Momentos económicos… e não só

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desigualdades legítimas e ilegítimas – o imposto de 75% em França

Num interessante artigo de João Cardoso Rosas no Diário Económico, entitulado “imposto a 75%”, da análise da proposta francesa de tributar os rendimentos anuais acima de 1 milhão de euros (taxa marginal, apenas aplicável ao que exceder esse valor), a desigualdade é apresentada como “legítima” por João Cardoso Rosas  “na medida em que permita a existência de um sistema de incentivos sociais” e afirma ainda que “se as desigualdades são justificadas desta forma – e não há nenhuma outra plausível para as justificar” então o imposto de 75% faz sentido.

Ora, é sobre este último aspecto que tenho dúvidas em geral. Primeiro, porque estamos a olhar apenas para um indicador – rendimento gerado num ano que passa pelo sistema de impostos. Rendimento não é equivalente a riqueza, e nem tudo o que é “retorno económico” passa pelo sistema de impostos, ou pelo menos não passa da mesma forma. Uma propriedade agrícola que tenha produtos que são consumidos pelos seus proprietários não passa pelo mercado, não gera rendimento tributável embora gere retorno económico. Não é que esta seja uma situação frequente ou qualitativamente importante; ilustra apenas que rendimentos sujeitos a imposto não são uma medida completa para analisar desigualdades. Pode ser a melhor que temos, mas daí não a podemos tomar como moralmente absoluta e fonte de legitimidade.

O segundo aspecto sobre as desigualdades de rendimento é que podem ser o resultado de escolhas livres e lícitas de cada pessoa. Para um exemplo simples, suponhamos duas pessoas, com formação que lhes permite ter exactamente as mesmas duas oportunidades de rendimento: a) trabalhar 16 horas por dia, com rendimento bruto de 8,000 euros, e b) trabalhar 7 horas por dia com rendimento de 3,000 euros por mês. (os valores são apenas para ilustração)

Será que é lícito criticar a opção de umas pessoas por a) e de outras por b)? Se uns escolherem a) e outros escolherem b), temos desigualdades de rendimento, mas também desigualdades de tempo de trabalho – porque devem ser as primeiras removidas por tributação, mas não as segundas? É aqui que não sigo o princípio de legitimidade de João Cardoso Rosas em dizer que apenas os incentivos sociais justificam desigualdades de rendimento. Se essas desigualdades resultarem de escolhas diferentes por haver preferências diferentes para um mesmo conjunto de oportunidades, porque não são legítimas?


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Sanfil e reportagem da SIC

Na semana passada tive a oportunidade de comentar uma reportagem da SIC sobre uma empresa na área da saúde de Coimbra, a Sanfil, que surgiu nos holofotes mediáticos por esta via. O comentário na SIC está aqui.

Alguns comentários complementares:

a) não há mal em si em empresas privadas crescerem na área da saúde; neste caso, houve primeiro crescimento orgânico (expansão das actividades) e depois por aquisição;

b) os processos produtivos de cuidados de saúde devem ser escrutinados, sejam no sector privado ou no sector público – embora haja que fazer distinção entre má prática e fraude

c) problemas com trabalhadores em processos de aquisição não são uma novidade, em qualquer área económica, nomeadamente nas empresas adquiridas e cujos dirigentes são frequentemente substituídos; é preciso distinguir nestes processos o que são relações laborais difíceis de má gestão e de prática clínica desadequada;

d) a facturação excessiva na prestação de cuidados de saúde é uma prática demasiado fácil, cá e em qualquer outro país; no caso desta notícia, importa conhecer se foi uma prática pontual ou generalizada. Quando há facturação explícita, é necessário acompanhar com verificação e auditorias  regulares (qualquer que seja a natureza dos prestadores);

e) importa saber se os problemas relatados se traduziram em problemas nos cuidados prestados aos cidadãos, sendo um primeiro ponto de informação conhecer se houve queixas dos cidadãos tratados na Entidade Reguladora da Saúde;

f) a informação de que existe um parecer sobre “reserva de monopólio” sobre relações com o sector público (SNS) revela um aspecto relevante – este problema é relatado no contexto de uma luta empresarial entre entidades privadas; de qualquer modo, essa “reserva” em si mesmo não tem qualquer razoabilidade do ponto de vista económico (e legal, se atendermos à legislação de defesa da concorrência), pois a promoção de alternativas de escolha é também contrária a esta ideia de “reserva” (empresas privadas fazerem investimentos não garante a obrigatoriedade do sector público garantir a procura).

No final, resulta que as menções a prática de prestação de cuidados ou serviços desadaptada devem ser analisadas e que provavelmente se está a assistir a uma concorrência entre entidades privadas que se tornou feroz e utilizando “instrumentos” não-económicos.

