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sobre o Inquérito Serológico Nacional COVID-19, do INSA

inquérito serológico nacional feito pelo INSA indica uma estimativa de 2,9% da população residente em Portugal já ter tido contacto com a COVID-19 (sendo que o intervalo da estimativa está entre 2% e 4,2%). Ou seja, há uma confirmação de apenas um pequeno número de pessoas, no contexto da população total residente em Portugal, ter estado exposta à COVID-19, resultado das medidas adoptadas (o que se passa em alguns estados dos Estados Unidos sugere o que pode suceder em termos de ritmos de contágio caso não se sigam medidas destinadas a cortar esse contágio).

Para esta conclusão, não é crucial uma precisão muito grande na estimativa fornecida – não é muito diferente se for 2% ou 4,3%, os limiares mínimo e máximo da estimativa. Em termos técnicos, a forma de amostragem poderá ter induzido algum efeito de seleção na amostra usada, apesar dos cuidados tidos pelos autores em procurara evitar esse efeito. Ao considerar apenas pessoas que se dirigiram a hospitais ou a pontos de colheita por outros motivos que não indicação para fazer teste à COVID-19, evitam uma parte do efeito de seleção. Mas não integralmente, pois não há qualquer garantia que as pessoas que se dirigem para fazer análises são uma amostra aleatória da população relativamente ao risco de terem tido contacto com a COVID-19. Por exemplo, é plausível que algumas das pessoas que tiveram COVID-19 sem qualquer sintoma também possam ter menor probabilidade de ir fazer análises. E para pessoas mais jovens é igualmente plausível que a ida a um hospital possa estar correlacionada positivamente com fatores que tornem mais provável ter tido contacto com a COVID-19. Dada a importância do contágio entre jovens para o funcionamento das escolas, é bastante importante que se perceba se há, ou não, algum efeito de seleção que leve a uma sobre-estimação da exposição à COVID-19 na amostra utilizada.

Os ajustamentos realizados no estudo não eliminam totalmente a possibilidade de enviesamentos.

No estudo realizado em Espanha, referido pelos autores do INSA para comparação, optou-se utilizar uma amostragem aleatória da população, inicialmente prevista para cerca de 102  mil pessoas, tendo no final analisado uma amostra de 61075, muito maior, em termos relativos e face às populações de Espanha e Portugal, que a amostra de cerca de 2300 pessoas no estudo do INSA. Sobre outros detalhes técnicos que melhorariam, a meu ver, a qualidade do estudo, pode-se consultar o Roteiro Serológico Nacional proposto por um grupo de investigadores e dinamizado a partir do Instituto Gulbenkian de Ciência (disponível aqui) (*).

A capacidade de retirar conclusões a um nível mais fino, por grupos da população, fica naturalmente limitado pela dimensão da amostra – por exemplo, em Espanha, as diferenças entre grupos etários existem de uma forma que não é identificada no estudo do INSA – a dimensão e forma de amostragem poderão ser uma explicação (ou haver então algo na exposição ao vírus em Portugal e Espanha que tenha gerado as diferenças). 

Dito isto, não é de esperar, contudo, que os valores fossem suficientemente diferentes para ter implicações completamente distintas em termos de políticas públicas. Até pelas medidas adotadas para contenção da pandemia é natural que os valores sejam baixos, e não estão muito diferentes do que se encontrou em Espanha (fora dos grandes centros urbanos, onde a presença da COVID-19 foi muito mais intensa – em Madrid, por exemplo cerca 1 em cada 10 pessoas tinha tido contacto suficiente com a COVID-19 para gerar anticorpos).

Deste estudo resulta que também em Portugal o papel dos assintomáticos é importante: pessoas que não tendo sintomas suficientemente importantes para serem detetados pelo sistema de saúde, continuaram a potencialmente contagiar outros. A implicação poderá ser aqui a de usar critérios mais amplos para testar pessoas (com sintomas menos graves) para encontrar e parar o potencial contágio. Encontrar pessoas com sintomas leves ou sem sintomas é naturalmente mais difícil de fazer, será necessário definir critérios para o fazer de uma forma sistemática.

E os valores encontrados para a proporção de pessoas que desenvolveram anticorpos são suficientemente baixos para suscitarem um problema de interpretação, associado com existirem casos que são assinalados como positivos não o sendo realmente. O argumento encontra-se descrito de forma bastante acessível aqui. É um problema que resulta de haver um pequeno número de casos (face à população total) de COVID-19.

Apesar destas observações, não deixa de ser bastante útil ter esta informação, que essencialmente dá suporte a perceção existente de apenas uma fração pequena da população ter sido exposta à COVID-19 (estando-se por isso longe da falada imunidade de grupo), e de as diferenças entre grupos etários não ser suficientemente forte para que um qualquer grupo etário se possa considerar imune ao contágio. Claro que se pelo seu comportamento os valores encontrados entre grupos etários são similares por haver comportamentos subjacentes diferentes (digamos, de maior defesa por parte da população com mais idade), então os valores similares na amostra serão compatíveis com riscos diferentes – esta distinção só é possível ser feita se os testes realizados forem acompanhados de inquéritos que permitam perceber se houve comportamentos que implicassem diferentes exposições das pessoas incluídas no estudo.

Tendo sido este um importante primeiro passo, é agora necessário que este conhecimento seja completado com informação mais detalhada sobre como a COVID-19 se tem vindo a espalhar e como os comportamentos das pessoas têm contribuído para parar os contágios. Desse conhecimento adicional poderão ser depois retiradas implicações para decisões que “afinem” o equilíbrio entre a necessidade de segurança de saúde e a necessidade de atividade económica.

(*) Declaração de interesses: Como subscrevi o Roteiro dinamizado pelo Instituto Gulbenkian de Ciência, a minha preferência à partida é por uma forma de definição da amostra a ser analisada diferente da opção do INSA.


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Comentários ao Plano Costa Silva (4)

A secção 2 do Plano Costa Silva é dedicada ao entendimento da “crise sistémica” e às lições para Portugal.

Na parte da crise sistémica, é enunciado que o Plano deverá estar alinhado com o Pacto Ecológico Europeu. Mas deverá ser mais do que apenas um alinhamento no papel, e ser claro quais as ações que daí decorrem, e qual a contribuição de Portugal para definir as próprias prioridades europeias (sendo certo que não depende de nós, contribuições técnicas serão uma forma de Portugal se afirmar na dimensão europeia).

É identificado também o choque que a COVID-19 provoca nas relações comerciais internacionais, em que é esperada uma retração. A ação é colocada pelo Plano no nível do softpower, o que sendo importante num sentido estratégico global do papel de Portugal, deixa em aberto duas questões diferentes: 

a) como é que esse softpower é exercido no contexto de uma União Europeia em que Portugal participa, e deveria participar mais ativamente? 

Não tenho resposta, a procura desta resposta cabe a quem tenha desenvolvido pensamento e conhecimento sobre questões de ciência política e posicionamento estratégico internacional;

b) a redução das trocas comerciais vai ter implicações sobre a capacidade de crescimento económico, sobre a estrutura produtiva da economia e sobre a distribuição de rendimento dentro do país (menor crescimento que possa advir da retração das trocas internacionais significa também menor capacidade de redistribuição interna). Há efeitos de rendimento real associados com a quebra das trocas comerciais internacionais. É preciso perceber melhor como e quem será afetado, para se definirem políticas públicas adequadas para a transição para uma nova estrutura produtiva.

No campos das relações económicas internacionais, o Plano Costa Silva assinala a importância de África, das “várias Ásias”, América Latina, Europa, Estados Unidos  – assim de repente, fica apenas a faltar Canadá, Austrália e Nova Zelândia. O que retiro é que na verdade todas as relações comerciais são importantes, e não há vantagem de estar a definir zonas geográficas “especiais”, estas devem ser ditadas pelas oportunidades de trocas comerciais vantajosas identificadas pelos exportadores portugueses. Parte substancial do contexto de tarifas e outras barreiras é definida em bloco com a União Europeia. E no final do ano haverá algo que mudará com o Brexit. Nesta área do “ajustamento ao modelo de globalização”, acabam por não ser claras as lições para Portugal – fica-se a saber que algo vai mudar, mas não há uma perceção do quanto e como vai mudar, e se exige uma resposta das políticas públicas portuguesas que seja especifica suficiente para ser incluída depois na lista de ações deste Plano.

A subsecção seguinte é sobre o “papel da União Europeia”, mas nada de novo ou concreto é identificado ou retirado como lição. Dizer que “Portugal, ao mesmo tempo que explora a sua relação marítima com o mundo deve reforçar e consolidar a sua relação continental com a Europa” é muito pouco. Para uma secção de “identificação”, como foi proposto que esta seriam era importante saber se a “relação marítima” é complementar ou substituta da “relação continental”, ou se são perfeitamente independentes, ou se há áreas em que são se complementam, e há áreas em que geram tensões. Por exemplo, deve ou consegue Portugal ter um papel de liderança na União Europeia em assuntos que são cruciais para a “relação marítima”? como o poderá fazer (que lições retiramos das tentativas de o fazer, se é que já as houve?). 

