garantir estabilidade para que se produzam resultados
  • não há divergências de fundo quando aos grandes objectivos

Paulo Macedo (Ministro da Saúde)

  • o relatório teve o cuidado de conhecer o presente e as tendências para estabelecer o ponto de partida
  • necessidade de um compromisso quanto ao futuro, com um conjunto de princípios que não sejam apenas generalidades
  • temos um SNS de elevada qualidade que presta serviços relevantes e é tido em apreço pela população
  • para o futuro: reduzir a mortalidade precoce, aumentar a qualidade de vida acima dos 60 anos, melhor cuidados informais também potenciais pelas tecnologias de informação, cuidados de proximidade, maior transparência, maior conhecimento dos resultados em saúde, redução das iniquidade
  • primeira iniciativa, redução da infecção hospitalar, está no terreno
  • a prazo, obter custos de infraestrutura mais baixos
  • como aumentar a liberdade de escolha do cidadão?
  • é saudável a diferença entre partidos, dentro de um compromisso global

Guilherme Silva (presidente da sessão, vice-presidente da Assembleia da República)

  • comum a todas as intervenções – contributo positivo do relatório produzido pela Fundação Calouste Gulbenkian
  • necessidade de passos de convergência para uma visão estratégica a 25 anos
Créditos fotográficos: Facebook da deputada Luisa Salgueiro

Créditos fotográficos: facebook


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estudo da ERS “Os seguros de saúde e o acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde” (II)

O estudo da Entidade Reguladora da Saúde faz também uma comparação da presença de seguros de saúde em vários países europeus.

Esta comparação precisa de ser realizada com grande cuidado, pois a própria arquitectura dos sistemas de saúde dita papéis muito diferentes para o seguro de saúde.

Em Portugal, com um sistema de saúde baseado no Serviço Nacional de Saúde, que é essencialmente um seguro público de saúde, o espaço para o seguro privado de saúde é menor do que no outros países.

Existem, conceptualmente, três grandes áreas de intervenção do seguro privado quando se tem um Serviço Nacional de Saúde num país:

a) o seguro de saúde voluntário privado pode ser substituto do Serviço Nacional de Saúde, na modalidade de opting-out, em que cobre os mesmos riscos de saúde que o Serviço Nacional de Saúde;

b) o seguro de saúde voluntário privado é complementar ao Serviço Nacional de Saúde, no sentido em cobre riscos e cuidados de saúde que não são cobertos pelo Serviço Nacional de Saúde ou dá cobertura de seguro aos pagamentos directos das famílias;

c) o seguro de saúde voluntário privado duplica a cobertura do Serviço Nacional de Saúde, como forma de assegurar um acesso mais rápido a cuidados de saúde.

Nos países em que não há Serviço Nacional de Saúde, a cobertura básica de protecção financeira contra as despesas inesperadas em cuidados de saúde vem dos seguros de saúde que naturalmente vão ter um peso no financiamento da saúde muito maior. A média global, incluindo todos os países, faz por isso pouco sentido. Sobretudo se a comparação pretender ver qual o espaço que existe para o crescimento dos seguros de saúde em Portugal.

Adicionalmente, para falar no espaço de crescimento de seguro de saúde privado em Portugal é necessário pensar no que é verdadeiramente risco que pode ser coberto. Por exemplo, seguros anuais têm dificuldade em cobrir doentes crónicos, pois para esses parte do risco referente ao que vão precisar de cuidados de saúde desapareceu. O risco que existiu antes (de virem a ser ou não doentes crónicos) precisaria de seguros plurianuais, com regras de entrada e de saída eventualmente demasiado complexas para serem exequíveis em contratos que se pretendem também de simples entendimento. Há soluções para esses aspectos, afinal há países com financiamento das despesas de saúde assentes em mercado privado, e fortemente regulado, de seguro de saúde como a Suíça e a Holanda. Mas não é claro que essas soluções sejam as mesmas quando existe um Serviço Nacional de Saúde que cobre esses riscos. Por esse motivo, a discussão do espaço para seguro de saúde privado não pode ser realizada apenas com base numa comparação entre países.