Tendo terminado há dias (sexta-feira dia 21 de agosto) o prazo oficial para consulta pública do Plano Costa Silva, e enviar os respetivos comentários para o endereço de correio electrónico oficial, decidi acelerar a escrita dos comentários (e também tornar mais breves, para fechar este tema).
O Plano tem uma subsecção intitulada “Alguns princípios orientadores para as políticas públicas no âmbito do Plano de Recuperação da Economia” (sendo alguns, significa que podem ser outros também, o que relembra um célebre humorista do século passado, e que aqui tem provavelmente o sentido de não serem todos os que podem ser relevantes, evitando que se considerem exaustivos).
O ponto de entrada desta secção começa logo com “vamos precisar de um Estado com uma nova natureza, mais interventiva no investimento no Serviço Nacional de Saúde e nas infraestruturas físicas e digitais, mas também para ocorrer à capitalização das empresas (…)”. Sobre o investimento no Serviço Nacional de Saúde, remeto para o meu post anterior. Mas noto que se quer ao mesmo tempo Estado mais e menos interventivo como filosofia, a menos que a capitalização das empresas deva resultar em “capitalismo de estado” ou “estado empresarial”. Como não parece ser esse o caso, na verdade ficamos com mais uma indefinição, ou pelo menos com texto que dá para cada um ler o que quiser ler (papel do estado em articulação com as empresas inspirado por uma visão estratégica é o exatamente o quê?). Faria sentido neste ponto perceber-se qual a posição do Plano quanto a “falhas de mercado” que justifiquem a intervenção pública (estamos no âmbito da recuperação económica, não da justiça socia, nesta secção) e também “falhas do sector público”, para se perceber que articulação será desejável. E esta indefinição passa pelos vários parágrafos conforme vão sendo referidos setores, entidades, atividades. Nunca se chega a perceber se a intenção é estabelecer um quadro geral, em que depois a participação dos diferentes intervenientes é feita de forma voluntária e descentralizada ou se é de acordo com um plano centralizado que diga o que cada um deve fazer quando e com quem.
A título de curiosidade, o texto tem aqui uma “caixa azul” com referência a Karl Polanyi, sobre mercados autorregulados e procura do bem comum, sendo que sugiro adicionalmente a consulta do livro recente de Jean Tirole, que não por acaso está à frente da comissão estabelecida em França para ter o papel de estabelecer uma estratégia de recuperação económica.
É, diria inevitavelmente, mencionada a importância de ter uma “política para retenção de talentos”. É um objetivo que se entende, mas uma designação que tenho sempre visto como infeliz. Sugiro como alternativa pensar em “política de atração de talentos”. A ideia não deve ser evitar que trabalhadores portugueses qualificados saiam para o exterior, e sim fazer com que Portugal seja um país em que atrativo para trabalhadores qualificados, portugueses ou não, desenvolverem as suas vidas profissional e pessoal. O “espaço” de pensamento para os jovens deve ser global, por toda a riqueza de oportunidades que proporciona, e dentro desse espaço Portugal deve ser uma escolha pela positiva. E se Portugal conseguir atrair jovens qualificados internacionalmente então também será certamente mais fácil que os jovens portugueses optem por permanecer, ou por regressar a curto prazo, para terem a sua vida ativa aqui.
Na discussão do papel do Estado faz falta uma discussão também das limitações da intervenção do Estado, e dos problemas que por vezes o próprio Estado cria (as PPPs rodoviárias, a utilização ruinosa de instrumentos financeiros de risco são dois exemplos do estado criar problemas, ou das pessoas que decidem no Estado criarem problemas, conforme se preferir ver). Mesmo no campo das desigualdades, em termos de filosofia do se entende dever ser o funcionamento do estado, teria sido interessante saber a visão do Plano sobre as desigualdades criadas por “acesso desigual ao poder do estado” como fonte das desigualdades sociais e económicas.
