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a propósito das urgências hospitalares, que valor pagar aos médicos?

Honestamente, não tenho a informação toda para poder dizer, mas chamou-me a atenção do titulo de um artigo no Público “Bastonário e sindicatos dos médicos querem horas extra com valores iguais às dos prestadores de serviços”. E chamou a atenção porque perde imediatamente a pergunta do que significa exactamente e porquê. É necessário um pouco de análise económica básica nesta discussão (livro de texto sugerido “The Economy”, disponível gratuitamente, para quem quiser ver melhor as bases dos argumentos seguintes).

Comecemos pela descrição da situação, baseada no que tem sido descrito em várias entrevistas e por vários orgãos da comunicação social: a) os médicos pertencentes aos quadros dos hospitais são, em alguns casos (crescentemente?), insuficientes para cumprir as obrigações de escala de urgência (obstetrícia e ginecologia tem sido a de maior destaque, existindo referência a outras especialidades). b) a possibilidade de horas extraordinárias por médicos da instituição [acima do contratualmente estabelecido, e no que possa ser decisão dos profissionais em fazer ou não essas horas extraordinárias adicionais (alterado 19h00, 16/06/2022)] não tem sido concretizada, em parte porque o valor adicional pago não é compensador (se fisicamente for impossível colocarem mais horas, então pagar horas extra com outro valor não resolve o problema de disponibilidade, tem que haver alguma possibilidade de decidir trabalhar mais horas se for remunerado de forma que seja aceite pelos médicos); c) há o recurso regular, mais nuns hospitais do que noutros, a empresas que organizam a prestação de serviços médicos (em que as empresas recrutam e organizam a prestação), sendo o valor hora pago mais elevado que o valor que seria pago por horas extraordinárias a pessoas do hospital e valor esse que difere de local para local de acordo com as informações publicamente disponíveis.

Se esta descrição captar as principais linhas da questão, significa que há um mercado de prestação de serviços médicos, que funciona com preços / valores pagos determinados pela necessidade (procura) e pela disponibilidade (oferta). Significa que em períodos ou locais onde há menos disponibilidade de médicos no regime de trabalho “à tarefa”, os valores pagos serão maiores. Significa que em períodos ou locais onde maior necessidade, com menos alternativas, os valores pagos serão maiores. Claro que para a comparação é relevante o valor recebido pelos médicos que desenvolvem a atividade por via de prestadores de serviços, e não o valor pago à empresa que organiza (que incluirá a respetiva margem de serviço).

Sendo assim, o ponto de comparação “valores iguais às dos prestadores de serviços” tem ambiguidade, porque não existe um valor independente da situação de cada local. E mais importante, esse valor de referência, preço dos prestadores de serviços, não é independente da disponibilidade dos médicos de cada hospital para darem horas extraordinárias adicionais, a um valor de remuneração mais elevado do que tem sido oferecido.

Em termos de análise económica, ao permitir que se pague valores mais elevados aos médicos do hospital para horas extraordinárias adicionais que façam, está-se a reduzir a necessidade (a procura) de serviços de prestadores de serviços médicos, o que fará baixar o preço pago nesses serviços. Ou seja, o que se pretende ter como ponto de referência irá variar de local para local, o que irá criar incerteza quanto à remuneração que deverá ser paga.

E aqui entra uma outra decisão – pretende-se que o pagamento destas horas extraordinárias seja feita em contexto de mercado (o que parece implícito na ideia de comparação com os valores pagos pelos prestadores de serviços), ou quer-se estabelecer um valor fixo e imutável às condições de cada hospital e especialidade?

A forma de organizar o processo irá depender da resposta a esta questão. Se for participação no mercado, é como se os médicos de cada hospital tivessem em cada momento que apresentar uma proposta para essas horas extraordinárias. O que levaria a uma versão dos hospitais contratarem os seus próprios médicos como se fossem prestadores de serviços. Essa possibilidade tem tudo para gerar incentivos perversos (complicar a atividade normal para serem necessárias mais horas extraordinárias, que seriam necessariamente feitas pelos próprios) – é por isso de saudar a posição da Ministra da Saúde em ter afastado (pareceu-me) essa possibilidade.

