Momentos económicos… e não só

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Lisboa, mobilidade e casos da COVID-19 – vivendo com o coronavirus (42)

Tem ganho destaque nos últimos tempos o crescimento do número de casos de COVID-19 na zona de Lisboa. Diversas explicações têm sido avançadas, mas sem haver ainda uma clara definição do que está por detrás desse crescimento. Considerando o período desde 11 de maio (uma semana depois do início do processo de reabertura da sociedade e da economia), verifica-se a regularidade de um crescimento linear do número de novos casos. É um crescimento pequeno, quando visto em média diária de acréscimo, mas persistente. Ao fim de 7 semanas já quase duplicou o número de novos casos (por dia) em média. Não sendo ainda uma situação de emergência, é claramente uma evolução que se torna necessário travar.

Embora seja fácil argumentar que foi um desconfinamento demasiado rápido, os números de mobilidade indicam que o retomar da atividade normal em termos de deslocações até estar a ser mais lenta na zona de Lisboa do que no resto do país, em todas as categorias de mobilidade, incluindo lazer e praias e parques, por um lado, e deslocações mais ligadas a atividade profissional, por outro lado.

Estes números corroboram de algum modo as preocupações com as condições de vida (habitação e deslocações para o emprego) da população residentes nas zonas que mais têm contribuído para este crescimento (e que foram sujeitas a medidas adicionais de restrição de mobilidade).

Tentando sistematizar:

  1. O número de novos casos em áreas específicas da zona de Lisboa tem tido um crescimento linear nas últimas 7 semanas (ver figura abaixo).
  2. O número de novos casos no resto do país tem sido baixo, mas constante, praticamente sem crescimento, e caracterizado sobretudo por surtos (o que significa que a maior parte do país está sem sobressalto).
  3. Número de doentes internados e doentes internados em UCI baixou muito até ao início do Junho, voltou a subir devagar a partir daí (consequência de estar a ocorrer um crescimento lento, mas persistente, de novos casos diários) (ver figuras no final).
  4. A pressão sobre os hospitais da zona de Lisboa está a subir e a fazer-se sentir com notícias sobre a necessidade de coordenação para partilha de esforços.
  5. Na zona de Lisboa, quase duas dezenas de freguesias voltaram a ter medidas mais apertadas; deslocações para trabalho continuam a ser possíveis.
  6. Com o aumento do número de infetados (os novos casos estão a crescer mais rapidamente que o número de pessoas que deixa de estar infetada), há a necessidade de recursos humanos para seguimento de linhas de contágio, uma necessidade previsível desde o início do processo de abertura. Aparenta não ter sido feito, se atendermos a declarações que têm sido feitos pelo presidente da associação nacional de médicos de saúde pública.
  7. A realização de testes para encontrar quem esteja infetado mesmo que não apresente (ainda) sintomas não tem sido um problema.
  8. Quando se fala da zona de Lisboa e se olha para o padrão de mobilidade das últimas semanas, disponibilizado pela Google, vê-se que o problema não tem sido o aumento dessa mobilidade, que foi menor na região de Lisboa do que no resto do país. Não foi também uma questão de surtos pontuais muito volumosos. (figuras abaixo)
  9. A pressão política está a aumentar sobre o Governo, sendo que a aposta na fase final da Liga dos Campeões e alguma outra comunicação menos bem conseguida conseguiram gerar confusão desnecessária, que acresce à pressão dos números.
  10. Olhando para a experiência de outros países, e dada a disseminação da COVID-19 em países com os quais temos ligações aéreas frequentes (com a frequência que o tempo atual deixa), é necessário ter um controle apertado à entrada, para encontrar e isolar os casos importados (a questão não é se vão existir, e sim se vão ser encontrados a tempo de evitar propagação interna). Quando se fala em abrir novamente ao turismo, este é um aspeto fulcral, para segurança de quem cá está e de quem vem. 
  11. Neste momento, tão importante como assegurar que existem os meios humanos e técnicos necessários, bem como a rapidez de decisão na intervenção, é necessário sentir que não há fadiga governamental.
  12. Há que definir rapidamente estratégias que permitam quebrar as cadeias de contágio mais cedo. Para isso, é preciso haver conhecimento atempado dos processos de contágio (o que tem sido menos bem conseguido) e intervenção rápida das autoridades de saúde, depois de detetados casos (o que tem sucedido).
  13. Para onde olhar? Para onde já se tinha identificado que poderiam surgir problemas – transportes públicos, capacidade de isolamento em contexto de habitação conjunta, grupos difíceis de rastrear, como imigrantes a trabalhar em obras ou serviços onde a informalidade lhes permite laborar. Perceber como é que a combinação de vários destes fatores faz com que haja problemas na zona de Lisboa mas não noutras zonas do país onde as mesmas atividades também estão presentes.
  14. Uma palavra final para a tensão política em crescendo e que aparenta, segundo alguns relatos, ter envolvido também alguma tensão com a equipa técnica de apoio. Não é claro o que se passou, mas na verdade é mais importante o que venha a passar. Parece-me que será útil ter reuniões fechadas em que os membros do Governo, com a responsabilidade da decisão política, possam discutir livremente com os técnicos, sem receio de que essa discussão seja transformada em instrumento de luta política. E só depois haver as reuniões técnicas mais abertas (mas onde já não deverá ser o Governo a colocar as suas questões e dúvidas). Será também útil que o trabalho técnico de suporte tenha uma apreciação crítica interna, também ela reservada de forma a garantir que é gerado o melhor conhecimento para a decisão política. No contexto político em que começa a emergir nos últimos dias, o modelo atual de reuniões no Infarmed estará provavelmente esgotado e será repensado.


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gabinete de crise, radio observador – vivendo com o coronavirus (41)

O programa semana Gabinete de Crise, na Rádio Observador, tendo como convidado José Fragata, cirurgião cardio-torácico e vice-reitor da Universidade Nova de Lisboa para a saúde.