Veremos depois em que dará isto tudo.

 


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Sextas da reforma: a lei de enquadramento orçamental

Decorreu na sexta-feira dia 10 de Janeiro mais uma sessão das 6ªs da reforma, tocando um aspecto que provavelmente afasta a maior parte das pessoas pelo (des)interesse que desperta – a lei de enquadramento orçamental. O formato desta sessão foi diferente dos anteriores, pois em lugar de uma apresentação com comentadores adoptou-se o formato de debate, com 4 ex-secretários de estado e coordenação de Teodora Cardoso, que lançou um conjunto de tópicos para discussão. O ponto de partida e as apresentações dos intervenientes encontram-se nos links seguintes: Introdução de Teodora Cardoso;  Norberto Rosa;  Manuel Baganha;  Emanuel SantosLuis Morais Sarmento.

Mas o que resultou do debate e discussão? A grande conclusão é que a Lei não é má, mas não atinge os objectivos pretendidos, e o que acontece? nada… (comentário inspirado num célebre sketch humorístico) a não ser incapacidade de controle orçamental.

Resumo da sessão (pessoal, com poucos comentários meus dentro de [ ]):

Lei da enquadramento orçamental. Até aqui a lei não teve os resultados de estabilidade e sustentabilidade orçamental pretendidos. A sua presença na lei não garantiu os resultados.

Não é por falta de regras e princípios que há problemas orçamentais. Lei de enquadramento orçamental tem valor reforçado e apesar disso… não produz os resultados pretendidos. É necessário alterações constitucionais para a regra de equilíbrio orçamental? Não é necessário, na visão de Norberto Rosa, e estar na Constituição também não garante que seja respeitado. A Alemanha não respeitou. E o rácio da dívida pública foi sempre aumentando, apesar da presença da regra de ouro, mesmo nesse país.

Comparação da dívida pública – Portugal está bem até ao inicio da crise, em 2008, que foi mais intenso em Portugal do que nos outros países europeus (excepção Grécia e Irlanda). Olhar para nível e trajectória, e ver a capacidade das administrações públicas gerarem fluxos necessários para a pagar.

Questão: o saldo estrutural é o melhor indicador para ter restrição à política orçamental? Não, segundo Norberto Rosa, é de difícil compreensão para o público em geral, e tem variações excessivas para ser útil como guia (revisões por atualizações dos cenários macroeconómicos por exemplo). Instrumento sugerido como alternativa: saldo primário como medida de estabilidade da dívida pública. Evolução da dívida pública – 1985 – 2000 – estabilidade do rácio, cresceu a partir dai acelerando depois de 2008 – saldo primário foi o principal factor de crescimento. Efeito snow-ball – taxa de juro e crescimento económico conjunto. Elemento residual: anos 80 e desornamentarão. Para reduzir a dívida pública, o saldo primário teria de ser 4,6% e reduzir até 4% (em 2034). É quase impossível: 5 mil milhões de redução da despesa primária. Sugestão: saldo primário ser sempre positivo, e valor que permita redução gradual do rácio da dívida para valores perto dos 60%.

[O que fará supor que esta regra seria cumprida, face à experiência recente de lidar com regras em Portugal?]

Principio de plurianualidade – favorável a limites de despesa – limites máximos para a despesa a médio prazo. Tectos para a despesa sem juros serem vinculativos, à semelhança da Suécia. Gestão flexível – competência para se autorizarem a realização de despesas e o seu pagamento; libertação de créditos depende da verificação de cabimento. Sugestões: limitar a capacidade do governo em reduzir a capacidade de gestão autónoma dos serviços; permitir a utilização dos saldos do ano anterior (premiar a boa gestão); agregar serviços por ministério; estabelecer à semelhança de Espanha que juros e amortizações da dívida pública têm prioridade sobre as restantes despesas; simplificar a lei do orçamento do estado; terminar com as cativações às dotações orçamentais; fazer uma revisão global e simplificação da atual lei do enquadramento orçamental.

Manuel Baganha: Lei actual tem detalhes excessivos. Que tipo de lei de enquadramento orçamental? A Lei de Enquadramento Orçamental (LEO) teve 7 alterações de 2001 a 2013. Estas alterações eram mesmo necessárias? Segundo Manuel Baganha já estava tudo na lei de 2001. Se já lá estava tudo e não se conseguiu controlar, o problema não estará na Lei  e sim noutro local ou noutra área. A implementação da lei é o principal problema [porquê?] Existem princípios a mais na LEO. Com muitos princípios é fácil entrarem em conflito entre si (ou são redundantes). Há princípios a mais na LEO. A economia, eficiência e eficácia devem ser sempre seguidos, não faz sentido estarem aqui na LEO. Não é preciso alterar a lei para assegurar os objectivos; mas há melhorias que podem ser introduzidas – exemplo tratamento dos activos e passivos financeiros. Retirar da lei o que for aplicável ou que se sabe que nunca será aplicado. Avaliar o POCP. Não será possível ter uma LEO simples não por razões técnicas e sim por razões políticas.