Mas se muito se fala do estado e do seu papel, aparece depois uma subsecção sobre o “papel das empresas”, onde novamente se defende uma maior intervenção do estado para “impedir o colapso das empresas relevantes”. A questão, evidente, é saber quais são as empresas relevantes. Aquelas empresas que os decisores políticos decidem que são relevantes? Ainda nesta linha, a sugestão do “Estado reunir com as empresas dos vários setores” para coordenar e definir com estas empresas as políticas públicas é abrir a porta para jogos de influência e favorecendo quem tem melhor “agenda telefónica” para ser ouvido. Além disso, protege implicitamente as empresas que já estão no mercado em detrimento de novas empresas. Como parte dos aumentos de produtividade resultam de entrada de novas empresas com maior produtividade ou em setores onde é possível maior produtividade, há implicitamente nestas ideias um antagonismo ao objetivo, declarado noutro ponto do Plano, de ter um crescimento da produtividade na economia portuguesa. Acompanhando plenamente a preocupação de não ser “aconselhável um modelo em que o Estado pura e simplesmente despeja dinheiro em cima dos problemas”, adiciono a preocupação de encontrar mecanismos “amigos” do crescimento da produtividade.
Neste quadro, a sobrevivência das empresas terá que ser dependente de conseguirem fazer bem a sua inserção nos mercados internacionais, num processo de inovação permanente, em vez de se conseguirem sentar à mesa dos fundos públicos. O melhor “incentivo” para as empresas identificarem e explorarem “os nichos certos do mercado globalizado” é evitar o conforto do dinheiro público assegurado.
Para a “cooperação entre empresas, Universidades e centros tecnológicos”, a ambição é global, europeia pelo menos. Falta, no contexto do Plano, saber como se compatibiliza com várias das outras ideias, por um lado, e como se concretiza em termos de intervenções determinadas pelo Plano de Recuperação Económica. Uma possibilidade é desenvolver um “mercado de ideias global”, onde os centros de investigação nacionais (mais académicos ou mais de natureza empresarial) possam ganhar conhecimento das necessidades de inovação e apresentar as suas soluções inovadoras.
Em termos das políticas públicas, a afirmação de que “precisamos de um modelo novo e de um renascimento da teoria económica e da teoria política” é pouco útil. O pensamento sobre a intervenção pública pode ser um desafio lançado às universidades e centros de investigação em economia e gestão, mas não creio que se possa estar à espera desse “modelo novo” para tomar decisões, até porque o corpo de conhecimento atual pode ser mais usado do que tem sido habitual (e há uma diferença entre gestão macroeconómica – onde se entende a referência ao keynesianismo – e as medidas de cariz microeconómico, onde o entendimento das reações das entidades e agentes afetados tem que ser bastante mais detalhado para uma adequada definição das políticas).
Na subsecção dedicada às “modalidades para a atração do investimento externo e a criação de consórcios internacionais” surge uma das ideias aparentemente mais favorecidas pelo Plano, a exploração de recursos minerais. Contudo, não é claro que parte da cadeia de valor fica em Portugal – refere-se sobretudo a extração, não sendo claro se outras partes, até de maior valor acrescentado, da cadeia de valor ficam também em Portugal. A extração e transformação de minerais raros, incluindo extração do solo do mar, poderá ter potencial de ser fonte de crescimento económico, e de criar desafios para as entidades que fazem investigação científica em Portugal. Esses desafios não se devem esgotar na criação da “grande Universidade do Atlântico”, até porque a criação de raiz de uma instituição científica de topo a nível global exige recursos, incluindo o tempo para a sua construção (e exemplo na demora da criação da agência de investigação biomédica deve servir como aprendizagem mínima).
A parte “3 Plano para a recuperação económica em Portugal” é então suposta trazer as medidas mais concretas decorrentes dos principais e dos diagnósticos das partes anteriores. Na parte de “Finalidade, visão, missão e objetivos” faltou, a meu ver, uma vocação de “cidadania europeia” e o papel de Portugal nesta construção europeia (no que é também um instrumento para atingir vários objetivos que foram sendo enunciados na parte 2). É também de assinalar um problema de perceção comum: embora pensar num país como se fosse uma empresa é simples e atrativo mas presta-se a equívocos – uma boa explicação sobre este aspeto está neste texto de Paul Krugman (do século passado mas o fundamental não mudou)..