Dizer que Portugal deve fazer tudo ao mesmo tempo é pouco útil, porque pode não ser possível, e não um sentido de prioridades. Não há propriamente uma discussão do papel, possível e desejável, de Portugal no contexto da União Europeia, dos objetivos que possa ter, das restrições e limitações que possa enfrentar. 

Pessoalmente, interessava-me muito saber como se pode ultrapassar a imagem de “país do Sul” de mão estendida, ou, voltando às fábulas antigas, a cigarra do sul. A minha sensação é que tal tem de ser feito com contributos técnicos para o progresso da União Europeia como um todo. Aproveitando a proposta da “dimensão marítima”, como Portugal se pode inserir na União Europeia a liderar essa dimensão – sendo que esta dimensão será mais relevante para uns países do que para outros, que alguns falarão mais em recursos hídricos do que em mar, etc… E havendo uma Missão Europa para Healthy oceans, seas, coastal  and inland waters, não deveríamos estar empenhados em ter ações próprias que mostrassem a nossa capacidade de liderança?

Há necessidade de muito mais atenção ao contexto europeu, para que o possamos influenciar na medida do nosso softpower (para usar a expressão do Plano Costa Silva).


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Comentários ao Plano Costa Silva (3)

Na segunda parte da introdução ao Plano (p.6 e seguintes), é descrita a mudança de perceção criada pela COVID-19, que deverá levar (segundo o autor) a cadeias de produção mais próximas geograficamente e reindustrialização de Portugal e da Europa.

E aparece a primeira menção ao Serviço Nacional de Saúde (“como um investimento e não como um passivo”). 

Embora numa primeira leitura seja fácil concordar com o que vai sendo escrito, é importante ter um pouco mais de espirito critico.

Primeiro, porque razão foram deslocalizadas atividades produtivas para a Ásia e para a China em particular, e o que muda a COVID-19 nessa motivação? 

Segundo, qual o nexo lógico da COVID-19 para a reformulação da intervenção pública na área social?

Tomando a primeira pergunta, uma das vantagens reconhecidas das trocas comerciais é a especialização produtiva das economias – se todas as economias produzirem exatamente o mesmo nas proporções exigidas pela sua procura nacional perdem-se oportunidades de troca mutuamente vantajosas – o “mutuamente” é um elemento chave, pois significa que todos os ganham. Na passagem de produção para a China os consumidores europeus, e os portugueses, ganharam acesso a produção com custos muito menores do que teriam se fizessem os produtos nos respetivos países, e a contrapartida é usarem os seus recursos produtivos noutros bens e serviços que são depois vendidos aos consumidores chineses (finais ou industriais). A COVID-19 vem trazer incerteza sobre a interrupção das cadeias de comércio internacional, por fecho de fronteiras como medida de contenção de redes de transmissão local do vírus. O risco e o custo dessa interrupção pode justificar então uma maior proximidade das cadeias logísticas. O receio de que outros vírus ou problemas similares interrompam no futuro as cadeias de comércio pode justificar uma mudança permanente da localização da produção. Se é esta a análise subjacente às afirmações do Plano Costa Silva, os benefícios de maior proximidade serão menor risco de interrupção de cadeias logísticas e os custos serão os preços mais elevados que serão pagos (por acréscimo de custos de produção, de outro modo a produção se teria movido para outros países). E é preciso saber se essa produção local não retira recursos importantes de outras atividades – por exemplo, engenheiros que poderiam estar noutras indústrias. O balanço entre custos e benefícios de trazer para Portugal produção que está noutros países, nomeadamente na China, está, neste momento, influenciado pelo “medo” criado pela pandemia. Não é certo que se mantenha no futuro esse “medo”, e que se esteja disposto a abdicar de produzir em países asiáticos. A decisão de trazer para mais perto as cadeias logísticas depende em grande medida das empresas, e estas acabarão por fazer um balanço mais racional das vantagens e desvantagens, pelo que ou se está como consumidor disposto a pagar mais por ter produção próxima (e esse é um argumento de escolha dos consumidores), ou então irá mudar menos do que é antevisto no Plano Costa Silva. Será muito útil ter informação mais detalhada e precisa sobre as intenções empresariais – seja qualitativa ou quantitativa, antes de serem tomadas decisões de políticas públicas.

Encaixando de rajada nesta questão das cadeias logísticas, o Plano Costa Silva refere diversos aspetos do Estado Social e logo de seguida o sistema científico e de investigação.

A relação entre as várias áreas, cadeias logísticas, estado social e sistema científico, parece ser apenas em que a atenção para elas é renovada pela COVID-19. Estes diferentes temas merecem sistematização da discussão, cada um por si, em lugar de colocar tudo num mesmo parágrafo. 

É aqui que surge a menção ao Serviço Nacional de Saúde como um investimento. Esta é uma frase que se tem tornado comum, muito por oposição à ideia de Serviço Nacional de Saúde como despesa, e frequentemente com a intenção de “puxar para cima” os benefícios que justificam a despesa em cuidados de saúde, e em particular a despesa pública no Serviço Nacional de Saúde. Mas é preciso o cuidado de reconhecer que chamar investimento não significa que é sempre bom; também há investimento mal feito, e sobretudo passar dai para “desenvolver as biotecnologias na área da saúde, que são essenciais pare prevenir e combater novas epidemias” é um salto que me parece grande demais. As biotecnologias são relevantes, e Portugal pode ter uma componente interessante de atividade nessa área, mas não por causa de “novas epidemias”. E o papel da despesa, do investimento se lhe quiserem chamar assim, no SNS não é certamente desenvolver as biotecnologias na área da saúde, embora certamente a atividade do SNS possa beneficiar do conhecimento gerado nas biotecnologias da saúde. Ou seja, muita coisa em poucas linhas torna tudo pouco claro quando se tenta perceber de que assunto se está exatamente a falar. 

E termina-se esta página do Plano Costa Silva com uma listagem de todos os riscos “para identificar  e gerir”: risco de novas pandemias, risco sísmico, risco energético, risco climático, risco da desertificação (demográfica?), risco de ciberataques, riscos políticos disruptivos, e outros riscos. É impossível que um plano de recuperação económica consiga responder a todos estes riscos. Voltarão a ser falados aqui e ali no texto do Plano, mas não consegui decifrar, no final, qual a proposta defendida para “identificar e gerir” cada um destes riscos. Não vem especial mal por isso, mas distrai ter na introdução todo este elencar de riscos.

A menção do pilar social, incluindo aqui a luta contra a pobreza e contra o desemprego, proteger os “mais desfavorecidos e vulneráveis da sociedade”, é ambígua, pois não resulta claro se o plano de recuperação económica deve promover também esses objetivos sociais, ou se são os mecanismos de proteção associados com este pilar social que serão o “motor” da renovação económica. 

A parte final da introdução remete para a importância da transição digital, e para o “pilar fulcral” da transição energética, com referência aos vários planos, pactos, roteiros e estratégias já existentes (mas sem informar mais do que isso).

Chegando ao final da introdução, fica a sensação de se ter colocado muitas preocupações, mas de uma forma desordenada, sem ficar claro, pelo menos para mim, o que são instrumentos e o que são objetivos, o que tem maior ou menor prioridade. 


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Comentário ao Plano Costa Silva (2)

As primeiras páginas do Plano Costa Silva estabelecem apenas que a COVID-19 levou a medidas que geram uma recessão económica – redução da produção de riqueza -, daqui retirando Costa Silva a implicação de que depois da pandemia deveremos ter uma sociedade diferente, com “um modelo de crescimento mais justo, próspero e eficiente, no uso regenerativo dos recursos e dentro dos limites dos sistemas naturais”. 

Este é um salto que grande, não sendo de todo claro que assim seja forçosamente. Em termos económicos, as medidas de controle da COVID-19 implicaram uma paragem de produção. Se as condições de saúde – descoberta de uma vacina ou de um tratamento – surgirem muito rapidamente, retomar a situação anterior não seria impossível. Existem por isso duas forças a ter em conta: a) a vontade de mudar da sociedade, sendo a COVID-19 um choque suficientemente relevante para levar à ação; b) a COVID-19 não ter rapidamente uma vacina ou um tratamento, levando à necessidade de novas regras nos contatos económicos e sociais, gerando mudanças na própria atividade económica.