Emanuel Santos: Só houve uma alteração da LEO em 2005-2011, apenas com uma alteração e iniciativa da AR e apenas num artigo. É possível fazer gestão sem alterar a LEO. Primeira LEO surge por imperativo da constituição. Segunda também se segue a uma revisão constitucional. Terceira idem. Lei de 2001 decorre dos tratados do euro e da disciplina orçamental aí existente. Concorda que saldo estrutural não é boa ideia para colocar na lei. Praticamente nenhum país cumpre a regra do saldo estrutural. Portugal apresenta bons resultados na redução do saldo estrutural. Comparação dos yields da divida pública com redução de saldo estrutural é divergente (comparando com Irlanda e Espanha). Relatórios da OCDE eram favoráveis ao progresso. A crise de 2008 foi o que alterou o rumo. Questão que coloca: haverá um enquadramento legal óptimo?

Houve diversas reformas no período 2005-2011 com impacto duradouro no equilíbrio e estabilidade das finanças públicas, tendo várias ficando incompletas: PRACE, reforma do  sistema de carreiras vínculos e remunerações, SIADAP, simplex, convergências dos sistemas de saúde da administração pública, convergência dos sistemas de protecção social, reforma da segurança social, revisão das leis das finanças locais, controladores financeiros. Como conclusão, ser importante ter um comando político que consiga fazer reformas com eficácia. Porque surgem problemas? O  legislador não compreende que para se cumprir a lei é necessário ter instrumentos que permitam fazer a gestão desejada dos recursos. Sugestões de melhoria: Reforçar o principio da autoridade orçamental; Eliminar detalhes excessivos; Rever  legislação complementar; Dar maior ênfase às funções do Tesouro e ao financiamento do OE; Repensar as disposições sobre o orçamento de base zero;  Rever a sistemática da LEO; Ter presente a estrutura da despesa pública

Luis Morais Sarmento: também concorda que a LEO só por si não assegura os resultados pretendidos. Mas bons procedimentos podem ajudar a atingir esses objectivos. A LEO de 2011 permitiu antecipar algumas coisas do six-pack. Conseguiu evitar a fragmentação do nosso processo orçamental. Pensar nas 5 fases do processo orçamental e em qual  é a função do cidadão (ou dos seus representantes) em cada uma destas fases. É ele que paga e por isso está em todas as fases. Primeira fase: o que vamos querer ter de bens e serviços públicos? Auditoria e prestação de contas: papel de acionista. [Papel adicional: Estado tem poder de distribuir – “assalta a mesa do orçamento” – quer serviços sem noção do pagamento/custo associado – via contacto directo com decisores políticos, via assembleia da república] A informação que o cidadão tem ao longo do processo não tem que ter sempre a mesma informação. Os interesses vão variando ao longo do ciclo do processo orçamental. Fragmentação orçamental – custos marginais da despesa pública não são internalizados pelos decisores orçamentais quando tomam decisões de despesa. Top down reduz, tal como a redução do número de decisores. Fragmentação como fragilidade: ciclo orçamental, fragmentação da informação, fragmentação orgânica. Ciclo orçamental parece ok, apenas com demasiados documentos apenas na primeira fase. Simplificação da primeira fase. Apresentação de documento na primavera, também compatível com o semestre europeu. Na primeira fase há demasiado detalhe (referência a 4000 linhas de aprovação do orçamento na assembleia da república). Defende a prestação de contas e certificação de contas quase imediata. Detalhe excessivo nas linhas de orçamento desfoca a discussão orçamental. Classificação económica – 491 alineas, funcional 54, classificação orgânica 401, fontes de financiamento 42, cruzando tudo dá mais de 440 milhões de “células”. Fragmentação orgânica: não há separação entre as funções de apoio à definição política e as funções operativas, não há intermediação e controlo ao nível sectorial. O ministério das finanças não sabe onde poderá delegar controle orçamental. Não se pensou como alterações da estrutura possam trazer vantagens para o processo orçamental. Distribuição do orçamento deve ser feito pelo ministério, que seria o interlocutor do MF. [nalguns casos correntes vemos completo alheamento dos ministros e secretários de estado da execução e gestão orçamental dos seus ministérios). Devemos também olhar para o que temos nos serviços públicos. Dois tipos de serviços públicos: natureza operacional e natureza de apoio à definição das políticas e sua implementação. Estes últimos deveriam ser agregados e depois relacionam-se com as unidades de natureza mais operacional.

