uma colaboração com a LisbonPH, da Faculdade de Farmácia (U Lisboa): aqui, a abordar a pergunta se estamos a caminho de uma União Europeia da Saúde.
[agora com cut and paste do post original para aqui]
Setembro 30, 2021
O ponto de partida: Os países da União Europeia têm sistemas de saúde muito diferentes.
Os modelos de sistema de saúde diferem na forma como organizam o financiamento (através de impostos no setor público, ou prémios de seguro, com maior ou menor regulação) e na forma como os cuidados de saúde são prestados (via prestadores do setor público ou prestadores privados). Diferem, também, na sua organização (sistemas regionais, integrados ou não, entre outros). Os sistemas de saúde refletem igualmente a diferente valorização dos múltiplos objetivos (por exemplo, na disponibilidade a pagar mais por acesso mais rápido à inovação, valorização da liberdade de escolha pelos doentes, entre outros.).
O caminho à nossa frente: os sistemas de saúde, apesar das suas diferenças, irão enfrentar desafios comuns.
Existem, usando terminologia económica, externalidades e bens públicos (no sentido económico): faz sentido ter uma única Agência Europeia do Medicamento, comum a todo o espaço europeu, e apenas um European Centre for Disease Control and Prevention. Tem também justificação económica para os países da União Europeia juntarem-se para processos de aquisição conjunto de produtos e serviços. É igualmente claro que os vários sistemas de saúde da União Europeia partilham valores como a redução das desigualdades no acesso a cuidados de saúde (por exemplo, é provavelmente consensual que todos os cidadãos tenham acesso a tratamentos para cancro similares na sua eficácia e independentes do país em que a pessoa tenha nascido). É razoável pensar que existe uma convergência europeia nos objetivos globais para os sistemas de saúde, mesmo se os instrumentos para os alcançar (a forma exata como o sistema de saúde se organiza) possam diferir de país para país.
Para se avançar numa ideia de uma União Europeia da Saúde, devemos focar em três pontos essenciais:
a) Solidariedade na proteção da saúde, mas evitar a imposição de regras comuns para concretizar essa solidariedade (que é definida a nível nacional, de acordo com as preferências de cada sociedade);
b) Partilha de informação, conhecimento, melhores práticas e de standards técnicos (aspeto crescentemente importante num espaço digital da saúde a nível europeu, que evolui de forma acelerada);
c) Iniciativas ao nível da União Europeia em áreas onde se tenha tornado claro que a atuação a nível nacional ficou largamente aquém do desejável (um exemplo é a implementação da legislação sobre o consumo de tabaco, essencial na prevenção do cancro).
A construção de uma União Europeia da Saúde terá que ultrapassar várias barreiras:
1) Barreiras que surgem dos políticos a nível nacional (a saúde é o cerne das discussões políticas na maioria dos países europeus; as discussões políticas internas de cada país facilmente levarão alguns partidos políticos a protestar contra decisões importantes a nível europeu neste campo);
2) Barreiras que surgem de posições diferentes dos vários países da União Europeia (por exemplo, sobre as condições e os efeitos dos movimentos internacionais de profissionais de saúde, num contexto de mercado internacional com excesso de procura a nível global);
3) Barreiras que surgem dos pormenores e detalhes técnicos no modo como os prestadores de cuidados de saúde são pagos em cada país;
4) Barreiras que surgem dos políticos europeus e das suas perceções e objetivos.
A principal questão não é alterar as competências da Comissão Europeia, ou de qualquer organismo a nível europeu (seja no financiamento ou na prestação de cuidados de saúde). A questão é como alargar ou criar instrumentos a nível europeu que os sistemas de saúde nacionais possam usar.
O que é possível fazer: pensar em termos de instrumentos que possam ser usados de forma generalizada, qualquer que seja o sistema de saúde do país em causa, e de uma forma flexível (participação voluntária).
Não é preciso ter um consenso ao nível de todos os países da União Europeia para que um país possa individualmente decidir usar, ou não, esses instrumentos. Um exemplo de instrumento que pode ser criado é a elaboração de um teste de resiliência do sistema de saúde, com uma metodologia comum que permita a cada país aprender com a aplicação desse teste (no seu sistema de saúde e com os testes feitos por outros sistemas de saúde). Um outro exemplo óbvio é o European Health Data Space, onde existem ganhos de coordenação óbvios para todos os países. Um terceiro exemplo é a iniciativa de aquisição conjunta de vacinas contra a COVID-19, que evitou que os países membros da União Europeia entrassem em concorrência uns com os outros, o que teria como resultado acrimónia e ressentimentos.
Será que os planos da Comissão Europeia terão sucesso? Muito dependerá dos caminhos que a Comissão Europeia decidir percorrer. Tomando dois aspetos que foram anunciados em Novembro de 2020:
a) Reforço da vigilância, com coordenação realizada a nível da União Europeia. É evidente a existência de benefícios para todos os países da vigilância de saúde realizada por cada país. Existe, por isso, um ganho em partilhar o custo de construir os instrumentos para a realizar. É um esforço que provavelmente terá sucesso, sobretudo se concentrar a atenção na criação das oportunidades de melhoria dos mecanismos de vigilância que cada país por si só não investirá voluntariamente;
b) Melhorar a capacidade de estar preparado, isto é, desenvolver planos de preparação para cada país, que sejam auditados e objeto de teste por parte de alguma entidade europeia. É provável que estes planos venham a ter oposição a nível nacional, e haver acusações de tratar de forma igual sistemas diferentes e de serem imposições “de Bruxelas” (mesmo que os planos sejam distintos). Antecipo que este tipo de ideias, planos e auditorias definidos centralmente venham a ter resistência de dentro dos sistemas de saúde.
Haverá movimento no sentido de uma União Europeia da Saúde, mas será um caminho com algumas pedras pelo meio. É improvável que resulte num único sistema de saúde, num sistema europeu de saúde. Não me parece que seja possível construir um sistema de saúde europeu, até porque as atuais diferenças que vemos entre sistemas de saúde resultam também de legítimas diferenças de preferências entre sociedades. Mas não deixa de existir um espaço para “mais Europa” nos atuais sistemas de saúde dos países membros da União Europeia. Para que uma União Europeia da Saúde possa conviver em harmonia com a diversidade de sistemas de saúde atuais, deverá, a meu ver, focar-se em temas e aspetos que tenham uma, ou mais, das seguintes características: serem um bem público em sentido económico, como sucede com a atividade do ECDC, terem importantes externalidades positivas, como sucede com o European Digital Health Space, terem um alinhamento de interesses de vários sistemas de saúde nacionais, como sucedeu com a aquisição conjunta de vacinas contra a COVID-19 e promovam valores comuns a todos os países, como é o caso da solidariedade no financiamento e a equidade no acesso a cuidados de saúde.
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