Contudo, a discussão de visão estratégica que se segue no Plano Costa Silva poderia ser feita da mesma forma mesmo na ausência da COVID-19. A proposta é que Portugal deverá “explorar simultaneamente a sua relação continental com a Europa e a sua relação marítima com o mundo”. Esta visão de longo prazo poderia sempre ser feita. Uma pergunta é porque esta visão não foi adotada ou discutida antes, que barreiras existiram e que foram agora eliminadas para se assumir esta visão? A relevância em responder a esta pergunta está em perceber se será permanente assumir estas duas relações como “guias” para políticas públicas. 

Estava à espera, depois de enunciada a “relação continental com a europa”, uma discussão sobre como Portugal participará, e beneficiará, da construção de uma identidade europeia, que ideias deverá Portugal defender no contexto da União Europeia, na lógica do “novo ciclo geopolítico” mencionado algumas linhas antes. Infelizmente, a “dimensão continental” limita-se neste documento à “rede ferroviária nacional” e através dela na participação na rede de transportes europeia. É certamente importante, mas é manifestamente pouco como parte de uma visão estratégica para Portugal.

O governo, se quiser apresentar uma versão final, melhorada, revista, de uma visão estratégica, terá de desenvolver mais o que se defende para Portugal na sua identidade europeia, na sua participação, e desejavelmente, liderança de algumas áreas, no contexto da União Europeia.

A dimensão atlântica, por seu lado, tem duas partes – as estruturas portuárias e garantir que existem as outras condições para serem rentabilizadas, e a criação de ações ligadas ao mar que possam gerar crescimento económico e desenvolvimento (conjugando aspetos ambientais, inovação e conhecimento, extração de matérias primas, e criação de uma “grande universidade do Atlântico, a ser líder mundial em áreas ligadas ao mar). Gosto da ambição de uma universidade líder nas diferentes valências de conhecimento ligadas ao mar. Mas não é claro se a ligação ao mar também tem uma componente de geopolítica (ou não). Parece-me perfeitamente possível fazer do mar, dos oceanos, um tema central na União Europeia (tanto mais que até existe uma Missão Oceanos a desenvolver uma ambição europeia nesse campo).

Ou seja, é necessário aprofundar significativamente o que significa ter uma dimensão marítima e uma dimensão continental europeia. Neste sentido, esta primeira parte do plano Costa Silva abre portas que não explora completamente. Ou se realmente se quer limitar a melhorar portos e infraestruturas de transporte que liguem esses portos à Europa continental, então teremos um retomar de ideias antigas em palavras novas. (algumas ideias próximas foram desenvolvidas a propósito da área de Lisboa pela equipa liderada por José Félix Ribeiro, numa iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian, em 2015, texto disponível aqui).


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Comentários ao Plano Costa Silva (1) – novidade, deceção e equívoco

O Governo disponibilizou no internet o Plano Costa Silva, de seu nome completo “Visão estratégico para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020 – 2030”. E até 21 de agosto é possível enviar comentários para plano.recuperacao@pm.gov.pt

Uma vez que está colocado a discussão pública (o que desde já aplaudo), farei uma leitura comentada do texto (ou seja, os comentários seguirão em geral a ordem do texto).

Depois de uma primeira leitura, três comentários gerais, que podem ser resumidos em três palavras: novidade, deceção e equivoco. 

A novidade é a introdução na discussão de 3 grandes linhas, uma das quais tradicional em documentos de “visão estratégica”: 1) a ligação da costa atlântica ao interior ibérico e ao resto da europa, dos portos de mar à ferrovia; 2) a exploração (extração) de minérios e 3) o “mar”, os oceanos, como motivador de novos projetos. Estas linhas recebem bastante atenção e detalhe, havendo uma ideia clara e conhecimento do autor sobre o assunto. 

A deceção é a ausência total de uma visão sobre o papel de Portugal na União Europeia. Apenas se encontra uma perspetiva de “mão estendida”, a União Europeia como fonte de fundos. É pouco e é injusto para a construção europeia. É além disso um abdicar de uma participação portuguesa na liderança conjunta de um projeto europeu comum. Haverá muito a ganhar de conseguir fazer vingar uma participação portuguesa na União Europeia que também desenvolva as ideias das três grandes linhas que assinalei. Não será possível, a meu ver, uma liderança internacional de Portugal nas questões dos oceanos se não houver a capacidade de fazer uma mobilização a nível europeu na qual Portugal seja dinamizador. A conjugação de uma veia atlântica com a construção europeia deverá fazer parte de uma visão estratégica para o Portugal 2020-2030.

O equívoco está no papel do Serviço Nacional de Saúde. Desenvolverei porque considero que há nesta visão estratégica de Costa Silva um equívoco num texto futuro. Neste comentário geral assinalo apenas que o investimento no SNS não teve, não tem, não terá nem poderá ter, como um dos seus objetivos centrais o desenvolvimento de um cluster produtivo da saúde em Portugal. O papel do Serviço Nacional de Saúde (SNS) não é o de desenvolver a atividade económica em saúde. Esta atividade económica é potencialmemte importante, deve ser discutida, mas pertence à política industrial e não ao papel do Serviço Nacional de Saúde. E duas razões concorrem para esta minha posição: primeiro, os objetivos centrais do SNS são de proteção da saúde da população residente em Portugal; segundo, o SNS só por sí não tem capacidade para desenvolver um cluster produtivo da saúde em Portugal, para ter escala de forma a que possa sobreviver as empresas que estejam neste cluster da saúde terão de conseguir operar numa escala pelo menos europeia. Logo, o pensamento e a ação de dinamização deste cluster da saúde tem que considerar aspetos que não estão na mão do SNS. A questão que fica, e a que voltarei, é em que medida a prossecução dos objetivos centrais do SNS podem contribuir para dinamizar um cluster nacional na área da saúde. Mas esses aspetos são muto diferentes de “Investimento no SNS”.

Um comentário geral final, ligado à análise económica – falta uma noção de equilíbrio geral da economia em todo o documento. Cada área é tratada e discutida como se fosse completamente separada, o que sendo útil para perceber com algum detalhe o que se pretende para essa área, tem a desvantagem de ignorar o quadro geral da economia – se há recursos que vão para uma área, não irão para outra, e apresentar ideias como se todas elas fossem simultaneamente possíveis poderá esbarrar na realidade de ter de estabelecer prioridades e de encontrar efeitos cruzados entre áreas importantes (na discussão mais detalhada nos próximos posts, também voltarei a este tema).

Globalmente, acaba por ser um documento que poderia ser mais equilibrado, tendo porém o mérito de permitir uma discussão aberta sobre opções.


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gabinete de crise, radio observador – vivendo com o coronavirus (46)

Depois de algum tempo de ausência, o habitual resumo da contribuição para o gabinete de crise na rádio observador, nesta semana sobre a preparação para o próximo Outono/Inverno. E logo depois os resumos das duas semanas anteriores a esta.

Semana terminada a 24 de Julho.

Número da semana: 30% – queda no número de casos da semana passada para esta semana. Seja em Lisboa seja no resto do país, esta última semana esteve finalmente associada a uma redução importante nos novos casos. Aliás, nesta última semana todos os indicadores habituais evoluíram de forma positiva – baixou, pela segunda semana seguida, o número médio por dia de novos casos diários em Lisboa, e no total do país, baixou o número internados e o número de óbitos. Tal como tivemos um planalto com uma ligeira inclinação positiva até à semana passada, parece que vamos passar para um planalto com uma ligeira inclinação negativa. Tendo-se começado a receber turistas, aberta a fronteira com Espanha, e entrada em período de férias, veremos se é possível manter esta situação, que é a evolução desejada.

Estamos a ver noutros países europeus a dificuldade em controlar surtos, e embora não haja grande informação sobre como se está a fazer o trabalho de seguir as linhas de transmissão da doença nos vários locais desses países, o dito “planalto” em Portugal parece estar a comportar-se melhor (no sentido de menos “saltos bruscos” para cima) quando comparamos com outros países.

Um outro sinal positivo desta semana foi começar-se a falar da preparação do Outono. Para essa preparação funcionar, há quatro aspetos essenciais (pelo menos quatro): 1) o treino e número suficiente de médicos de saúde pública para reagirem rapidamente ao surgimento de surtos (e contê-los antes que avancem); 2) a preparação dos médicos de família, se mais de 97% dos casos foram seguidos e acompanhados pelos médicos de família nesta primeira vaga da epidemia, é de esperar que algo de similar suceda no Outono se houver um aumento de casos – saber aprender da experiência destes últimos meses para fazer ainda melhor se houver segunda vaga; 3) preparação dos hospitais para terem “dupla face” – covid-19 e todas as outras coisas; 4) preparação da população – com informação segura sobre as ações que serão tomadas pelas autoridades de saúde em casos detetados de contágio, de forma a que seja claro e rápido o entendimento das pessoas, e que estas próprias possam antecipar o que pode suceder e até adotar comportamentos e decisões que evitem os piores efeitos da pandemia. 