[grande linha dos argumentos apresentados: ninguém acha que a LEO resolva o problema, então o que fazer?]

[para resolver a fragmentação, será que se pode pensar em OPAs “hostis” dentro do governo de uns serviços a proporem-se ficar com o orçamento e as responsabilidades de outros?]

Teodora Cardoso:  Para nunca funcionar tem também que haver alguma coisa na lei que não está bem. Necessidade de o orçamento aderir e incorporar de facto a óptica plurianual. O orçamento tem que ser elaborado numa base patrimonial e não numa base de caixa, e para isso tem que haver contas patrimoniais, o que não existe hoje em dia. Este é um problema que terá de ser resolvido se se quiser passar a cumprir a lei. Para se saber quais as implicações em todos os dados quando se assume um compromisso de despesa. E também se verifica o mesmo quanto a direitos (como pensões e saúde), há que saber o impacto orçamental presente e futuro. Adequação do principio do saldo estrutural para estabilidade orçamental foi criticada, mas tem algumas vantagens, por exemplo, considerar o equilíbrio ao longo do ciclo económico (e torna-se um número menos bem definido por trabalhar com previsões). Os países podem assumir mais instrumentos para cumprirem as regras de equilíbrio orçamental. Há que completar a legislação europeia em termos nacionais, e não há esse esforço em Portugal. A legislação europeia tem regras muito gerais, que depois têm de ser adaptadas em detalhe em cada país. Há empresas públicas que mais cedo ou mais tarde vão aparecer no défice orçamental, e que excluímos porque a definição do Eurostat (ainda) não as inclui.

 

Discussão: Orçamentos com base em compromissos é diferente de orçamentos patrimoniais. Olhar para os parceiros europeus e ver o que funcionou. O caso sueco é um bom exemplo em que os procedimentos orçamentais funcionaram bem. Não têm um orçamento patrimonial. Temos que perceber o que está no orçamento, e orçamento patrimonial não dá isso. Neste caso, a criatividade não é bem vinda, não temos necessidade e não devemos ser criativos. Referência ao caso austríaco. Terminaram em 2011 uma alteração do processo orçamental que começou em 1998, com duas alterações constitucionais. Construiram um consenso sobre a reforma dos procedimentos orçamentais. Não se está a falar de opções políticas e sim de procedimentos. Suécia define tectos nominais de despesa a três anos. Norberto Rosa retoma o argumento de não ser preciso inovar demasiado. POCP foi bem feito e teve um problema à nascença, ter três meses para ser aplicado, de setembro até final do ano, não era possível. Transparência da decisão – governos assumem encargos plurianuais mas a assembleia da república não se pronuncia. Serviços partilhados para o governo na contabilidade, não é preciso ter ministério a ministério. Conta patrimonial previsional faz todo o sentido. Autorizações é que não faz sentido. Estas mudanças demoram muito tempo e não é por incompetência das pessoas.

Frase chave sobre a transformação do processo orçamental: Demoramos muito tempo a decidir. Quando decidimos queremos tudo amanhã. E acabamos por ficar com nada. (da autoria de Luis Morais Sarmento)

 

 


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ADSE – o que significa a nova taxa de contribuição?

Foi agora anunciado um novo aumento da contribuição para a ADSE por parte dos seus beneficiários, e segundo declarações atribuídas à ministra das finanças “por uma questão de facilidade de tratamento orçamental, nós vamos manter esse 1,25% [que é pago pela entidade patronal – serviço do Estado – ] que se traduzirá em saldo dos subsistemas que reverte a favor do Orçamento do Estado”. O valor pode ir até 3,75% do ordenado.

Estas declarações revelam mais do que parece. E é de separar duas situações: a) os 3,75% de contribuição correspondem realmente ao auto-financiamento da ADSE; b) os 3,75% de contribuição geram receitas que ultrapassam as despesas da ADSE, criando um excedente, mesmo que a contribuição do departamento do estado onde se encontra o trabalhador seja reduzida a zero.

Nesta segunda alternativa, a contribuição de 3,75% ser suficiente para gerar uma receita superior às despesas efectivas da ADSE em cuidados de saúde, funcionará como um imposto adicional sobre os funcionários públicos beneficiários da ADSE. O “preço” do “seguro” estabelecido é superior às necessidades, revertendo o “lucro” para o “accionista” (o ministério das finanças).

Na primeira alternativa, como o aumento da contribuição dos beneficiários ainda não é suficiente para cobrir todos os custos da ADSE, a não redução da contribuição do serviço do estado do beneficiário corresponde a uma forma de distribuição do “corte orçamental”.