O resumo habitual da minha intervenção (mais coisa, menos coisa)

Número de semana: 504,4 milhões de euros no Orçamento Suplementar, destinados ao Ministério da Saúde. Destes, 76 milhões de euros para reforço da resposta de medicina intensiva à COVID-19 e 410,2 milhões de euros são para aquisições de bens e serviços que incluem os equipamentos de proteção. Estes últimos valores mostram a importância da proteção dos profissionais de saúde para que o Serviço Nacional de Saúde continue a cumprir o seu papel. Esta proteção vai ser necessária, bem como a preparação dos espaços e a criação de unidades sem doentes COVID-19, e com reforço de toda a proteção dos profissionais nas unidades dedicadas ao tratamento da COVID-19. De qualquer modo, não está em cima da mesa limitar-se a proteção dos profissionais de saúde. 

Três focos desta semana merecem destaque – numa festa do Algarve, em lares no Norte e Centro do país, e no IPO de Lisboa. Todos detetados de forma rápida, e com intervenção também rápida das autoridades de saúde. Mas que que revelam onde temos de estar com atenção.

Na festa do Algarve, a importância das decisões sociais como parte do problema e parte da solução – terá o sucesso da resposta inicial levado a uma diminuição do receio com a pandemia? No início não se sabia muito sobre quem seria afetado e quanto. Ao fim de três meses, esse receio pode diminuir porque muita gente não conhece diretamente quem teve COVID-19 e tenha estado internado. E sobretudo não há muitos desses casos nos mais jovens, contribuindo para reforçar a ideia de que talvez “isto” – a COVID-19 – não seja assim tão grave.

Nos lares, a reafirmação do ambiente de risco nas estruturas residências para idosos, e a necessidade de equilibrar as vidas dos profissionais que nelas trabalham com a segurança de quem lá vive, e a colaboração necessária dos familiares que os visitam.

No IPO de Lisboa, 8 profissionais (3 médicos, 3 enfermeiros, 2 assistentes operacionais) e 12 doentes – voltando a mostrar que os profissionais de saúde continuam a ser um grupo de risco mesmo apesar das medidas de segurança que são tomadas.

Quanto aos indicadores de seguimento, nos casos confirmados, esta semana ligeiramente melhor que a semana passada, no geral e em Lisboa, embora no resto do país já se tenha estado melhor. Estamos numa fase de “cozedura lenta”, à espera de uma baixa mais permanente. O número de internados, no total e em UCI, esta semana subiu ligeiramente, provavelmente como reflexo do aumento de casos confirmados nas últimas duas a três semanas. 

Média de novos casos diários por semana (semana “Gabinete de crise”, de 6ª a 5ª seguinte)

 Lisboa e Vale do TejoResto do PaísTotal nacional
8 a 14 de maio118110229
15 a 21 de maio15868227
22 a 28 de maio20634240
29 maio a 4 junho25925285
5 de junho a 11 de junho28942331
12 de junho  a 18 de junho25852311

Nota: valores arredondados à unidade

Média de valores diários por semana (semana “Gabinete de crise”, de 6ª a 5ª seguinte)

 ÓbitosInternadosInternados em UCI
8 a 14 de maio11762113
15 a 21 de maio13636103
22 a 28 de maio1353275
29 maio a 4 junho1247061
5 de junho a 11 de junho740361
12 de junho  a 18 de junho342771

Nota: valores arredondados à unidade

Mito da semana: a descoberta de uma cura para a covid-19, como erradamente se poderia pensar de algumas noticia desta semana. O que se encontrou foi um medicamento que parece, ainda à espera de mais dados, ser útil em doentes internados em estado grave. Ou seja, nada que justifique pensar neste medicamento, dexametasona, é a solução para a COVID-19. As precauções para evitar contágio continuam a ser a melhor opção para todos.

Esperança de semana: A abertura das escolas no Norte da Europa, com precauções e sem problemas de aumento de contágios, sugere que está na altura de se voltar à normalidade possível no funcionamento escolar, para minimizar os efeitos sobre as crianças e a sua aprendizagem. A esperança é que aprendamos com quem vai mais avançado, e rapidamente acertemos o ritmo de reabertura de escolas com esses exemplos. 


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Em França, para pensar a vida económica pós-covid-19

Macron em França criou uma comissão de 26 economistas, liderados por Jean Tirole (Nobel da Economia 2014) e Olivier Blanchard – o primeiro mais dedicado a aspectos de regulação e organização de atividades económicos, o segundo mais dedicado na sua carreira a aspectos macroeconómicos, com uma equipa internacional de mais 24 economistas, que até Dezembro de 2020 irá apresentar ideias para o processo de recuperação económica pós-COVID-19. Quem quiser saber um pouco mais das ideias de Jean Tirole sobre o funcionamento das economias, sugiro ler o livro de Tirole “Economia do Bem Comum”, encontra-o aqui (ou nas livrarias) e para uma apresentação do livro, pode ver aqui (sessão em Lisboa, há cerca de dois anos).

A lista completa com breves informações biográficas pode ser encontrada aqui. Esta lista tem investigadores de grande reconhecimento internacional, franceses, mas também pessoas do Reino Unido, da Alemanha. da Itália, de Espanha e dos Estados Unidos, com forte experiência política e de vários sectores:

Mar Reguant (clima), Christian Gollier (clima, decisão em contexto de risco e incerteza, seguros), Dani Rodrik (desigualdades, crescimento económico e desenvolvimento, economia política), Stefanie Stancheva (desigualdades, económica pública, tributação), Axel Borsch-Supan (demografia, segurança social, envelhecimento e políticas públicas – foi o criador do inquérito SHARE – Survey on Health, Ageing and Retirement in Europe, em que Portugal também participa), Carol Propper (demografia, economia da saúde), Claudia Diehl (demografia, imigração e discriminação étnica), Philippe Aghion (processos de crescimento económico), Richard Blundell (economia do mercado de trabalho, economia pública, tributação) , Laurence Boone (economista chefe na OCDE), Valentina Bosetti (economia do ambiente), Daniel Cohen (crescimento económica, finanças públicas, dívida pública), Peter Diamond (economia pública, segurança social), Emmanuel Farhi (economia pública, macroeconomia, finanças), Nicola Fuchs-Schundeln (macroeconomia), Michael Greenstone (economia pública, economia do ambiente), Hilary Hoynes (economia pública, desigualdades), Paul Krugman (macroeconomia, economia internacional), Thomas Philippon (macroeconomia), Jean Pisani-Ferry (economia política), Adam Posen (política orçamental, política monetária, relações económicas internacionais), Nick Stern (economia pública, desenvolvimento económica, alterações climáticas), Lawrence Summers (macroeconomia, economia pública), Laura Tyson (economia internacional, políticas públicas).