Média de novos casos diários por semana (semana “Gabinete de crise”, de 6ª a 5ª seguinte)

 Lisboa e Vale do TejoResto do PaísTotal nacional
8 a 14 de maio119110229
15 a 21 de maio15969228
22 a 28 de maio20635241
29 maio a 4 junho25926285
5 de junho a 11 de junho28942331
12 de junho a 18 de junho25952311
19 de junho a 25 de junho25775332
26 de junho a 2 de julho28768355
3 de julho a 9 de julho28781368
10 de julho a 17 de julho25572327
18 de julho a 23 de julho18447231

Nota: valores arredondados à unidade

Média de valores diários por semana (semana “Gabinete de crise”, de 6ª a 5ª seguinte)

 ÓbitosInternadosInternados em UCI
8 a 14 de maio11763114
15 a 21 de maio13636104
22 a 28 de maio1353373
29 maio a 4 junho1247061
5 de junho a 11 de junho740462
12 de junho a 18 de junho342772
19 de junho a 25 de junho442670
26 de junho a 2 de julho547873
3 de julho a 9 de julho850173
10 de julho a 17 de julho546967
18 de julho a 23 de julho444362

Nota: valores arredondados à unidade

Mito: O vírus vai desaparecer um dia destes? Não. É um mito associado sobretudo declarações do Presidente dos Estados Unidos, mas o conhecimento que temos ganho sobre o vírus revela duas coisas: é muito fácil ser transmitido; e tem um leque muito grande de gravidade nas suas consequências, desde quem não tem qualquer sintoma nem nota que teve a doença até ser letal. Estas duas características vão fazer com que venha a ser muito difícil eliminar completamente o vírus no futuro, e certamente não vai desaparecer por si só. Esperança da semana: começou-se a falar da preparação do próximo Inverno, pelo Ministério da Saúde mas também fora dele. A preparação do primeiro impacto, em março 2020, com base no que estava a acontecer noutros países, foi parte importante do sucesso de Portugal com o primeiro embate da transmissão do vírus. Por isso, ter-se sentido a necessidade de começar a falar nesta preparação é um passo importante para que se consiga passar melhor pelos períodos mais críticos (que ainda não vão ser a tempo de ter uma vacina). E fazer esta preparação sem alarmismo, com preocupação atenta (uma expressão que já usamos aqui no gabinete de crise no passado).

Gabinete de crise na rádio observador – semana terminada a 17 de julho

Número da semana: 76% – proporção de pessoas que num inquérito em 6 países europeus no início de Junho declarou confiar na OMS, valor que era 81% dois meses antes, nas primeiras semanas de Abril de 2020.

A confiança nos governos nacionais caiu de 81% para 75%, e curiosamente a confiança na União Europeia manteve-se nos 62% (e foi sempre mais baixa)z<<<. E foi um movimento comum a todos os países europeus. Uma certa quebra de confiança nas instituições, para a qual se tem que procurar alguma forma de retomar, uma vez que iremos continuar a precisar de liderança reconhecida como credível durante ainda meses. 

São efeitos ainda pequenos e seria bom que não se confirmasse esta tendência.

A evolução desta semana teve uma melhoria face à semana passada – baixou o número médio de casos diários quer em Lisboa quer no resto do país. A revisão dos valores que houve significa também que tinha piorado mais antes do que estava refletido nos valores, mas em termos de média semanal de casos diários, essa correção não altera o sentimento geral de uma “rampazinha” com inclinação positiva, pequena mas que tem estado persistente desde o inicio do processo de desconfinamento. Também os valores referentes aos internamentos e óbitos traduziram uma melhor semana. A tendência de alguma estabilização é partilhada por Itália e França, mas em Espanha houve um certo reacender de casos. 

O período que se aproxima, de férias para a maioria da população e até de algum turismo, trará os seus riscos, que teremos de manter controlados, como tem sido feito até aqui. 

Tem havido um notável espírito de cooperação na utilização das praias, no que era certamente uma preocupação não expressa das autoridades de saúde – não só apenas pelo risco de contágio (que se espera à partida ser pequeno – ar livre, vento, prática do distanciamento físico) mas talvez sobretudo pelo potencial de tensão social que pudesse criar. Não houve notícias de surtos centrados em praia. A gestão das idas à praia é um exemplo da utilização do sistema de semáforos, com apoio em meios eletrónicos (uma app) para passar a informação quase em tempo real.

Mito: as máscaras usadas em condições normais reduzem a capacidade de respirar e receber oxigénio? Não! Têm existido vários exemplos de “fake news” a dizerem que a utilização das máscaras pode criar problemas de saúde por cortar o oxigénio. É preciso ter a noção de que tal não é verdade, e que deve sempre procurar fontes de informação sérias quando há notícias “exageradas” seja no sentido positivo seja no sentido negativo. 

Esperança da semana: voltou-se a falar de vacinas na semana que passou, com os bons resultados de uma das vacinas que está a ser desenvolvida nos Estados Unidos. Por enquanto, a vacina foi apenas testada em 45 pessoas, dos 18 aos 55 anos, divididos em três grupos com doses diferentes. Tiveram alguns efeitos adversos mas criaram resposta de imunidade em todos os participantes. E os efeitos adversos não foram suficientemente fortes para interromper o ensaio.Não será ainda a tempo deste Inverno. Mas são progressos importantes. Há sempre o risco de mais tarde não se confirmarem estes bons resultados, mas felizmente por enquanto tem havido boas notícias.

Gabinete de crise na rádio observador – semana terminada em 10 de julho

Número da semana: 46% – percentagem de portugueses que desaprova a abertura de fronteiras (responderam no período 9 a 19 de junho, inquérito europeu da Nova SBE, em conjunto com a Universidade de Hamburgo, a Universidade Erasmus de Roterdão e Universidade Bocconi de Milão). Menos favoráveis, só os ingleses, com 47% a serem contra a abertura de fronteiras. Os mais favoráveis são os italianos, com 47% a favor de abrir, e 22% indiferentes, logo seguidos dos alemães e holandeses. A polarização em cada país é também muito diferente – as opiniões muito fortes a favor ou contra a abertura têm valores substancialmente distintos. Fortemente contra, o Reino Unido lidera com 21% das pessoas a dizer, logo seguido da França com 15%, em Portugal apenas 9%, e a Itália é onde há menos oposição forte (8%). Na aprovação forte, 13% na Alemanha, 9% no Reino Unido, França e Itália, 5% em Portugal, o país onde há menos apoio forte. Significa que a abertura de fronteiras, no espaço da União Europeia, está longe de ser um assunto pacífico. E que se economicamente levantou alguma discussão por causa do turismo, não é claro que a população portuguesa esteja assim tão fortemente apoiante dessa abertura: 35% contra, 46% a favor, 18% indiferentes. 

Mito da semana: Portugal hoje em dia é um destino turístico perigoso para os outros europeus. É falso, como argumenta com números o trabalho de Vasco Peixoto e Alexandre Abrantes, porque embora globalmente haja um número de casos novos por 100,000 habitantes mais elevado do que noutros países, a comparação direta só deste valor não traduz o risco efetivo de contágio para quem se desloque sobretudo no circuito turístico. As zonas com surtos e com medidas de restrição adicionais estão fora dos roteiros de turismo do sul do país e da Madeira e dão mais segurança que muitas zonas dos países de origem dos principais fluxos de turistas, nomeadamente os ingleses.

Esperança da semana: a informação, transmitida no que pode ter sido a última reunião no Infarmed, de que apesar do aumento global de casos, a situação nas zonas mais complicadas à volta de Lisboa, e que tiveram maiores restrições nas duas últimas semanas, estará a melhorar. Ainda não encontramos essa melhoria nos números globais, mas fica a esperança de que a informação destes peritos corresponda realmente a uma melhoria, com redução de casos de contágio.


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webinar da Ordem dos Médicos – vivendo com o coronavirus (45)

A semana passada, sexta-feira 17 de julho, participei no 𝗪𝗲𝗯𝗶𝗻𝗮𝗿 “Economia da Saúde: Oportunidades e Desafios numa Nova Era, a convite da Ordem dos Médicos. Foi uma boa troca de impressões, com Adalberto Campos Fernandos, Carlos Cortes e Miguel Guimarães (a sessão pode ser vista no link acima).

Não houve oportunidade de responder a muitas das perguntas e dos comentários durante a sessão, pelo que irei tratar aqui alguns deles, com base nas notas tomadas durante a sessão, sem nenhuma ordem especial.

1- Será que os profissionais de saúde estarão disponíveis para eventuais novos sacrifícios numa segunda vaga de infeção? 