Em qualquer destas situações, um aumento para 3,5% ou 3,75% poderá começar a alterar o equilíbrio financeiro da ADSE por saída de beneficiários – a minha expectativa é que sejam os mais novos e mais saudáveis, com rendimentos médios / elevados, a ganhar com essa saída.

O grande atractivo actual da ADSE é a cobertura acima dos 65 anos e a extensão dessa cobertura nalgumas áreas (como a oncologia). As vantagens dessas coberturas serão menos evidentes para os grupos etários mais novos.

Mas há um outro grupo que poderá ser afectado, os beneficiários reformados – para os quais a subida da contribuição para a ADSE se adiciona aos cortes de pensões. Por uma questão de mera restrição financeira, alguns destes beneficiários poderão deixar a ADSE, levantando um de dois problemas: a) ou são relativamente saudáveis, e como tal contribuintes líquidos, e a sua saída contribui para agravar o desequilíbrio financeiro da ADSE; b) ou são utilizadores frequentes dos serviços disponibilizados pela ADSE, e neste caso a sua saída favorece o equilíbrio financeiro, em detrimento do tratamento e do estado destas pessoas, que terão de recorrer apenas ao Serviço Nacional de Saúde.

Pode ainda dar-se um outro efeito – com um aumento das contribuições, passar a existir uma maior utilização por parte dos beneficiários – dado que pagam e sentem que pagam, então vão usar “para valer a pena”. Mas se houver maior utilização, o equilíbrio financeiro poderá voltar a ser um problema.

Devido à presença de diferentes motivos para deixar a ADSE, o efeito líquido sobre o seu equilíbrio financeiro é difícil de prever, uma vez tomadas decisões de saída por alguns dos actuais beneficiários.

Nas declarações públicas sobre as medidas adoptadas para o ajustamento da taxa de contribuição para a ADSE não é referido, que eu tenha reparado, o aspecto de qual o ajustamento de comportamento dos beneficiários. Aparentemente, a hipótese subjacente aos cálculos é a de que as saídas serão negligenciáveis, e se for de facto esta hipótese, seria bom conhecer que base de evidência é usada para a estabelecer.


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Sorteios e facturas

A ideia de sortear carros com base nas facturas pedidas pelos consumidores que aparentemente vai ser usada em Portugal (de acordo com o que está no site do ministério das finanças – ver aqui) é, à primeira vista, estranha por misturar dois mundos que raramente associamos – a sisudez fiscal com os jogos de sorte e de azar.

Esta ideia de associar sorteios ao cumprimento de obrigações fiscais surgiu recentemente da literatura sobre comportamento humano em ambientes económicos (a chamada economia comportamental). Diversos estudos têm mostrado a capacidade de pequenas alterações no enquadramento das decisões individuais produzirem resultados que a mera imposição de regras ou obrigações não é capaz, e a utilização de lotarias ou sorteios é uma dessas “pequenas” alterações. A ideia em si mesma não é originalidade portuguesa (leia-se aqui).

Apesar do atractivo que a ideia em si mesma tem e de se terem verificado efeitos de mudança de comportamento, a minha preocupação com esta aplicação em Portugal é que forma os portugueses vão encontrar para “jogar” com o sistema, ou melhor aproveitar o sistema montado de forma a maximizar as suas possibilidades de ganhar. Por exemplo, se cada factura dá direito a uma entrada para o sorteio, então o incentivo a desmultiplicar facturas é imenso – cada item comprado num supermercado deveria dar lugar a uma factura diferente porque corresponde a mais uma entrada para o sorteio.

Estou já a pensar pedir factura por cada item adquirido – por exemplo, os 30 cêntimos de cada pão adquirido poderão ter a sua facturinha. Estou já a ver os efeitos no emprego nas caixas dos supermercados se cada cliente quiser uma factura por item das compras do mês, na indústria do papel, na indústria dos servidores de computador, na indústria de… (adicionar o que se lembrarem).

Provavelmente vai haver alguma afinação das regras, mas se for limitado o número de entradas por pessoa para evitar este comportamento “abusivo”, também o incentivo a pedir a factura diminui. Por exemplo, se for limitado a um número fixo de entradas, depois de alcançado esse número não há interesse em pedir mais facturas. Estou curioso por saber como este incentivo (perverso?) de desmultiplicação de facturas será tratado.

(e claro também curioso de saber se será sorteado um Tata, um carro chinês, um carro alemão …)


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chegou ao fim

o blog de Pedro Lains, que durante cinco ano nos fez reflectir sobre a crise económica e as opções adoptadas. Concordando-se, ou não, com as suas posições, o Pedro sempre teve uma escrita clara e com posição definida sobre os diversos assuntos do dia. É com pena que o vejo fechar o blog. Deixou uma colectânea dos posts disponíveis em pdf para quem quiser rever e ter uma ideia da cronologia dos acontecimentos.