O que vierem a sugerir como ideias serão certamente úteis para toda a União Europeia. A seguir com atenção o que vierem a publicar.


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virus democrático ou talvez não – vivendo com o coronavirus (40)

Discussão no programa da Fundação Francisco Manuel dos Santos / Rádio Renascença, Da Capa à Contracapa, disponível aqui. Tal como escrevi há uns dias, o vírus pode ser democrático, mas o que propicia a doença da COVID-19 e potencia as suas consequências, não o será.


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gabinete de crise, na rádio observador – vivendo com o coronavirus (39)

O tema desta semana no Gabinete de Crise, Rádio Observador, foi dedicado às políticas de retoma da economia, com Pedro Brinca como convidado.

Além disso, houve o debate habitual.

Número da semana:  100 milhões de euros.

É aproximadamente o valor dedicado ao reforço do SNS no Programa de Estabilização Económica e Social. Este programa específico é só até ao final do ano de 2020. Sendo um primeiro esforço, acima do que já tinha sido o reforço de verba para o SNS previsto antes de aparecer a pandemia, é um valor que não vai esgotar as necessidades de financiamento adicional do SNS causadas pela COVID-19. É um sinal positivo, mas muito provavelmente insuficiente. Veremos nos orçamentos suplementares que irão surgindo o que será adicionado (porque também estou convencido que haverá mais do que um orçamento suplementar este ano).

A evolução nesta semana, infelizmente, foi mais do mesmo. A necessidade é agora de conter Lisboa mas não deixar que se arraste para o resto do país.

Média de novos casos diários por semana (semana “Gabinete de crise”, de 6ª a 5ª seguinte)

 Lisboa e Vale do TejoResto do PaísTotal nacional
8 a 14 de maio118110229
15 a 21 de maio15868227
22 a 28 de maio20634240
29 maio a 4 junho25925285
5 de junho a 11 de junho28942331

Nota: valores arredondados à unidade

Houve uma subida ligeira de internamentos, geral e em UCI, nos últimos dias, esperemos que venha a ser apenas pontual, e não uma inversão permanente numa tendência de descida. Poderá ser apenas o resultado esperado do desconfinamento gradual que está a ser realizado.

Mito da semana: As pessoas sem sintomas não transmitem a COVID-19. 

A evidência recolhida indica que as pessoas ainda sem sintomas mas já infetadas podem transmitir a COVID-19, e podem até ser responsáveis por cerca de 40% das novas infeções.

Este mito vem a propósito de alguma atrapalhação da WHO na comunicação, onde falhou fazer a diferença entre pessoas que têm uma carga viral da COVID-19 tão baixa que nunca chegam a apresentar sintomas (e por terem uma carga viral baixa, terão menor capacidade de transmitir a COVID-19), e as pessoas que têm uma carga viral alta mas ainda não apresentam sintomas, e que podem facilmente infetar outras pessoas antes de esses sintomas aparecerem. Como entre quem não tem sintomas em cada dia, temos uma mistura destes casos, pessoas com baixa carga viral e pessoas com carga viral elevada, e assim com elevada possibilidade de transmitir o vírus. Ou seja, apesar da confusão, não há qualquer motivo para alterar as regras de precaução que têm sido difundidas, desde o lavar das mãos, à limpeza dos espaços e à utilização de máscaras em locais fechados, com pouca circulação de ar fresco, e presença de outras pessoas.

Esperança da semana: o retomar cuidadoso da atividade económica, começando agora a recuperar dos efeitos negativos sobre a vida das pessoas em geral; sabemos que depois de um momento de preocupação muito grande com a doença, as preocupações com a economia, com a situação de emprego e com a capacidade económico ganharam progressivamente mais importância. Esta não é apenas uma questão económica, é também uma questão de saúde e de saúde mental. Como referiu recentemente o Miguel Xavier, que coordena o Plano Nacional de Saúde Mental, a “economia pessoal” é determinante da saúde mental – nas palavras que usou, “trabalho, remunerações, precariedade, condições de vida” e “dever-se dinheiro a alguém” é um dos fatores de risco mais poderoso para problemas de saúde de mental. Assim, o reanimar da economia tem também efeitos positivos na saúde. O que nós vemos na mobilidade das pessoas é que lentamente a utilização de transportes está a aumentar, bem como a mobilidade para os locais de trabalho. Não é um salto imediato, pelas precauções que vai sendo preciso ter, mas é uma evolução que começou até um pouco antes da data oficial de desconfinamento, 4 de maio.


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webinars sobre saúde e digital – vivendo com o coronavirus (38)

A semana passada tive a oportunidade de participar em duas sessões que partilharam o mesmo tema global

De manhã, a sessão promovida pela Abreu Advogados, sobre Transformação Digital da Saúde e Telemedicina, com Alexandre Valentim Lourenço e Óscar Gaspar.

De tarde, a sessão promovida pela Eurodeputada Maria Manuel Leitão Marques, sobre Digital Technologies and Artificial Intelligence for Health, com Joana Gonçalves de Sá, Leonardo Chariglione, Birgit Morlion, Christel Schaldemose, Petra de Sutter, e Carlos Morais Pires.

Ambas tocando, por caminhos diferentes, no mesmo tema – a digitalização e a transformação digital na saúde.