Não é fácil adivinhar o que sucederá, embora sempre que houve necessidade de apelar ao sentido de missão dos profissionais de saúde em situações excepcionais, a resposta foi positiva. Assim, a presunção é que sim, que estarão disponíveis.

2- Copiando diretamente do chat, “Saúde a quanto obrigas?: mais dinheiro? [sim, mas sem saber atribuído cegamente], mais competência técnica de gestão? [sim, definitivamente uma área a melhorar]  mais inovação transversal? [sim, mas não é a primeira prioridade]  mais aprendizagem learning by doing?  [sim, associada a mecanismos de aprendizagem cruzada dentro do SNS] Mais adaptação (digital based)?  [sim, melhor aproveitamento das oportunidades digitais] Ou sobretudo mais Profissionais de Saúde a gerir a complexidade da situação values patient oriented? [não vejo que o mero aumento do número de profissionais de saúde, sem alteração dos outros elementos atrás referidos, fosse suficiente]

3O PPBarros é neste caso o paciente? Ou um mero utente SNS em ambiente economicopandemico? [utente SNS]

4- Ainda se justifica a tradicional abordagem de separação entre: Primary Care/Secondary Care

Tertiary Care? 

sim, ainda se justifica, quanto mais não seja porque seguem mecanismos de pagamento (financiamento das organizações) suficientemente diferentes. Mas o que a pergunta pressupõe é se esta é uma distinção que se manterá relevante no futuro. A minha resposta é provavelmente sim, manter-se-ão como entidades distintas, sem prejuízo da necessidade de assegurar a continuidade de cuidados prestados. Também será de esperar que cada organização tenha evoluções onde as fronteiras associadas a esta classificação se esbatem (basta pensar que os cuidados de saúde primários venham a ter alguns meios de diagnóstico e que a hospitalização domiciliária se expanda, para que haja alguma convergência nas margens da atividade de cada nível de cuidados).

5- como devemos auditar as gestões hospitalares?

É possível criar mecanismos de avaliação da gestão hospitalar, incluindo com uma componente quantitativa da qualidade de gestão. Esse trabalho foi iniciado noutros países. Também pode ser realizado em Portugal se houver disponibilidade das entidades para o efeito. Até agora, apesar de um par de tentativas nesse sentido, não houve abertura ou interesse em fazer essa avaliação. Mas acabará por ser feito um dia. (para ver um exemplo dessa avaliação internacional, é procurar os trabalhos de Carol Propper)

6- É verdade que os médicos não gostam de deixar o SNS, mas infelizmente a desorganização, a má gestão e pouca otimização dos recursos desmotiva os médicos e outros profissionais de saúde que se cansam pela exaustão. e por vezes acabam por serem mobilizados para o privado. Como devemos resolver este grave problema… de que forma devemos manter o NOSSO SNS saudável com o melhores profissionais?

É necessário uma nova política interna do SNS para lidar com os profissionais de saúde. A lógica de “command & control”, de muito valor dado à hierarquia, tem que se alterar, para encontrar espaço e flexibilidade para que diferentes caminhos profissionais possam ser experimentados. A recompensa do mérito, e a procura de soluções para o menor desempenho, têm que ser procuradas de forma ativa. A gestão tem que ser verdadeiramente gestão de longo prazo das competências e anseios dos profissionais de saúde (e nem tudo se resume a maior remuneração).

7- Para os profissionais de saúde esta resposta significou um grande esforço até por necessidade de conciliação entre o trabalho e cuidado permanente aos filhos–não será de aproveitar para repensar vínculos, flexibilização de horários etc?

Ver a resposta à questão 6.

8- Como desenvolver nos Sistemas Nacionais de Saúde (pós pandemia), uma “nova onda” de “Complex Transformation” englobando:

clinical and information technology,  managerial and leadership skills,  ensure the optimal delivery of healthcare? Sem effective management, a coordenação em healthcare não é possível…

Não tenho uma resposta clara. Mas certamente há que aproveitar este momento de experiência e de desequilíbrio para melhorar a gestão no SNS.

9- A semana de 4 dias, será que corresponde às necessidades?

Não sei. Depende da produtividade em 4 dias versus em 5 dias, havendo, ou não, emprego adicional para compensar a redução dos 5 para os 4 dias. É pelo menos uma ideia que vale a pena explorar de forma controlada em algumas atividades, para se aprender como a sociedade se ajusta.

10- E as listas de espera dos doentes oncológicos cirúrgicos? Não deveríamos dar prioridade ao tratamento cirúrgico destes doentes, em vez de tratar tantos doentes benignos? Se temos tantos doentes à espera, porque não optimizamos os recursos físicos e humanos que temos (relembro a problema do hospital dos Covões – CHUC que está subaproveitado!)? Não nos esqueçamos que tem morrido muito gente devido à pandemia, mas não por COVID-19… Não deveria haver mais transparência periódica (e de fácil acessibilidade) de todos estes outcomes e da gestão das instituições de saude (3/3 M ou 6/6 M)? A autonomia qb é necessária, mas tem de ser auditada.

Há aqui diferentes aspectos a considerar. Desde logo, a questão de qual o “custo de oportunidade” das decisões atuais – o que se deixa de fazer e onde, que implicações tem utilizar recursos num lado e não noutro. Vão ter que ser feitas escolhas, inevitavelmente, e que terão custos em termos do que se deixa de alcançar em termos de saúde da população.

11- Obrigado pelo debate. Como aproveitar as sinergias entre os setores público, privado e social para recuperar as listas de espera, com transparência?

A resposta de um economista é: contratos bem especificados, de acordo com as necessidades sentidas, e a que possam concorrer todos em condições de igualdade. Esta resposta “choca” com a visão de que o recurso ao sector social pode ser aceitável (sector social = sector privado sem fins lucrativos explicitados), mas recorrer ao sector privado (com fins lucrativos) é “destruir o SNS”. Mas se pusermos os interesses dos doentes em primeiro lugar e se for procurar os melhores mecanismos para alcançar objetivos assistenciais, deverá ser quase inevitável o recurso ao sector privado (com e sem fins lucrativos). 

12- A investigação é crucial…. e a boa investigação é importante para a nossa economia! Mas infelizmente, esta não é uma prioridade para os nossos gestores. Como deveremos contornar este problemo?

Criar mecanismos que permitam aos gestores recolher ganhos da investigação que apoiam ou promovam.

13- As queixas dos doentes em relação à dificuldade de desconfinamento dos médicos de família tem alguma razão de ser?

Não sei a resposta. 

14- O Dr. Cortes tem razão em aludir à ineficácia dos serviços informáticos. Terá uma ideia das causas que o afetam?

Não tenho uma lista completa. Mas à cabeça coloco: internamente, frequentemente os programas não têm suficientemente contributo/teste/experiência de quem os usa; externamente, a interoperabilidade entre sistemas de informação não é suficientemente cuidada. 

15- A “integração de cuidados”, enquanto expressão, está tão esvaziada como “o superior interesse da criança” – neste momento significa zero e, do meu ponto de vista, terá forçosamente substituída pela “continuidade de cuidados”


Totalmente de acordo.

16- Quando fala na integração dos serviços sabe que para  que funcione é preciso dispor de serviços informáticos capazes. Não o referiu. Porquê?

Porque não me lembrei. É certamente uma condição necessária para que possa funcionar. 

17- Numa primeira fase de resposta houve pouca solidariedade entre os diferentes  hospitais, como melhorar o comportamento de rede para o futuro?

Partilha imediata das experiências de cada um, para que se possa conhecer o que andam a fazer. Ou se for pretendido dar um sinal agora, muito claro, dar uma “recompensa” a quem teve melhor comportamento de rede, criar a sensação de que vale a pena ter cooperação na rede do SNS. Com visibilidade interna e externa dessa “recompensa”. Para definir o que deve ser essa recompensa, a minha sugestão é falar com os hospitais que melhor comportamento de rede tiveram e perguntar-lhes o que valorizam receber como “recompensa”. 

18- Sou médico no CHUC. hospital  que se encontra num processo turbulento da sua identidade” gostaria de que me explicassem  se é possível nessa altura encerrar serviços essenciais num dos polos sem um ” arranjo satisfatório para os receber no outro polo? Nessa fase da pandemia acham que é sensato fazer isso nessa altura ?

A minha impressão é que as relações dentro do CHUC já têm estas tensões de “pólos” há algum tempo. Honestamente, sem uma análise detalhada da situação concreta, não consigo ter opinião formada. Certo é que dada a proximidade entre pólos, ou o mais pequeno assume uma vocação sobretudo local, ou não faz sentido ser um “gémeo” (e será preferível que até desapareça se todas as necessidades puderem ser satisfeitas no ponto central, sem necessidade real de pólos). Se a visão for de ter serviços sobretudo de proximidade, então deveria ser pensada a independência do pólo (pensar centralmente quando a intervenção é eminentemente local, mesmo que ao nível da região, normalmente significa não recolher as vantagens de conhecimento associadas à proximidade para uma melhor intervenção junto da população). Numa versão mais sintética, e com apelo histórico, “independência ou morte”.