Tenho a esperança de que o o titulo mais adequado para este post seja “chegou ao fim (por agora)” e que o Pedro retome um dia a regularidade da escrita.

É certo que todos os projectos devem ter um começo e um fim, embora a lógica de “divulgação científica e discussão perante um público mais alargado” (como escreve o Pedro Lains no seu último post) rapidamente evolua de projecto para quase diário pessoal. A regularidade da escrita de um blog individual rapidamente choca com a necessidade de tempo para pensar de forma original, e de mini-ensaios passa-se facilmente ao comentário. Mas um comentário informado que nos faça pensar é também útil, mesmo que não respeite todo o rigor que se tem na escrita de textos académicos.

A experiência do Pedro e a sua presença na blogosfera foi um dos aspectos que me levaram a abrir este blog, pelo que não podia deixar de referir aqui a sua retirada (temporária?).

Curiosamente, não consegui encontrar de forma rápida estatísticas sobre nascimento e morte de blogs portugueses de análise económica, nem a sua vida média, para ver se estes cinco anos foram longos ou curtos em comparação com outros blogs de economia. Se alguém conhecer ou tiver disponível essa informação, ou link, adicione via comentários.


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sair da ADSE é possível? é!

mas a decisão é menos óbvia do que parece; o Luis Aguiar-Conraria, que escreve no blog A destreza das dúvidas, colocou uma questão via facebook sobre o que é preciso para sair da ADSE, e é possível que muita gente ande a pensar na mesma questão.

Actualmente, todos os beneficiários da ADSE podem optar por sair do subsistema, sendo essa saída definitiva. Para os que entraram na ADSE após 2006, essa possibilidade está estabelecida aqui, para os que têm ADSE há mais tempo, está estabelecida aqui. Em qualquer caso, o próprio relatório de actividades da ADSE de 2012 refere essa possibilidade (p.20).

Essencialmente, basta escrever a dizer que se renuncia à ADSE, se bem percebi o “novelo” intercruzado das diferentes peças de legislação.

Como as contribuições para a ADSE são estabelecidas de acordo com o rendimento, a saída do subsistema das pessoas de maiores rendimentos provocará um desequilíbrio financeiro na medida em que estas mesmas pessoas sejam contribuintes líquidos (isto é, tenham relativamente pouca utilização). Com a convergência para a auto-sustentabilidade da ADSE, o elemento de subsídio ao seguro que é a ADSE desvanece-se e a comparação com seguros privados poderá passar a ser mais aliciante para os beneficiários com maiores rendimentos. Contudo, ao contrário dos seguros comerciais, que podem ser realizados anualmente, sair da ADSE significa não poder voltar, o que introduz um elemento de contrato intertemporal (unidireccional) na relação dos beneficiários com a ADSE, pelo que as decisões serão mais complexas do que simplesmente comparar a ADSE com seguros comerciais, para um ano de contrato.

Assim, a saída da ADSE, se se pretender que seja uma decisão racional, tem que ter um lado manter mais um ano a ADSE e em cada ano decidir continuar ou sair, e do outro lado, a decisão de saída, sabendo-se que para ter seguro adicional ao SNS terá de ser um seguro comercial.

Se para funcionários públicos jovens e com rendimento relativamente elevado, o valor do que pagam no próximo ano para a ADSE será provavelmente maior do que pagam num seguro de saúde privado equivalente (isto é, que cubra o que consideram ser as suas principais necessidades de cuidados de saúde durante o próximo ano), já a prazo poderá ser diferente – por exemplo, a cobertura em caso de doença oncológica é mais abrangente na ADSE do que nos seguros de saúde privados, e a saída hoje da ADSE impede de usufruir dessa cobertura daqui a 10 ou 20 anos (por ser uma saída definitiva). A comparação com os seguros privados tem por isso que ser feita com base numa perspectiva intertemporal mais longa. E esta perspectiva será mais fácil de ter para idades mais avançadas onde a percepção de doença futura será mais próxima; se estas idades tiverem também uma correlação positiva com maiores rendimentos, poderá ser menos óbvia a vantagem de sair da ADSE.

Não tenho nenhuma regra a apresentar ou a sugerir, ou sequer previsão sobre o que sucederá após o aumento das taxas de contribuição. Pretendo apenas evidenciar que a decisão é racionalmente menos óbvia do que parece, e do que provavelmente será discutida publicamente.


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As pensões são dívida do Estado?