Os objetivos apresentados devem ser revistos, uma vez que existem redundâncias, e devem ser organizados por áreas de intervenção – infraestruturas, funcionamento do estado (incluindo aqui o Serviço Nacional de Saúde), política industrial (e dentro desta, internacionalização, renovação empresarial, capacidade de gestão), políticas de soberania (política externa e softpower, coesão do território, etc.). Mais importante que a matriz entre objetivo e eixos será a matriz entre instrumentos concretos (medidas, intervenções, programas, etc) e os objetivos.
Os programas de investimento associados aos eixos estratégicos trazem algum detalhe, por vezes aparentemente desligado do restante texto, e com ausência de referência a prioridades (talvez propositadamente, mas nesse caso pelo menos informação sobre volume de investimento necessário, retorno, efeito estimado na recuperação económica, tempo de produção desses efeitos).
Áreas que merecem maior desenvolvimento, até pela sua natureza transversal às atividades económicas desenvolvidas, são a) requalificação, mobilidade intersectorial e funcionamento do mercado de trabalho; b) cibersegurança como aspecto central das atividades digitais; c) mecanismos que identifiquem e integrem as necessidades de inovação – mercado de ideias global, como referido anteriormente; d) o repensar das fontes de financiamento da segurança social (que é um tema com mais de uma década)
No campo do estado social, antes de qualquer medida concreta, era bom ter um relatório sobre quais os programas atuais que devem ser desenvolvidos e quais os que devem ser terminados. Duas áreas foram destacadas, habitação social e rede de cuidados para a população mais idosa.
Para o estado social e população idosa, um elemento importante é conhecer que respostas podem ser de base tecnológica e que respostas vão ser “trabalho intensivas”, por inevitavelmente necessitarem de contacto humano. O apoio a postos de trabalho menos qualificados deverá ser de preferência para necessidades que sejam permanentes e devem incluir mecanismos que promovam inovação que seja escalável e até mesmo exportável (por exemplo, será que a partir de Portugal se conseguem desenvolver serviços de consultoria de apoio à população idosa, certificações de processos de cuidados, por exemplo, além de dispositivos ou produtos).
Dentro das “infraestruturas”, em sentido muito lato, podemos incluir a componente de regulação económica. É sugerido um “balanço da ação das agências reguladoras”, e talvez faça sentido recomeçar por revisitar o que foi feito no tempo da troika. E é referida uma vez mais a lentidão da justiça económica e fiscal, a que acrescento a importância de ter mecanismos legais de reafectação de ativos produtivos como elemento essencial das tentativas de inovação, bem como facilitar a vida dos “talentos nacionais”. Ou seja, perceber e criar o quadro legal, incluindo a rapidez de resolução de litígios, que contribui para que seja atrativo criar empresas e procurar fazer inovação em Portugal (por exemplo).
Numa observação comum a várias das medidas e ideias de investimento, seria útil saber porque é necessária intervenção pública (ou seja, porque é que as empresas não investem de forma natural nessas atividades?), quais as vantagens permanentes de Portugal face aos outros países (é de admitir que vários outros planos de recuperação nacional dentro da União Europeia também tenham ideias similares)?
Por exemplo, no caso do hidrogénio verde que tem tido grande discussão na praça pública (e ainda bem), não é claro se a intervenção pública é necessária para passar mais rápida a curva de aprendizagem, ou se é para vencer qualquer outra barreira que não é possível de ultrapassar de outro modo.Por fim, há uma discussão de instrumentos financeiros, nomeadamente bancos com propósitos específicos. A preocupação com o bom desenho dos programas que vão aplicar os fundos disponibilizados está presente no Plano Costa Silva. E é uma parte que merece desenvolvimento, nomeadamente relembrando as lições dos programas públicos com objetivos similares nos últimos 40 anos (e há algumas avaliações que têm sido feitas que constituem uma boa base de partida para esse pensamento). E aqui porque não colocar um alemão, um irlandês ou um holandês nas novas instituições financeiras ou nos organismos que vão gerir a aplicação dos fundos? Teria a dupla vantagem de trazer experiência relevante de outros países e de ter alguém longe das intrigas e “redes de conhecimentos” nacionais.
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