19- Houve muito trabalho que foi feito localmente nos hospitais, com pouca coordenação nacional, ao nível de montagem dos circuitos dos doentes, auditoria aos planos de contingência activados etc. A quem cabia este trabalho?

Não vejo mal que os hospitais se juntem e decidam como fazer essa coordenação nas suas zonas geográficas relevantes. A necessidade de reação rápida não é compatível a meu ver, com a criação de grupos de trabalho que façam propostas de montagem de circuitos dos doentes, que depois terá de ter um outro grupo de trabalho para implementação. Aqui, é confiar que a autonomia de gestão pode funcionar mais rapidamente e melhor que qualquer mecanismo centralizado.

Para a auditoria, deverá ser feita por entidade central do Ministério da Saúde. 

20- E programas de qualidade com capacitação dos profissionais?

Sem dúvida. Apenas em aberto se devem ser preparados diretamente pelo Ministério da Saúde (centralmente) ou por cada organização. Provavelmente uma situação mista. Alguns elementos dos programas de qualidade deverão ser transversais e comuns a todos, e preparação central faz sentido; noutros casos, pode haver necessidade de capacitação específica à atividade local da organização (populações especiais, problemas de saúde com maior expressão, etc.). Faz parte da boa gestão (que falta) e é parte integrante do que noutra resposta designei com “lidar com os profissionais de saúde”. 

21- Boa noite e um cumprimento amigo a todos.  Gostei de vos ouvir, mas deixem-me que lance aqui um pouco de confusão (e cinismo). O nosso SNS comportou-se muito bem nesta situação, mas porque tivemos a sorte de que a pandemia não nos atingiu com a intensidade que atingiu outros países (Espanha, Itália, RU, p.e) De fato, nós estivemos sempre muito longe de atingir a saturação em ocupação de camas e a grande maioria dos profissionais de facto esteve “de férias”, porque tudo o resto parou. E agora vamos pagar caro por isso. As listas de espera nunca mais vão ser recuperadas e já é notícia hoje que muita gente está a morrer por falta de cuidados noutras áreas patológicas, quer porque os serviços estiveram parados, quer porque os doentes não os procuraram. E nem quero pensar no caos que eventualmente irá surgir daqui a uns meses se houver nova vaga pandémica…

Este é um “bom problema” por assim dizer, visto à posteriori. Com a informação disponível no inicio de março, não ter parado parte da atividade normal, e ter ido atrás, de forma ativa, dos doentes que preferiram afastar-se, poderia ter resultado muito mal se tivesse ocorrido sobrecarga do SNS. A boa situação conseguida não é independente de se ter tido menor carga de outros doentes. Agora, hoje, com mais informação é possível planear de forma diferente e fazer um balanço diferente. Calculo que se a atividade normal não tivesse tido  um travão e tivéssemos tido um SNS a “rebentar” e com infeção COVID-19 generalizada nos hospitais, e a contagiar doentes com outras patologias, provavelmente estaríamos hoje a lamentar não ter parado parte da atividade normal. Ou seja, na verdade não sabemos o que é o contrafactual das decisões tomadas. Dito isto, concordo que no momento atual, há que dar atenção à recuperação da atividade normal, enquanto se mantém alerta sobre a evolução da pandemia. E tempos novos podem pedir soluções novas. 

22- Dado o actual cenário que nos fala em mudança, não deveríamos pensar num comportamento organizacional diferente? Mais custo-efectivo e sem ser focado em consultas 1:1 e só numa classe mas, privilegiar outras intervenções como grupos ou a integração vertical de cuidados com os cuidados de saúde primários, isto na vertente da maximização das estruturas existentes? 

Nas atuais condições, é de aproveitar para não só pensar como testar modelos organizacionais distintos, com mudanças até de cultura organizacional que alguns modelos possam induzir. O testar de novos modelos organizacionais deverá ser feita rapidamente, para aproveitar a disponibilidade mental atual para o fazer, fazer em pequena escala, avaliar imediatamente e espalhar caso sejam bem sucedidos (e fechar caso não apresentem vantagem). O único reparo é a integração vertical de cuidados – nem sempre a complexidade acrescida dessa integração vertical em termos funcionais é compensada pelos ganhos, ou é melhor que formas alternativas de alcançar o mesmo resultado de integração vertical por outros mecanismos (contratos e preços nas relações verticais são, em determinadas condições, uma alternativa à integração funcional). 

23- Ao mesmo tempo, vocacionar os serviços para entreajuda de profissionais (situações de burnout) contemplar na organização hospitalar de grupos de intervenção (Balint)?

De acordo. Nada a acrescentar.

24- Lamento que nunca se refira a prática médica privada,  que teve de parar durante a pandemia, passando os médicos a dedicar-se exclusivamente ao SNS, com toda a dedicação. E que agora retomam o seu compromisso com os seus doentes, com quem tinham responsabilidades. Faz parecer que a medicina privada não conta, do ponto de vista clínico, científico, de qualidade. Tem o mesmo valor. Paga impostos. Enfim, a Ordem dos Médicos é de todos os médicos. E quem está  nos dois lados contribui duplamente, ao contrário do que muitos pretendem difundir.

O debate centrou-se no SNS, porque foi o ponto central de resposta à COVID-19. No caso do sector privado, teve vários pontos de choque: nos profissionais de saúde (que tiveram que virar todas as suas atenções para o SNS), nos doentes (que reduziram a sua procura), numa preparação para eventualmente suplementar o SNS se fosse necessário (não foi, e alguma tensão que começou a existir dissipou-se). Também interpreto o “recato comunicacional” do sector privado e do seu papel como uma forma de não criar “ruído” desnecessário na resposta à pandemia.

25- Sou médico tenho falado com muitos colegas de vários hospitais . Quase todos estão desiludidos com a gestão no hospital onde trabalham situação que vem muito antes da pandemia e que se agravaram agora.

Esse é problema de décadas. Lembro-me de em 2012, no primeiro ano da troika, se ter feito uma auscultação  nos serviços de saúde e ter-se encontrado a mesma reação – desilusão com a gestão em tempos de crise, que agrava o sentimento que vinha de trás. A qualidade da gestão no SNS, a vários níveis, necessita, há muitos anos, de um impulso positivo. 

26-  De que forma (ponto de vista económico e impacto no investimento da saúde) podemos esperar algum cenário desfavorável e como preparamos para as recentes mudanças nas estruturas políticas europeias, por exemplo no Eurogrupo.

A União Europeia tem planeado dar uma atenção maior à área da saúde em geral, no plano de recuperação económica que está a ser montado. De momento, tudo aponta para termos um cenário mais favorável, em termos de investimento, do que estava previsto antes da pandemia.

27- Como podemos incentivar as gerações mais jovens de médicos para ter uma atitude mais participativa na governação dentro da saúde. 

Dando-lhes voz. Dando-lhes “trabalho” para fazer – pensar propostas, fazer a sua aplicação e fazer a sua avaliação. 

28- Que alterações no actual modelo de RRHH dentro da saúde podem influenciar uma melhor racionalização dos recursos económicos no futuro

Introduzir dois elementos: a) planeamento do percurso profissional com visão de longo prazo, adoptado a cada par médico – local (por exemplo, para quem for para unidades do SNS no interior, dar a possibilidade ao fim de 6 anos de ter um ano “sabático” numa instituição de saúde à sua escolha no espaço europeu); b) para as situações de menor desempenho, encontrar soluções alternativas de funções e/ou locais de exercício de funções, em vez de complacentemente deixar arrastar situações negativas. 

29- De que forma a Ordem poderá servir de ponte entre os médicos mais jovens que querem ter uma atitude mais participativa formando parte das soluções e propostas a medio e longo prazo?

Ver resposta à pergunta 27. 

30- O que é que o Dr Pita Barros nos poderá dizer sobre fusão de grandes hospitais como o que aconteceu em Coimbra sob ponto de vista custo beneficio?

Não posso dizer muito. As poucas avaliações realizadas que conheço indicam os centros hospitalares não geraram poupanças, e até levaram a aumentos de custos (deseconomias de escala). Um exemplo de estudo é: cost effects of hospital mergers in Portugal 

31- Relativamente ao financiamento, como é que a tutela (o Governo, nomeadamente o ministério das finanças) encara o encaminhamento de determinados impostos ou taxas directamente para o orçamento do Ministério da saúde? Exemplos. os impostos que incidem sobre o tabaco, bebidas espirituosas. certos alimentos menos saudáveis etc…

Essa é uma pergunta que tem que ser feita ao Governo. De qualquer forma, esses impostos se cumprirem o seu papel de alterar comportamentos nunca terão grande receita (porque precisamente pretendem reduzir as decisões que são penalizadas pelos impostos). Por isso, não será adequado que sejam encarados como fonte importante de financiamento das despesas públicas em saúde. 