Roubei o título ao artigo de Ricardo Reis (aqui) que dá a conhecer a situação nalguns Estados dos Estados Unidos, em que as pensões dos funcionários públicos, decorrentes dos descontos que realizaram, são consideradas dívida como num contrato comercial, e como tal foram pagas a 100% mesmo quando os Estados tiveram que reduzir substancialmente a sua despesa pública.

A transposição desta experiência americana para Portugal não é directa. Embora não conheça os detalhes dos sistemas de pensões mencionados por Ricardo Reis, a minha conjectura é que se baseiam num sistema de contribuições definidas, em que os fundos vão sendo acumulados, e é o valor desses fundos (actualizado de acordo com os investimentos que os fundos de pensões realizam) que vai gerar o montante da pensão. Nesse contexto, a entrega de contribuições configura um contrato.

Em Portugal, no sistema público, as pensões de hoje são pagas pelas contribuições dos actuais trabalhadores e com transferências do orçamento do estado quando necessário. É por isso uma relação entre Estado, beneficiário da pensão e contribuinte da pensão bem mais difusa. E por isso mais fácil de apelar à ideia de que o contrato estabelecido é pagar a pensão que é possível com as contribuições que se conseguem recolher para o sistema ser sustentável.

O argumento da confiança é, a meu ver, em grande medida um argumento sobre qual é o contrato que de facto se estabelece e entre quem, aspecto que socialmente temos dificuldade em discutir.

Se o contrato for algo como “o Estado compromete-se a pagar as pensões pelas regras definidas, nem que para isso seja necessário tributar fortemente todo o resto da economia”, então as pensões devem ser pagas a 100%, e tributar ou aumentar as contribuições dos trabalhadores o que for necessário e o que custar aos restantes cidadãos, ou cortar fortemente nos  serviços públicos (a restante despesa pública, que também inclui algumas outras prestações sociais). Note-se que se dá valor absoluto maior a este contrato do que a outros contratos “de confiança”. Por exemplo, será aceitável como sociedade que para pagar as pensões a 100% se eliminasse o apoio à situação de desemprego (evitei propositadamente o termo “subsídio de desemprego”, ver noutros posts porquê)?

Se o contrato for algo como “o Estado compromete-se a pagar as pensões de acordo com o menor valor da comparação entre as regras definidas e o valor permitido pelas contribuições recolhidas”, então as pensões devem oscilar de acordo com as contribuições, e no actual contexto deveriam diminuir.

Diferentes contratos estabelecem diferentes regras de ajustamento e de quem suporta esse ajustamento. E regras de constituição de contas individuais (o chamado sistema de capitalização, que pode ter também redistribuição incluída) ou regras de sistema de repartição (os trabalhadores activos de hoje pagam as pensões dos reformados de hoje) têm também implicações diferentes.

Assim, a experiência americana relatada por Ricardo Reis é útil para mostrar que clareza de regras permite perceber melhor qual o contrato que de facto está presente, e agir de acordo com esse contrato. A situação portuguesa actual em que cada parte quer interpretar o contrato implícito de diferente modo (e se os actores políticos trocassem de lugar, tudo leva a pensar que trocariam também as suas posições sobre o sistema de pensões) não permite definir de forma clara qual é esse contrato.

E só depois de ficar claro qual é o contrato que os cidadãos têm com o Estado para o sistema de pensões é que se poderá passar às implicações do mesmo, e à discussão do que é um ajustamento equitativo dos valores das pensões. Procurar usar argumentos de equidade num quadro de ambiguidade quanto ao contrato subjacente é pouco útil.


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dívidas em atraso, ou os famosos “arrears” da troika

É verdade que muita coisa foi sendo feita no Serviço Nacional de Saúde nos últimos anos, numa linha de continuidade que passa por décadas. A crise da dívida pública e o resgate financeiro da República Portuguesa trouxeram o memorando de entendimento e as suas políticas na área da saúde.

Passados estes dois anos e meio de troika, há um desafio principal que ainda não foi resolvido de forma estrutural – no sentido de se terem adoptado mecanismos que impeçam que um mesmo problema surja uma e outra e outra vez. Esse desafio é os pagamentos em atraso, nomeadamente dos hospitais. Em troikês, os “arrears”.