Destaques rápidos de cada uma destas sessões:

  1. Telemedicina – a importância da experimentação que foi feita na crise da COVID-19 para o que possa ser permanente, devendo ser aproveitada a quebra de barreiras que ocorreu (antes que voltem a surgir) de doentes, médicos e pagadores (incluindo o SNS). Apenas a ressalva, muito enfática, de que a primeira consulta de um doente com um médico ter que ser necessariamente presencial (porque há ainda aspectos nessa primeira observação que não podem ser “passados” para o campo da tecnologia).
  2. Inteligência artificial – a importância dos dados, onde se possa alicerçar as aplicações de inteligência artificial, não pode ser descurada. Houve discussão sobretudo do lado da procura – confiança dos cidadãos, e utilização dos dados; Mas há que adicionar a parte da oferta – assegurar a qualidade da recolha de dados, assegurar a sua curadoria de maneira a que as aplicações que os usam possam dar resultados “com sentido”. A importância da regulação, embora não seja claro se todos têm o mesmo entendimento do que significa, e de como deve ser estruturada.

Deixo duas sugestões de leitura, um documento do EC Expert Panel on Effective Ways of Investing in Health (versão curta aqui) e o relatório Inofarma (sobre o posicionamento de Portugal neste campo).

(as nossas visões sobre a o papel da inteligência artificial são também “moldadas” implicitamente pelo entretenimento: 38 anos separam o livro de Ian McEwan e o filme de Ridley Scott!)


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Gabinete de crise, na Radio Observador – vivendo com o coronavirus (37)

Esta semana, no Gabinete de Crise na Rádio Observador, o foco da atenção foi o trabalho dos médicos de família, que estão a acompanhar e a tratar a maioria dos doentes confirmados com COVID-19.

Como tem sido habitual, deixo aqui o meu resumo do que abordei.

Número da semana: 97%. 

É a proporção das pessoas com covid-19 confirmada que está a ser seguida pelos cuidados de saúde primários. Há aqui um importante trabalho invisível dos médicos de família no seguimento destes doentes, bem como um trabalho de base dos médicos de saúde pública na identificação dos contactos e nos casos suspeitos. A resposta do SNS é muito mais do que realizar testes e dar tratamento hospitalar. 

Média de novos casos diários por semana (semana “Gabinete de crise”, de 6ª a 5ª seguinte)

 Lisboa e Vale do TejoResto do PaísTotal nacional
8 a 14 de maio118110229
15 a 21 de maio15868227
22 a 28 de maio20634240
29 maio a 4 junho25925285

Nota: valores arredondados à unidade

Mito da semana: o calor vai fazer desaparecer o virus da COVID-19.  

Infelizmente não vai, não é claro sequer que atenue. Também aqui a incerteza sobre o vírus é grande. Ainda não se sabe qual a sazonalidade que possa haver, mas todos os paises, seja inverno ou verão ou primavera ou outono, têm tido que lidar com o vírus. Por isso, teremos que manter os cuidados durante as quatro estações do ano enquanto não houver vacina ou tratamento.

Esperança da semana: esperança no sentido que querer que algo aconteça, esperança que os surtos que têm surgido na zona de lisboa sejam realmente limitados na sua extensão.

A intervenção rápida das autoridades de saúde, no detetar, testar, conhecer contactos e isolar quem for positivo para a COVID-19 dá esperança que sejam situações contidas e sem dar a origem a um crescimento acelerado. A esperança está na decisão rápida, e no cortar os contágios possíveis. 

A evolução recente desta semana não vai de encontro a esta esperança, pelo que é uma esperança da semana que contém a esperança de se conseguir uma evolução em Lisboa que inverta a evolução do último mês. 

Por outro lado, a esperança positiva da semana passada foi cumprida – não tivemos surtos associados com a possibilidade de visitas aos lares e às residências de idosos. Os cuidados que estão a ser tidos por todos têm garantido este resultado.


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PEES – Reforço do SNS

Saiu ontem do Conselho de Ministros o Programa de Estabilização Económica e Social. Está disponível em pees.gov.pt. De momento não é um programa. É um conjunto de powerpoint slides tornados website, com ideias gerais. Para o que está em causa, terá que se ser muito mais exigente no detalhe e justificação. Como primeira comunicação, talvez esta versão seja boa. Mas não o será para garantir que há realmente contributos e discussão da sociedade civil. E basta seguir uma estrutura simples dos documentos que venham a tornar precisas muitas das ideias apresentadas – a minha preferida é 1) qual é o problema que se pretende resolver? 2) quais são as alternativas possíveis? 3) porque é a alternativa escolhida a melhor.

E comecemos pelo que é dito sobre o SNS – não será por acaso que é colocado à cabeça do documento neste momento.

Primeiro ponto – questão de curto prazo, problema temporário. Incentivos financeiros significa apenas mais dinheiro – o que significa que será bom atrasar a atividade normal do quarto trimestre para recuperar a do segundo trimestre, de forma a que depois também haja “incentivos financeiros” para depois recuperar a atividade do quarto trimestre? Incentivos é mais do que transferir apenas verbas, é pensar como se cria o esforço adicional de recuperação sem distorcer (pelo menos de forma assinalável) a atividade normal que deverá decorrer ao mesmo tempo que se faz o esforço de recuperação. E não diz nada sobre quem irá fazer essa recuperação da atividade assistencial – cada hospital do SNS recupera a sua atividade? um hospital do SNS pode “recuperar atividade” de outro hospital? e o setor privado tem algum papel ou não? ou pode ser cada hospital do SNS a definir se quer recorrer ao setor privado para recuperar a “sua” atividade? Durante quanto tempo vão existir estes incentivos financeiros? se não a verba disponibilizada não chegar para todos, quem decide como ratear, racionalizar, racionar entre hospitais do SNS? O programa de incentivos financeiros que vai ser feito vai olhar para os programas similares dos últimos 20 anos? (sim, houve vários, uns mais abrangentes, outros menos abrangentes, até o SIGIC para os tempos de espera pode ser considerado como um sistema de incentivos).