32- Gostava de saber como vai ser possível o SNS responder ao grande a um possível aumento de doentes no SNS com as dificuldades sócio-económicas estão previstas e, consequentemente, a restrição orçamental familiar para recorrer à saúde privada.

Terá que responder, mas tenha-se em atenção que também alguns cuidados com pouco valor gerado, em termos de saúde, podem ser evitados e abrir espaço para outros cuidados com maior valor.

33- Sou médico interno da formação geral e concordo com a generalidade do que foi dito. Acrescentaria apenas que um dos aspetos que muitas vezes é esquecido é a literacia da população, não só para a saúde, como para a vertente política e económica. A meu ver, parte da solução para revitalização do SNS passaria por colaboração com o Ministério da Educação no sentido de reformar planos curriculares. Os nossos alunos são expostos a programas educativos desastrosamente desatualizados, excessivamente teóricos e desconectados dos reais problemas civis. Uma população iletrada na saúde é uma população que toma más decisões, que nos custam a todos.

A literacia em saúde é importante, mas não é a resposta “mágica” para tudo. Ainda assim, é certo que a educação para a saúde deverá ter uma revisão. 


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O fim das sessões no Infarmed – vivendo com o coronavirus (44)

Há cerca de duas semanas e meia, depois do relato público de alguma tensão no que ficou conhecido como sendo “as reuniões no Infarmed”, era previsível que estas terminassem.

A surpresa foi a rapidez com que tal sucedeu. Conhecendo estas reuniões apenas das declarações públicas que eram realizadas depois de cada uma delas, feitas por vários dos participantes, encontrava dois propósitos centrais para a sua existência.

Um propósito que reconheci nessas reuniões foi a transmissão de informação técnica sobre a evolução da pandemia aos partidos com assento parlamentar. O segundo propósito era a discussão com a equipa técnica que preparava essas reuniões. Para que o primeiro objectivo não fosse tido como mera acção de propaganda do governo, e como tal colocado na arena da luta política, era necessário que o próprio poder político, no caso representado pelos membros do governo e em certa medida pelo Presidente da República, estivessem na reunião também a ganhar conhecimento e eventualmente a colocar questões. Neste contexto, os dois propósitos que descrevi eram atingidos com uma única reunião. E permitia também um sinal politico para a população de união global de esforços. 

Manter esta situação é relativamente simples quando a informação transmitida é nova para todos e quanto as opções para a decisão política não são muitas, nem é fácil explicitar alternativas credíveis de atuação. 

Contudo, a partir de algum tempo, a novidade técnica das reuniões esvai-se de alguma forma, começa-se a ter que tomar decisões mais complexas no campo da política de saúde, como as decisões referentes à reabertura de atividades económicas e suas regras, lidar com a imposição de ritmos diferentes de aumento de mobilidade da população por zonas consoante os riscos de contágio, gerir opiniões dentro e fora das reuniões no Infarmed, etc.

A própria disponibilidade para uma “harmonia política” de resposta à pandemia vai-se diluindo. Instala-se no campo político o que decidi chamar de “fadiga política”. Ao fim destes meses, não é só a população em geral que tem algum cansaço mental com o processo de limitação de contágio. Também no campo político, a vontade do governo em mostrar que “tudo está a melhorar” choca com parte da realidade – no caso, o não se ter conseguido evitar uma tendência positiva de novas infeções, tendência pequena e ainda gerível no contexto do Serviço Nacional de Saúde, mas que tem estado presente.

Como esta evolução recente, no último mês e meio, resulta sobretudo do comportamento da população, e é dificilmente antecipável pelo governo, por qualquer governo, onde e como se poderá observar novos surtos de contágio, os caminhos de decisão política são bem mais incertos do que nos primeiros dias da pandemia. E como nesta fase a evolução dos comportamentos sociais pode facilmente fugir às “regras” que os modelos de previsão estatística estabelecem, a análise técnica não consegue ultrapassar essa incerteza. Quando uma epidemia está descontrolada, torna-se mais fácil encontrar previsões técnicas do que quando nos encontramos num contexto de surtos que são imprevisíveis quanto ao seu momento, dimensão e duração.

Esta incerteza técnica só aumenta a “fadiga política” do lado do governo.

Simultaneamente, do lado dos partidos da oposição, a passagem do tempo vai adicionando pressão a que mostrem em que domínios diferem do governo, escrutinando a ação deste e propondo alternativas. A “fadiga política” atinge também a oposição, e leva à procura da afirmação pela diferenciação.

Neste contexto, as reuniões no Infarmed, onde o governo coloque dúvidas e perguntas aos especialistas presentes, irão ser uma tentação crescente para passarem a ser parte da normal discussão política. Não se chegou a esse ponto, tanto quanto me apercebi, mas é uma previsão não muito difícil de fazer para o que teria sucedido caso as reuniões tivessem continuado nos mesmos moldes.

Como os dois objectivos que referi não desapareceram, o fim das reuniões no Infarmed significa que terão de ser encontrados outros processos, outros mecanismos, para serem atingidos esses objectivos. E será complicado fazê-lo.

As reuniões no Infarmed não tinham como objectivo o diálogo político entre o governo e os partidos da oposição. Logo, para o primeiro objectivo, de comunicação de informação sobre a evolução da pandemia aos partidos com assento parlamentar, não é difícil criar um sistema de comunicação que faça chegar essa informação, de modo a que seja recebida no mesmo momento e formato do que sucederia com a manutenção das reuniões no Infarmed. Poderá, e talvez deva, ser adicionada a possibilidade de os partidos políticos colocarem, por via digital (por exemplo gerida pela Assembleia da República), questões técnicas de clarificação a serem respondidas pelo grupo de investigadores e técnicas que preparou a informação. São obviamente necessárias algumas regras e disponibilidade das partes para que essa ligação seja útil mas não é certamente difícil estabelecer um modelo de comunicação que até seja mais clarificador do que o modelo apresentação-pergunta-resposta-declaração à saída da reunião. Veremos se o “mundo político” consegue ter também a sua transformação digital nesta componente de transmissão de informação.

O segundo objectivo, garantir uma interação regular entre o apoio técnico e o decisor político, é também fácil de assegurar por outros mecanismos, assim o governo os crie e utilize. Aliás, no atual contexto de maior incerteza sobre o que possa ser a melhor política a seguir em função da última informação disponível, creio que haverá vantagens em ter formas múltiplas de ouvir opiniões. Do grupo técnico a que o governo tem recorrido, mas também fora dele, para evitar um efeito de “bolha de opinião”. E face ao que tem sido publicamente expresso por vários médicos de saúde pública, parece que até faz sentido que o topo da hierarquia do ministério da saúde possa falar e ouvir diretamente quem está a fazer os contatos e o seguimento das cadeias de transmissão de contágio. Frequentemente as cadeias de transmissão de informação entre níveis hierárquicos perdem informação relevante (as hierarquias são menos eficazes que o vírus em estabelecer cadeias de transmissão). Há modos mais ou menos informais que podem ser usados para obter esse conhecimento direto, que de qualquer forma dificilmente surgiria numa reunião no Infarmed. 

Em conclusão, não há que ficar com saudades das reuniões no Infarmed. Tiveram o seu tempo e a sua função. Foram certamente muito úteis para todos os que nelas participaram, em condições que as justificaram. 

É agora tempo de outro tipo de interação entre políticos e técnicos. 


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Fadiga política

Na semana passada, no Gabinete de Crise da Rádio Observador, falamos da componente de gestão política, a propósito de uma reunião no Infarmed um pouco mais tens, e falamos em “fadiga política”. De uma semana para a outra, transformou-se em “implosão política” das reuniões do Infarmed.

Deixo aqui as minhas notas do Gabinete de Crise da semana passada, sendo que o próximo é já amanhã.

Número da semana: 19 freguesias da zona de Lisboa, que estão com tratamento diferenciado em termos de regime. É a dança do vírus em ação. Iremos provavelmente andar a fechar e a abrir zonas que experimentem surtos localizados, sobretudo quando não se consigam isolar logo as cadeias de transmissão. Desta vez está a ser na zona metropolitana de Lisboa. No futuro poderá ser em zonas de turismo, por exemplo. Até ter uma vacina será provável que se vá tendo esta dança de fechar e abrir em várias zonas. 