A abordagem de considerar o problema dos arrears como um problema de gestão global dos hospitais, e não apenas uma questão do medicamento, apesar da maioria da dívida ser às farmacêuticas, parece-me ser o elemento central. E há três aspectos que proponho como fundamentais para resolver o problema:

a) quebrar o entendimento implícito ou explícito entre as farmacêuticas e as administrações hospitalares que permitem que estas últimas utilizem a dívida à indústria farmacêutica como válvula de escape da gestão que fazem. Este não é um elemento fácil de alterar, pois as empresas não querem interromper fornecimentos (até por uma razão reputacional) e ao mesmo tempo é difícil ao Estado negar o pagamento de aquisições que podem ser apresentadas como essenciais à sobrevivência de pessoas (curiosamente, a dívida adicional é sempre para coisas “life-saving”, resultado da sofisticação comunicacional das partes). A existência de uma expectativa de prazo de pagamento muito dilatado reflecte-se naturalmente nos preços (o que não é uma característica nova, tendo sido até quantificada no passado por Miguel Gouveia).

 b) obrigar a gerir de facto nos hospitais pelas administrações, evitando escapes que “premeiam” o descontrole, mas dando para o efeito as condições de gestão adequadas. Não se trata apenas de processos centralizados de aquisição ou de melhores plataformas comuns ou criação de grupos Gx, onde x é um número que vai de 4 a 19 (ou similar). A questão, como referi acima, não é de compra de medicamentos e sim de gestão. Mesmo que os medicamentos fossem adquiridos ao preço mais baixo possível, se houver despesas acima de receitas por menor capacidade de gestão noutras áreas do hospital, será à indústria farmacêutica que os hospitais deixarão de pagar. O problema de gestão é ao nível da instituição e não ao nível do medicamento. Os planos estratégicos poderão ser um instrumento relevante, mas para o actual ponto de partida, tendo a vê-los mais como condição necessária do que como condição suficiente.

c) dar um sinal aos fornecedores que a lei dos compromissos é para cumprir, não reconhecendo algumas das dívidas que não estejam cabimentadas. A credibilidade da lei depende do seu cumprimento cabal, incluindo quando impõe penalizações. No caso concreto, divulgar as situações em que não foi reconhecida dívida não cabimentada poderá ter também um efeito pedagógico. O Estado tem também que dar um sinal, dando as condições de orçamento inicial que sejam realistas e compatíveis com gestão adequada, para poder fazer a exigência de cumprimento. É mais importante incluir verbas suficientes no orçamento inicial do que compensar posteriormente dividas que sejam criadas.

Há um  risco em qualquer plano nesta altura: é que dar dinheiro a quem gerou mais dívida é recompensar quem possa ter apostado em não cumprir a lei dos compromissos deliberadamente; O pagamento extraordinário é sempre o último antes do próximo ! como as amnistias fiscais, ou as prescrições/amnistias nas multas…  

Para isto, vejo como necessário:

a) ter orçamentos dos hospitais em termos realistas, e determinados com antecedência; os contratos programas deveriam ter vigência de três anos, rolantes e actualizados todos os anos, e serem assinados até outubro do ano anterior a entrarem em vigor; o problema são as verbas do orçamento do estado – antecipo essa dificuldade – mas podem-se pensar mecanismos que permitam dar esta estabilidade – como um fundo de estabilidade do SNS que fosse usado para compensar as variações anuais das imprevisibilidades das verbas do OE para o SNS – o que pode não ser fácil, mas valerá a pena o esforço de tentar -no fundo criar uma perspectiva de gestão de médio prazo.

Esta ideia exige, como me foi justamente apontado, uma qualidade de gestão e de uma qualidade de decisores políticos que assumam de forma séria e permanente o planeamento estratégico, o compromisso de gestão e a responsabilização de todas as partes. Aqui sublinho “ambas as partes”, uma vez que os decisores do Ministério da Saúde, do Governo em geral, não têm primado pelo cumprimento de compromissos longos. Em geral, existe incerteza sobre se o Estado cumpre aquilo com que se compromete (além da cobrança de impostos, claro) – não é um problema do sector da saúde.

b) ter um registo centralizado em que as empresas fornecedoras ao SNS podem inscrever atrasos de pagamentos em facturas com número de cabimento (ou o controle que quiserem usar), e usar o crescimento desse registo como factor determinante de intervenção dentro dos hospitais; ou seja, usar este registo como forma de quebrar a ligação entre o hospital e o fornecedor para criar dívida. Esta componente depende apenas um forte compromisso político e de resistência às pressões que inevitavelmente surgirão para criar excepções.

 c) ter uma task force de intervenção na gestão – misto de auditoria e consultoria estratégica – nos hospitais que se detectasse um crescimento excessivo de divida, a task force entraria a auditar e a sugerir caminhos de gestão globais a serem seguidos no prazo de um a dois meses pela gestão; e fazer com que fosse um pouco vergonha para os gestores ter esta equipa a entrar lá dentro – e que no limite poderia ir até propostas ao ministro para substituição da administração.

d) ter um reporte mensal da situação de cada hospital, excepto quando durante três meses consecutivos o hospital mostrasse ter a situação sobre controle, nesse caso, o acompanhamento iria sendo mais espaçado – fazer cada gestão merecer a sua autonomia neste campo consoante os resultados.

Para discussão e aperfeiçoamento…