E estas perguntas foram apenas as que me vieram à mente enquanto escrevia este post, com um pouco mais de esforço devo conseguir encontrar muitas mais. Mas ok, se for bem feito trará a “estabilização” que faz parte do titulo do documento a uma parte dos serviços do SNS à população que ficaram para trás.

Segundo ponto do “reforço do SNS” – aumento das camas de medicina intensiva – apliquemos aqui as três perguntas: que problema procura resolver? que alternativas existem? porque é este aumento a melhor forma de o resolver?

Aliás, porque é a média europeia o ponto de referência? o que faz da média europeia o valor adequado? se nós achamos que estamos mal, e fazemos parte da média europeia, já estamos a distorcer essa média, pelo que pressupomos que outros que estão acima da média também estão mal e a distorcer no sentido oposto. Não vejo qualquer motivo para pensar que assim é. E até bastará que cada país tenha legitimamente opções diferentes dos outros sobre o seu sistema de saúde para que estas médias não sejam relevantes para definir políticas na área da saúde.

Mas olhemos para lá do indicador, que será o menor dos problemas desta proposta. Atendendo ao que tem sido divulgado sobre a resposta à COVID-19, não temos tido falta de camas de cuidados intensivos, e para uma situação de “excesso de procura” potencial, houve a flexibilidade de criar essa capacidade. Há algum motivo para dizer que será necessário mais capacidade de forma permanente em vez de ter mecanismos de flexibilidade que gerem capacidade conforme as necessidades? Ter capacidade disponível não utilizada é desperdício, utilizar capacidade disponível só para dizer que não está a ser usada será desperdício. É por isso necessária uma sustentação bem mais forte desta medida, uma das três, deste programa. Se pensarmos que há dias, o Primeiro Ministro apresentou, no documento sobre desconfinamento, que 97,2% dos doentes confirmados com COVID-19 estão a ser tratados em casa, não deveria pelo menos os cuidados de saúde primários, os médicos de famílias, as equipas multidisciplinares nos cuidados de saúde primários, terem tanta ou mais atenção que as camas de cuidados intensivos. Será que houve mesmo um pensamento de organização global de como o Serviço Nacional de Saúde responde às necessidades da população em tempos de crise e em tempos normais para escrever esta medida? (se calhar houve, e estou a ser injusto, mudarei de opinião quando for disponibilizado o documento que responda de forma clara às três perguntas acima).

O terceiro eixo deste programa de reforço do SNS é a valorização da saúde pública – com duas partes, sistema de vigilância epidemiológica e “homogeneizando o sistema de retribuição aplicável”. O primeiro ponto já era evidente há alguns anos, será inevitável que agora se ultrapassem as barreiras que têm impedido essa modernização (e que não têm sido apenas de natureza financeira). Deixo aqui uma sugestão, que se for criada alguma comissão / grupo de trabalho / “o que for” para olhar para esta modernização, incluir apenas pessoas abaixo de 40 anos – serão essas pessoas que terão de liderar a modernização na próxima década, talvez mesmo as próximas duas décadas (não sei a idade do Ricardo Mexia, atual presidente da Associação Portuguesa de Médicos de Saúde Pública, se estiver acima dos 40 anos, crio uma excepção para o incluir).

Sobre a parte remuneratória, será certamente importante, mas colocar aqui parece-me desfasado. Toda a gestão dos profissionais de saúde terá que receber atenção no futuro próximo, e não vejo porque esta “homogeneização” tem mais relevância do que todos os outros aspectos, e não unicamente os remuneratórios, de todos os profissionais de saúde que trabalham no Serviço Nacional de Saúde. Ou pode ser que tenha entendido mal o que significa “sistema de retribuição aplicável”.

Compreendo perfeitamente que um primeiro documento de “Estabilização Económica e Social” tenha que ser genérico, que se limite a definir grandes prioridades que depois serão aprofundadas em discussão e documentos posteriores.

O que me causou espanto neste “Reforço do SNS” não foi a generalidade, foi dentro dessa generalidade os pontos escolhidos.

A expectativa é que quando se começar a passar ao concreto, se definam prioridades e objetivos consistentes com o que se tem dito e reafirmado que é a base da intervenção do Serviço Nacional de Saúde. O “reforço do SNS” não será certamente dado apenas por estes três pontos.


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na Voz da Nova, sobre a democracia, ou não, do virus – vivendo com o coronavirus (36)

Hoje, na comunicação social, voltou-se a falar da “democracia do virus”, tema que abordei aqui, para os contributos organizados pela Universidade Nova de Lisboa.

A distinção que fiz é entre o virus, que não diferencia pessoas, e a doença – que inclui as diferenças de vida que podem levar alguém a ser mais facilmente infectado, bem como os custos económicos das medidas tomadas para travar a expansão do vírus. O vírus é democrático, a doença, a COVID-19, essa sim depende de factores sócio-económicos, e não é assim tão democrática.

Para quem não tiver lido no Voz da Nova, aqui fica a sugestão.

O vírus é democrático, a COVID-19 não é

Tem sido frequente dizer-se que o vírus da COVID-19 afecta toda a gente e como tal é um vírus democrático. Mas também se tem dito que a COVID-19 aumenta as desigualdades (sociais) existentes. Uma vez mais, como noutras áreas, parece que a pandemia leva a incerteza e a opiniões divergentes, sendo a ciência incapaz de dar uma resposta. Porém, as duas informações não são contraditórias.

De um ponto de vista biológico, o vírus não faz qualquer diferenciação de acordo com características sócio-económicas, regionais, étnicas ou religiosas. Contudo, a probabilidade de contrair a doença COVID-19, de ser infectado pelo vírus, depende de comportamentos e ambientes que são influenciados pelo contexto sócio-económico.

