Ontem o Governo divulgou, através de Paulo Portas, o documento guião para a reforma do Estado. Vai levar vários dias a ler e comentar, e a concorrência será grande. O primeiro ponto de registo é a forma como foi anunciado e introduzido. Depois de praticamente um ano de “ameaça” sobre a reforma do estado e sobre os riscos de se identificar essa reforma com meros cortes no orçamento, é interessante registar que o documento não é uma lista de cortes (esses pertencem ao orçamento do Estado). O outro elemento importante é colocar a atenção e esforço na construção para o médio e longo prazo. É a perspectiva correcta para uma reforma deste teor, e só se pode lamentar que o documento tenha levado um ano a ser produzido (foi um ano que se perdeu de discussão).
Torna-se inevitável que esta reforma do Estado vá temporalmente além do mandato deste governo. Contudo essa característica não pode ser motivo para evitar a discussão e não levar a sério as contribuições que sejam realizadas. Com o aproximar das eleições legislativas, tudo o que for desconfortável na reforma do estado será previsivelmente colocado de lado. É importante que o processo pelo qual se vai realizar a discussão (admitindo que vamos realmente discutir a reforma do estado) tenha mecanismos que impeçam esse “deslize” da discussão.
Sobre o processo, a introdução do documento é desde logo clara: “o método proposto para reformar é o do gradualismo”, o que quer que isso queira realmente dizer. Seria útil que houvesse nos próximos dias uma clarificação do processo de discussão, e de como as contribuições podem ser realizadas, e de como serão acomodadas na discussão. E esse processo pode ser diferente de área para área.
No que foi anunciado, há aspectos que dependem apenas da vontade do Governo e da sua capacidade de liderança interna em promover as transformações – por exemplo concentrações de organismos dentro da Administração Pública, ou junção de funções similares realizadas em diferentes ministérios (foram mencionadas as situações dos gabinetes jurídicos e das secretarias gerais na apresentação pública).
Também a gestão dos recursos humanos depende essencialmente do Governo, e foi referida a opção por ter menos funcionários públicos melhor remunerados e com maior produtividade (suponho). Aqui o trabalho a realizar é sobretudo dentro da Administração Pública e não é claro que tenha que ser debatido publicamente e politicamente. Mas seria importante, e retomando o tema dos textos aqui colocados no início da semana, saber que a Administração Pública vai ter mecanismos de gestão de talento, e mais do que atrair com boas remunerações profissionais adequados (o que será um desafio) é necessário perceber como vai lidar com os problemas de falta de desempenho. A falta de desempenho pode resultar de muitas razões, e nem sempre o despedimento é a melhor solução, nem a única, pelo que ter mecanismos para a sua resolução não poderá ter como única resposta facilitar os despedimentos ou a criação de bolsas de disponíveis na função pública. Não é dessa forma que as melhores organizações resolvem os problemas, embora esse instrumento tenho que eventualmente estar disponível de alguma forma.
De resto, numa primeira leitura breve do documento, a sensação que fica é a de somatório de contribuições de pessoas de várias áreas com as suas ideias, mas não é totalmente claro que se tenha uma visão clara de conjunto. E será igualmente relevante que essa visão de conjunto se vá construindo.
Calculo que durante os próximos dias vários comentadores venham dizer que estão desiludidos com o guião da reforma do Estado. É natural. Cada um teria em mente um documento diferente, como se cada um esperasse que o Governo apresentasse um documento como ele, comentador, o faria. Não é possível isso suceder, na medida em que cada pessoa pensaria e daria ênfase a aspectos diferentes. Ao começar a ler, sinto naturalmente os meus próprios enviesamentos, mas o aspecto principal é saber se este documento pode dar início a uma discussão séria sobre a reforma do Estado. E a essa pergunta a minha resposta é um sim. O documento não é particularmente longo, e permite entrar em discussões sectoriais de detalhe com alguma base. Digo alguma base porque será necessário que agora, para as ideias apresentadas, se tenha um mínimo de método, respondendo às seguintes questões, com evidência: a) qual é o problema em causa que justifica a intervenção do Estado? b) em que medida o funcionamento actual permite atingir esse objectivo (eficácia)? c) em que medida há opções alternativas para atingir esse mesmo objectivo? d) qual dessas alternativas é a que tem menor custo (social, económico, etc.) de atingir o objectivo proposto? e) que mecanismos de monitorização e aperfeiçoamento vão ser adoptados depois de escolhida a opção? f) qual o processo de aplicação da opção escolhida?
Um bom ponto de partida, quanto a mim, seria cada secretaria de estado, uma vez publicado o guião, indicar em que medida o guião lhe diz respeito, com referência às perguntas acima indicadas.
Claro que isto não vai acontecer neste país. Mas devíamos ser exigentes a esse ponto. De colocar a própria administração pública a contribuir para a discussão do guião da reforma do Estado de uma forma técnica.
(continua amanhã….)