Em termos de evolução da situação, depois de duas semanas de alguma melhoria no número de novos casos, voltou-se a ter um certo crescimento em Lisboa (de 256 novos casos diários em média há duas semanas para 270 esta semana). Globalmente também o número de internados subiu na última semana. Por isso, as preocupações com a situação são justificadas, embora não seja ainda uma situação de alarme.

Ganhou destaque esta semana a componente política. Começou com o reporte de alguma tensão na reunião do Infarmed. A necessidade de certezas para a decisão política é difícil de obter com a atual informação – o “respirar” da sociedade não segue uma mecânica que seja fácil de modelizar de forma matemática com todo o rigor. E da mesma forma que assistimos a uma fadiga da população com o confinamento em geral, e uma fadiga dos mais jovens com a falta de socialização, é natural que possa haver uma “fadiga política” – a necessidade de ter boas novidades para apresentar não é necessariamente compatível com uma “maratona” de resposta ao vírus – que será tanto mais maratona quanto mais bem sucedida for sendo essa resposta. Não é só cá em Portugal que temos essa “fadiga política” – na Nova Zelândia conseguiram ter vários dias sem novos casos de COVID-19, para voltarem a casos importados de nacionais que regressaram ao país, e que criaram, para números baixos, um desânimo também visível nas autoridades de saúde. É aliás uma pergunta para a qual gostaria de resposta – será que se pode falar da COVID-19 também como um teste à paciência da classe política?

Aliás, parece aplicável de forma geral um anúncio da Câmara Municipal de Lisboa, Farto do Vírus? Cuidado, ele ainda não se fartou de si. Sinal de oficialmente se reconhece o cansaço das pessoas com o vírus, mas também a fadiga política, em que a CML se substitui a um anúncio da DGS, mais genérico sobre os conselhos de proteção.

Numa perspetiva mais geral, o incidir a pressão política apenas sobre o Ministério da Saúde não é correto, nem justo, a meu ver. Os desafios de desconfinamento envolvem questões de mobilidade das pessoas, que não são algo que caiba ao ministério da saúde tratar, envolvem questões sociais e de trabalho, que também não são do ministério da saúde, envolvem questões de condições de habitação para se poder ter isolamento, que mais uma vez não são do ministério da saúde. Se é certo que na resposta de acompanhamento de casos o ministério da saúde poderia e deveria fazer melhor, a crer em declarações do presidente da associação portuguesa dos médicos de saúde pública, Ricardo Mexia, em termos políticos colocar apenas o ministério da saúde no centro das atenções parece-me exagerado. De qualquer modo, estas tensões são normais em democracia.

Média de novos casos diários por semana (semana “Gabinete de crise”, de 6ª a 5ª seguinte)

 Lisboa e Vale do TejoResto do PaísTotal nacional
8 a 14 de maio118110229
15 a 21 de maio15868227
22 a 28 de maio20634240
29 maio a 4 junho25925285
5 de junho a 11 de junho28942331
12 de junho a 18 de junho25852311
19 de junho a 25 de junho25675332
26 de junho a 2 de julho27068338

Nota: valores arredondados à unidade

Média de valores diários por semana (semana “Gabinete de crise”, de 6ª a 5ª seguinte)

 ÓbitosInternadosInternados em UCI
8 a 14 de maio11762113
15 a 21 de maio13636103
22 a 28 de maio1353275
29 maio a 4 junho1247061
5 de junho a 11 de junho740361
12 de junho a 18 de junho342771
19 de junho a 25 de junho442770
26 de junho a 2 de julho547873

Nota: valores arredondados à unidade

Mito da semana: devemos andar de máscara mesmo quando fazemos exercício físico? Não. 

Este é um dos poucos casos em que não é recomendado. Deve-se em geral andar de máscara em locais públicos e fechados, e sempre que não for possível assegurar a distância física recomendada de dois metros. Mas quando se faz exercício, as máscaras diminuem a capacidade de respirar de forma normal e confortável. Também leva a que as máscaras favoreçam o crescimento de micro-organismos nocivos. Por isso, a atividade física em locais fechados tem que ser bem planeada. O melhor mesmo é fazer exercício físico ao ar livre, ou em locais arejados, com distância física adequada para com o resto das pessoas, mesmo que seja num contexto de exercício coletivo ou individual. Esperança da semana: baseado apenas em observação de fotos de jornais e reportagens televisivas, a sensação da população estar a retomar a normalidade possível das suas vidas, com atenção e proteção em geral. Encorajador a ministra da saúde ter dito que não encontraram ainda cadeias de transmissão nos transportes públicos – resultado certamente dos cuidados que todos andam a ter. Não é impossível que tenha havido algum caso que tenha passado sem ser detetado, mas a ter sucedido não foi uma situação generalizada. É um passo importante para continuarmos a aprender a viver com a COVID-19 e o seu coronavírus, pelo menos até termos uma vacina.


2 comentários

para-nacionalização da TAP

Depois de alguma animação, foi finalmente anunciada a decisão sobre o futuro acionista da TAP. Acabou por não ser uma nacionalização, e sim algo próximo da para-nacionalização. Pelo que consegue entender dos objectivos do Governo com esta decisão, pretende-se que o Estado seja acionista público majoritário com gestão privada (anunciada como a equipa de gestão sendo contratada no mercado internacional).

Aqui, a questão central é o que constitui o interesse público, quanto é que ele vale, e se não existe forma menos onerosa de alcançar esse mesmo objectivo de interesse público.

O grande argumento apresentado é que a TAP é demasiado grande para entrar em falência. Sugere-se que no seu desaparecimento imediato não haveria outras companhias de aviação que assegurassem as rotas que a TAP faz hoje, ou que mesmo que houvesse essa substituição, não seria feita com trabalhadores portugueses, e que qualquer outra companhia não adquiriria serviços e produtos a empresas portuguesas. Não vejo porque tenha de ser assim.

A importância da TAP como exportadora – não interessa tanto o volume de vendas que faz e sim os resultados que obtém, e esses não estavam a ser positivos. Ou seja, a TAP presta serviços considerados exportação, mas gasta mais a produzir esses serviços do que as receitas que obtém.

A importância da TAP como empregadora – fechar a TAP e colocar os seus ativos, físicos e contratos com trabalhadores, disponíveis no mercado para outra empresa adquirir não era possível porquê? Implicaria perdas para os seus acionistas, mas esse é o risco empresarial. O problema seria a TAP ser adquirida por alguma empresa que lhe mudasse o nome depois (como a Altice fez com a PT)? Houve realmente alguma quantificação do que seria esta situação alternativa? (não significa que seja necessariamente melhor, mas nem parece que tenha sido analisada). No passado, houve companhias de aviação que fecharam num dia com um nome e nasceram logo no dia seguinte outras companhias com os mesmos ativos e outro nome.

A importância da TAP como compradora de serviços em Portugal – se houver uma companhia de aviação que tome o lugar da TAP, ou uma empresa que adquira a TAP, porque não manteria a aquisição desses serviços? (se não for vantajoso manter, então a TAP está a ser ineficiente na sua gestão, ou uma nova empresa estaria disposta a ser ineficiente apenas para comprar noutro lado, ou ambas – será que é isso que sucede?).

Por fim, o papel das “imposições de Bruxelas” – regressar às queixas sobre ao “não nos deixam”, esquecendo a referência a porque não deixam numa lógica de longo prazo, não é bom – as regras europeias, nomeadamente as de defesa da concorrência, nestes casos tendem a ser mais favoráveis aos pequenos países, numa estratégia de longo prazo, do que aos grandes países. Se o governo alemão (ou o governo francês, ou o governo espanhol, ou o governo italiano) não tivesse qualquer limitação no apoio à “sua” companhia aérea, será que o governo português e a TAP teriam capacidade de fazer sobreviver a TAP? Culpar Bruxelas é fácil, e retira “pressão” interna, mas dificilmente pode ser visto como um bom argumento nessa linha de defesa de interesse estratégico de longo prazo.

Por fim, vamos admitir que há interesse estratégico na TAP, e que está relacionado com as ligações, que poderiam não existir de outro modo, com destinos onde há comunidades portuguesas – mas nesse caso, porque para-nacionalizar uma empresa é melhor do que definir esse interesse estratégico e ver que alternativas existem para o concretizar? (por exemplo, subsidiar passageiros? pagar um montante fixo para que as rotas se mantenham abertas? outra solução – não tenho resposta neste momento, embora me pareça que se deve discutir opções). Calculo que o argumento seja de que agora não há tempo – talvez, mas parece nunca haver tempo para pensar intervenções de longo prazo.

(já agora, se é o interesse estratégico da TAP que está em causa, é de esperar que no plano que o para-ministro António Costa Silva irá apresentar seja dado algum espaço a esse interesse e ao papel da TAP).