O risco de contrair COVID-19 e de ter maiores complicações com a doença aumenta com a idade, qualquer que seja a situação sócio-económica da pessoa afectada. É a parte democrática. O risco que está associado com ir de transportes públicos para o local de trabalho depende da possibilidade de fazer teletrabalho, que é frequentemente maior em profissionais com salários mais elevados. O risco deixa de ser tão democrático. A possibilidade de confinamento e isolamento eficaz e menos penoso depende das condições da habitação. O risco definitivamente é menos democrático.

Podemos assim ter desigualdades sócio-económicas que geram maiores riscos de doença, que por sua vez acentuam as desigualdades de partida. Podemos ter consequências económicas da pandemia e das medidas adoptadas que reforçam as desigualdades, com um impacto económico que se adiciona ao potencial impacto de saúde da doença. Conceptualmente, há ainda um outro momento em que desigualdades existentes pode agravar as consequências da pandemia: se existirem desigualdades de acesso a cuidados de saúde que se encontrem associadas a nívels de rendimento, a que se dará atenção abaixo.

Embora não tenha uma quantificação precisa destes factores, o projecto internacional Countering COVID-19: A European survey on acceptability and commitment to preventive measures, entre a Nova School of Business and Economics, o Hamburg Center for Health Economics da Universidade Hamburgo, a Universidade Luigi Bocconi e a Universidade Eramsus de Roterdão, a que responderam 1064 pessoas em Portugal, representativas da população portuguesa, e 8575 no conjunto dos países abrangidos, permite perceber alguns destes efeitos que a COVID-19 possa ter produzido em Portugal e dar uma breve comparação europeia.

Para avaliar o nível de vida e capacidade financeira das famílias foi utilizada uma pergunta de natureza qualitativa, questionando sobre a capacidade do rendimento mensal assegurar uma vida normal, havendo quatro categorias de resposta (com grande dificuldade, com alguma dificuldade, razoavelmente, com facilidade). A primeira questão de cruzamento com este elemento de rendimento/riqueza das famílias é a percepção do risco individual de ser infectado, qual a preocupação, numa escala de 1 a 5, de nenhuma a muita preocupação, de tal suceder. No momento da recolha das respostas, as primeiras duas semanas de abril de 2020, as diferenças médias de preocupação entre pessoas de diferentes capacidades financeiras não eram grandes. Em sentido estatístico, não se pode afirmar que provenham de níveis de preocupação diferentes.

Uma segunda questão, próxima da anterior, incidiu sobre conhecer o grau de preocupação com o risco para a saúde da COVID-19. Encontra-se, agora, uma maior diferença entre respostas de acordo com a capacidade financeira, sendo os inquiridos com menor capacidade financeira os mais preocupados com este risco. Embora a capacidade financeira não seja diferenciadora na preocupação com contrair e com o risco para a saúde da COVID-19, há outras características individuais que estão associadas a diferentes níveis de preocupação. Sem surpresa, a idade é uma dessas características. Refletindo a informação amplamente divulgada de maior mortalidade em idades mais avançadas, quem tem mais anos de vida apresentou um maior nível de preocupação. A consciência de que a idade é um factor de risco para a COVID-19 está, pois, presente. Contudo, este efeito não é sempre crescente com a idade. As pessoas com 65 anos ou mais reportam menor preocupação, em média, que os grupos etários mais novos (exceptuando os abaixo de 35 anos). Igualmente sem surpresa, quem exerce uma profissão ligada à saúde ou ao retalho alimentar apresenta um maior nível de preocupação, resultado provável de serem atividades profissionais com maior exposição ao risco de contrair a COVID-19.

Curiosamente, ter atividade profissional levada ao ensino (escolas) não surge como estando associado a maiores receios com a COVID-19, depois de se ter em conta os restantes factores, nomeadamente a idade. Face a toda a discussão que tem existido sobre a reabertura das escolas, de momento a ocorrer de modo faseado, não se encontrou um nível de preocupação acima da apresentada pela população geral, dado o grupo etário em que esses profissionais se situam. Como a maior, ou menor, capacidade financeira se pode traduzir numa menor, ou maior, utilização de transportes públicos, o apoio a politicas de suspensão de circulação de transportes públicos, como forma de reduzir contágio, pode receber maior apoio das famílias com menor capacidade financeira (por estarem mais expostas ao contágio nesse contexto) ou pode receber menor apoio dessas mesmas famílias (por necessidade da sua utilização por motivos profissionais e de rendimento).

As respostas obtidas dão, marginalmente, maior apoio à paragem dos transportes públicos por quem tem maior capacidade financeira. Este resultado, em valores médios da escala de classificação por grupo de capacidade financeira, sugere que o elemento de preocupação económica associada com a falta de transporte público é mais forte que o elemento de preocupação com o risco de doença. Não é, porém, um efeito muito forte. Em sentido estatístico, não é possível afirmar que haja diferenças substantivas de opinião de acordo com o grau de conforto económico.

Em termos de preocupação com os aspectos económicos da pandemia, quatro perguntas são interessantes para a discussão: a) preocupação com a sobrecarga do sistema de saúde, b) preocupação com os efeitos sobre as pequenas e médias empresas; c) preocupação com uma recessão económica; e d) preocupação com a possibilidade de desemprego.

A preocupação com a sobrecarga do sistema de saúde é uma forma indirecta de avaliar a maior ou menor facilidade de acesso a cuidados de saúde que as pessoas percepcionam, também em função da sua capacidade financeira de procurar alternativas. A hipótese de trabalho assumida é a de que pessoas que sentem maior facilidade de acesso ao sistema de saúde e menor risco de infeção irão ter menos receio de sobrecarga do sistema de saúde. Quem tem maior conforto financeiro poderá, além de um menor risco de contrair a COVID-19, possuir um maior acesso a cuidados de saúde (por exemplo, recorrendo ao sector privado). As diferenças que possam existir quanto à possibilidade de ser infectado são directamente abordadas noutra questão, como se viu.

