A ideia de sortear carros com base nas facturas pedidas pelos consumidores que aparentemente vai ser usada em Portugal (de acordo com o que está no site do ministério das finanças – ver aqui) é, à primeira vista, estranha por misturar dois mundos que raramente associamos – a sisudez fiscal com os jogos de sorte e de azar.
Esta ideia de associar sorteios ao cumprimento de obrigações fiscais surgiu recentemente da literatura sobre comportamento humano em ambientes económicos (a chamada economia comportamental). Diversos estudos têm mostrado a capacidade de pequenas alterações no enquadramento das decisões individuais produzirem resultados que a mera imposição de regras ou obrigações não é capaz, e a utilização de lotarias ou sorteios é uma dessas “pequenas” alterações. A ideia em si mesma não é originalidade portuguesa (leia-se aqui).
Apesar do atractivo que a ideia em si mesma tem e de se terem verificado efeitos de mudança de comportamento, a minha preocupação com esta aplicação em Portugal é que forma os portugueses vão encontrar para “jogar” com o sistema, ou melhor aproveitar o sistema montado de forma a maximizar as suas possibilidades de ganhar. Por exemplo, se cada factura dá direito a uma entrada para o sorteio, então o incentivo a desmultiplicar facturas é imenso – cada item comprado num supermercado deveria dar lugar a uma factura diferente porque corresponde a mais uma entrada para o sorteio.
Estou já a pensar pedir factura por cada item adquirido – por exemplo, os 30 cêntimos de cada pão adquirido poderão ter a sua facturinha. Estou já a ver os efeitos no emprego nas caixas dos supermercados se cada cliente quiser uma factura por item das compras do mês, na indústria do papel, na indústria dos servidores de computador, na indústria de… (adicionar o que se lembrarem).
Provavelmente vai haver alguma afinação das regras, mas se for limitado o número de entradas por pessoa para evitar este comportamento “abusivo”, também o incentivo a pedir a factura diminui. Por exemplo, se for limitado a um número fixo de entradas, depois de alcançado esse número não há interesse em pedir mais facturas. Estou curioso por saber como este incentivo (perverso?) de desmultiplicação de facturas será tratado.
(e claro também curioso de saber se será sorteado um Tata, um carro chinês, um carro alemão …)
7 \07\+00:00 Janeiro \07\+00:00 2014 às 10:32
Desconhecia esta “ideia”, mas é muito infantil. Independentemente da teoria por detrás, o estado assumir esta medida mostra que não existe qualquer plano sério para combater a desconfiança da sociedade nas instituições que gerem dinheiro público, o que por si trás mais desconfiança nestas mesmas instituições.
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7 \07\+00:00 Janeiro \07\+00:00 2014 às 15:00
A mim repugna-me a ideia mas não me custa acreditar que possa vir a ter alguma eficiência. A comparação que cita do artigo na HBR refere-se, deduzi, da entrega correcta do IRS. Tanto quanto me é dado aperceber pelas respostas que me deram pessoas nossas conhecidas a quem perguntei se conheciam o processo, ou não estará ainda em vigor (mas o artigo é de 2010) ou, estando, não estará generalizado. O que posso confirmar é que, ainda segundo as mesmas fontes, a não declaração correcta do IRS é susceptível de sanções altamente desanimadoras da fraude.
O sorteio que refere, e de que também já tinha ouvido falar, dirige-se à promoção da exigência de facturas … depois de ter sido decretada a exigência de facturas, uma exigência que não entendi porque, ingenuamente talvez, supunha que a exigência de facturas sempre tinha existido. Parece que resultou bastante, segundo notícias divulgadas pelo secretário de Estado das Finanças, mas, pelos vistos, não de forma suficiente. A lotaria aparece agora como um incentivo adicional. Resultará? Talvez.
No entanto, afigura-se-me que há outras vias que poderiam ser trancadas e que, para mim, inexplicavelmente continuam abertas à fuga fiscal. Uma delas é a da apresentação pela generalidade dos restaurantes de um documento que “não serve de factura”. Não conheço outro país que siga este procedimento. Após o pagamento, segue-se geralmente a pergunta “quer factura?” e, se a resposta do cliente é afirmativa, há sempre um, às vezes interminável, tempo de espera pela factura. Por que não decreta o governo a obrigatoriedade de emissão de um, e só um, documento factura/recibo, como se vê por todo o lado civilizado?
Como nem só em restaurantes se observa a fuga ao imposto, e as possibilidades de evasão são menos públicas, afigura-se-me que deveriam os funcionários das finanças, que não são tão poucos quanto isso, actuar como fiscais da entidade em que se empregam e lhes paga. Como ? Pois todos eles são, para além de funcionários das finanças, consumidores de bens e serviços. Em situações de evasão fiscal, tentada ou consumada, deveriam os funcionários das finanças informar os serviços de fiscalização tributária, que diligenciaria no sentido de vigiar apertadamente as situações denunciadas.
A evasão fiscal, como qualquer evasão ou invasão, resulta sempre de uma avaliação do evasor ou invasor, que pondera os valores do risco e do sucesso. Se a sanção da evasão fiscal é relativamente baixa a motivação para a evasão é elevada. Se, por exemplo, Ricardo Salgado soubesse que estaria sujeito a uma penalização desmotivadora não teria acontecido ter corrigido duas vezes o seu IRS. Nesta, como em muitas outras circunstâncias, o exemplo deveria vir de cima e, de lá, vêm frequentemente exemplos incentivadores de práticas condenáveis.
E nem só com “falta de facturas” se ludibriam os cofres do Estado, isto é, os outros contribuintes, os patos que pagam. Também há muito ludíbrio com “facturas falsas”. Um assunto que, só por si, merece outro post. Já lá vão muitos anos, mas convém recordar que vários deputados foram surpreendidos com a utilização de facturas falsas. Era presidente da República, Jorge Sampaio. Tivesse Sampaio, nessa altura, dissolvido a AR, e teria consituido um precedente de referência moral para o futuro. Não fez nada.
E a falta de exigência cívica continuou a progredir na sociedade portuguesa, participante num jogo-de-cabra-cega da justiça animado por foliões, de facto, inimputáveis.
Que pode pensar o cidadão comum de tudo isto? Evade-se, se pode. Candidata-se ao carrinho? Talvez. Depende do que paga para entrar no jogo. Cada rifa tem um preço, relativamente alto muitas vezes.
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7 \07\+00:00 Fevereiro \07\+00:00 2014 às 16:20
Depois disto o proximo passo sera transformar a assembleia da republica em um casino.
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