Em todas estas perguntas, as respostas apresentam diferenças de acordo com a capacidade económica de quem responde, em que o maior nível de preocupação surge nas pessoas que declaram ter menor capacidade financeira. O efeito, porém, só é acentuado, no sentido de diferenças entre categorias de capacidade financeira que são estatisticamente significativas, quando se trata da possibilidade de desemprego. E surge também mais forte nos inquiridos com atividade ligada ao retalho alimentar e nos que têm menos de 45 anos. Situações com maior precariedade laboral, seja pela área seja pela idade, levam, naturalmente a maior preocupação. Preocupação essa que está, como seria de esperar, ausente nas pessoas com 65 anos ou mais que se encontram maioritariamente na situação de reforma. Resulta daqui que os efeitos económicos da pandemia são sentidos de forma diferente entre grupos com distinta capacidade (conforto) económica.

Em contexto internacional, compara-se brevemente Portugal com os outros países incluídos no mesmo inquérito (Alemanha, Dinamarca, França, Itália, Países Baixos e Reino Unido). A nível europeu, a preocupação com a sobrecarga dos sistema de saúde (em cada um dos países) apresenta, globalmente, um claro efeito associado com o grau de capacidade financeira (quanto maior é, menor preocupação é manifestada). A menor preocupação surge na Dinamarca, enquanto é em Portugal e Itália que existe o maior nível de preocupação.

Também a preocupação com uma eventual situação de desemprego tem a nível destes países, tomados em conjunto, uma relação negativa entre maior capacidade financeira e menor preocupação. Não é só em Portugal que esta potencial assimetria no impacto social da COVID-19 se manifesta. A maior preocupação com essa possibilidade nas pessoas com atividade profissional no retalho alimentar é partilhada. Os países onde o desemprego preocupa mais as pessoas são, novamente, Itália e Portugal, e onde é menor é em França e nos Países Baixos, estando os restantes países numa situação intermédia.

Globalmente, Portugal é um país onde as pessoas têm maior preocupação com as consequências económicas da pandemia e esperam um efeito negativo maior quanto menor é o seu grau de capacidade financeira para mensalmente fazer face às despesas habituais de vida. Em contrapartida, não há diferenças grandes na forma de encarar o risco de infecção ou o grau de gravidade da COVID-19 que estejam associadas com a capacidade financeira. Neste aspecto, Portugal está em linha com o que se passa nos outros países.

Embora estes não sejam dados que meçam directamente as consequências da pandemia sobre diferentes grupos da população, com diferentes níveis socio-económicos, não deixam de transmitir um sinal claro de que a pandemia COVID-19 tem potencial para agravar desigualdades sociais, através do seu impacto económico.


3 comentários

a propósito do paraministro

A política portuguesa vai criando novos termos. Depois da “geringonça” de há cinco anos, vem agora o “paraministro”, a propósito do papel de António Costa e Silva no delinear da economia pós-COVID-19 (ou melhor, depois do primeiro embate da COVID-19).

As primeiras reações políticas foram, bem, políticas – se o tomam ou não como interlocutor (não é interlocutor oficial, segundo os partidos políticos).

Para a parte económica, António Costa e Silva deu uma entrevista a Ricardo Alexandre, TSF, da qual se podem recolher algumas das ideias que tem. Depois de ouvir, aqui fica o que retirei. Desde logo um objetivo geral de transformação da economia portuguesa: plano a curto prazo para salvar a economia, a médio e longo prazo transformar a economia. Competir no mercado internacional será parte dessa solução. Ter um plano transversal, com “áreas estratégicas a transformar para servir o futuro.” A referência ao trabalho de Acemoglu e Robinson é interessante, leva a focar na qualidade das instituições, boas políticas públicas, capacidade de criar mercados inclusivos. O que é curioso pois pode-se perguntar se o próprio trabalho como “paraministro” reforça, ou não, a “qualidade das instituições”, no sentido em que a informalidade deste papel será ou não compatível com o que se pretende (do que diz António Costa e Silva, irá fazer recomendações, que depois o Governo decidirá se usa ou não). Há na entrevista, a inevitável neste momento, referência ao investimento no SNS: equipamentos e recursos humanos, preparação para possíveis epidemias, todas as ciências de saúde, centros de investigação, empresas que trabalham nessa área. A concretização será o verdadeiro teste. É expressa por António Costa e Silva preocupação com a transparência, falando num portal para se saber para onde o dinheiro vai. Grande atenção à transição energética, incluindo oportunidades de produção de equipamento, ligar ao cluster do hidrogénio. É o conhecimento profissional da área onde trabalha a vir ao de cima. Como grande ideia chapéu de tudo: explorar via continental e via atlântica – a ligação do “mar” ao “resto da europa continental, apanhando pelo caminho o que o território consegue dar”. Não é uma ideia nova. Desde a criação do Porto de Sines que creio que ciclicamente essa ideia regressa. Veremos como se concretiza desta vez. Ligado ao mar e à extensão da plataforma continental, a intenção da Universidade dos Açores se tornar “a” Universidade do conhecimento do mar, a Universidade do Atlântico, de um modo global (no contexto mundial). A transição digital, sobretudo um reforço das competências digitais na Administração Pública, como elemento chave já para o futuro próximo. Referida também a importância de aumentar a produtividade e ao mesmo tempo promover a coesão interna de Portugal, com o reconhecimento do papel das pequenas e médias empresas.

Na forma de organização económica, as três grandes linhas são, se percebi corretamente, o Estado como última proteção, não acreditar em mercado auto-regulados, e o sistema empresarial como base. Globalmente, recolhe ideias que me parecem largamente consensuais. Será o detalhe a dar o grau de inovação que estas ideias possam vir a ter. Sobretudo o equilíbrio entre “plano do Estado”, e regulação de mercados que permita às empresas serem inovadoras. Só vendo as recomendações se poderá ter melhor visão do que será.

Todo este processo não afasta algumas preocupações, existentes ainda antes do trabalho do “paraministro”. Preocupações centradas muito no processo que poderá levar a que desaproveite as verbas que eventualmente estarão disponíveis (há sempre o risco de o dinheiro ir parar a carros elétricos topo de gama, cumprindo assim objetivos ecológicos).

Os riscos para Portugal de receber somas avultadas de fundos é que sejam usados de forma pouco produtiva. E os programas que os dirigem criam custos de acesso que aliados ao ponto anterior geram problemas a prazo, por distorcerem a economia portuguesa na sua estrutura produtiva.

Uma forma menos cuidada de atribuição dos fundos pode também criar tensões por acentuarem desigualdades sociais e regionais. Ter muitos fundos para distribuir é um estímulo à corrupção. A forma de organizar todo o processo irá condicionar os próprios resultados que se conseguirão.

Uma primeira sugestão: a ser criada uma nova estrutura, missão, plano, roteiro, o que se lhe entender chamar, que a equipa central tenha uma composição internacional – que seja feito um recrutamento a nível global para essa equipa. Tem duas óbvias vantagens, vai buscar as melhores pessoas, onde quer que estejam, e ao trazer pessoas de fora, importa também a independência delas das “tribos” locais. Naturalmente que há portugueses capazes de desempenhar estes cargos, mas prefiro que sejam escolhidos num processo que garante maior capacidade técnica, com amplas possibilidades de recrutamento. E se além de portugueses portugueses, houver outras nacionalidades não vejo mal em que estejam holandeses, finlandeses, estónios, irlandeses, espanhóis, checos, búlgaros, ou qualquer outro cidadão, até de fora da União Europeia (apesar da ideia de ter um holandês apresentar um toque de ironia que me agrada).

O distanciamento da “tradição portuguesa” até será uma vantagem a prazo para a economia portuguesa, uma vez que levará à colocação de perguntas que podem ser incómodas, ou a contestar “verdades adquiridas” mas sem atual sustentação. Um exemplo de pergunta global: será que as pequenas e médias empresas portuguesas não serão demasiado pequenas, em geral, para vingarem num espaço económico alargado? A partir da resposta, é possível pensar que tipo de intervenções públicas se poderão aplicar melhor. 

Para ponto de partida, será útil fazer uma lista de áreas onde foi mais e menos produtivo ter programas de apoio ao desenvolvimento empresarial. Produtivo aqui significa capacidade de gerar riqueza como múltiplo de cada euro lá colocado por dinheiros públicos. Um ponto de partida está aqui. E ter também uma lista “negra” de empresas, empresários e tipos de projeto que só foram rentáveis enquanto apoio público (onde não houve “falha de mercado” a ser ultrapassada, e apenas “rendas económicas” a serem colhidas, no que espero que seja uma lista pequena). Por exemplo, outra questão, projetos de grandes empresas que sejam realizados de qualquer modo, devem beneficiar de apoios públicos?

Duvido muito da capacidade central do Estado, ou de um “paraministro”, com maior ou menor equipa de apoio, em definir “sectores de futuro”, em geral e ainda mais nas atuais condições de incerteza. Tenho alguma curiosidade de saber se as “áreas estratégicas” serão definidas com fino detalhe (produzir pás para turbinas eólicas) ou serão definidas de forma ampla (software para cibersegurança, como exemplo).

Há sempre o perigo de se tomarem decisões de curto prazo que são contrárias a um bom desempenho a prazo. A economia portuguesa tem sido capaz de regularmente deitar fora oportunidades de desenvolvimento por se deixar tentar pela fartura imediata de recursos que são colocados à nossa disposição. Desde a integração europeia que tem sido assim, embora olhando para outros passados, o mesmo padrão se vá encontrando (especiarias da india, ouro do Brasil, são os exemplos dos livros de história). 

Ter esta preocupação, a propósito do anúncio do plano de recuperação da economia europeia anunciado pela Comissão Europeia e os seus muitos milhões que irão, provavelmente, chegar a Portugal, é saudável.

Haverá, como já surgiram, as críticas de quem ache que é pouco (sobretudo quem é contra a União Europeia por princípio). Mais do que estar a medir os muitos “mil milhões” de euros que eventualmente cá chegarão, é crucial que essas verbas venham a servir para uma melhoria do funcionamento da economia portuguesa – todos concordarão muito provavelmente com este objetivo. O problema é definir o que significa “melhor funcionamento”, que mecanismos e instituições o garantem melhor. 

A tentação natural portuguesa será o de criar algum novo programa e estrutura de suporte, com inevitáveis candidaturas a projetos avaliados por métodos tais que deixam as diferentes “tribos” sossegadas (sejam empresariais, da política local, da política nacional, etc. – adicionar a “tribo” de que se lembrar à vontade). Sobre esta parte, António Costa e Silva nada disse, provavelmente porque será parte das recomendações que irá fazer e só terá total capacidade de as fazer depois de precisamente falar com ministros e com “tribos” e seus representantes.

O espírito que tipicamente se instala é de ver estas verbas como redistribuição e não como instrumento de criação de valor económico e social que seja reprodutivo ao longo de décadas. Como se irá conseguir ter uma perspectiva diferente é um dos desafios.

Não tardaremos a ver as tentativas de aceder a estes fundos dos que têm “ideias de futuro”, dos que têm “indústrias ou serviços severamente afetados pela crise da pandemia”, dos que procuram a “proteção dos trabalhadores e dos seus postos de trabalho”.

A principal oportunidade do programa de relançamento da economia europeia é ser suficientemente grande para levar a pensar e a ter meios para agir de forma diferente.

E como ponto de partida, adoptar novas metodologias.

Temos uma oportunidade para experimentar novas formas de governação para definir a utilização das verbas que serão colocadas à disposição de Portugal, tendo por base uma aspiração europeia.

A nossa história do corrente milénio foi a de que ter fundos (comunitários) e uma visão voltada para dentro, resultou num fraco desenvolvimento do país, e numa crise de que ainda não se estava completamente recuperado, em termos de nova estrutura produtiva de bens e serviços na economia, quando surgiu a COVID-19.