Ficamos então com a segunda alternativa – fixar um valor comum a todos os hospitais e especialidades, por hora mais. Terá menos flexibilidade, mas não se descartando a possibilidade de recorrer a empresas de prestadores de serviços são mantidos limites a eventuais situações perversas.

Indo nesta direção, há então que compreender que o valor atualmente recebido pelos médicos em regime de prestação de serviços não é o valor adequado. Deverá ser um valor mais baixo, uma vez que aumentando a “oferta” desta forma, o valor de equilíbrio no mercado de prestação de serviços será mais baixo.

Há, porém, uma ressalva – se a situação atual for tal que cada hora extraordinária adicional feita pelos médicos de cada hospital ser uma hora extraordinária a menos disponibilizada pelas empresas de prestação de serviços (os médicos deixariam de estar disponíveis para estas empresas na exacta proporção em passassem a estar disponíveis para o hospital), então o preço de equilíbrio ficaria inalterado. Só que neste caso, então esta medida também não resolveria o problema, uma vez que não estaria a aumentar a “oferta agregada”. A determinação do preço de referência para as horas extraordinárias que irão substituir empresas de prestação de serviços por medicos do próprio hospital com mais horas extraordinárias é por isso muito menos óbvia do que resulta das afirmações publicamente feitas (se houver algum objetivo de racionalidade económica, obviamente).

Dito isto, decorre desta análise rápida (e que admito possa necessitar de ser corrigida por algum elemento que não tenha considerado e seja relevante para o resultado final), que a definição do valor hora a ser pago não deve ser igual ao valor que tem sido praticado no mercado de prestação de serviços médicos. Deverá ser mais baixo, mesmo mantendo a posição de que deverá ser indiferente aos médicos optarem por fazer horas extraordinárias através do hospital diretamente ou através de uma empresa de prestação de serviços (esta “exigência” também poderá ser discutida, com base noutros elementos, mas aceito-a neste ponto de discussão, pois mesmo com esta condição, a conclusão mantém-se).

Em termos de opções, a melhor opção a médio e longo prazo é ter os quadros técnicos preenchidos de forma a assegurar o trabalho necessário em condições normais, e recorrer a horas extraordinárias / empresas de prestação de serviços (o que for menos oneroso) apenas em condições muito pontuais, e decorrentes de picos de procura ou choques de restrição de oferta não antecipados.

No imediato, a utilização de pagamento de trabalho extraordinário a médicos do próprio hospital é preferível, em termos técnicos e em termos financeiros, a ter uma dependência considerável de empresas de prestação de serviços médicos.

A determinação das remunerações tem que ser devidamente pensada, e não decidida no calor do momento ou em momento de pressão. E princípios de funcionamento económico devem ser incorporados na discussão, de forma a que sejam tomadas as melhores decisões.

Para discussão, e porque “quem disser o contrário é porque tem razão” (frase “roubada” a um livro de Mário de Carvalho).

(os contornos de uma resposta mais estrutural ficam para discussão próxima)


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Indicadores que pouco indicam

Há normalmente alguma vantagem em deixar assentar o pó das indignações públicas, qualquer que seja a razão subjacente, para depois regressar ao tema de uma forma mais fria, porventura mais rigorosa, e num processo de aprendizagem. 

Vem esta introdução a propósito de retomar a discussão da proposta de criação de um indicador de desempenho para os cuidados de saúde primários baseado na decisão de interrupção voluntária de gravidez indesejada. Face à polémica levantada, foi muito rapidamente assumido que o indicador não seria usado (está aqui o ponto final). A decisão é correta. Mas o processo que levou a este indicador ser apresentado e ter quase sido aprovado sugere fortemente que outras propostas, que não levantem indignação pública, mas que tenham os defeitos e problemas desta proposta, acabem por ser aprovados e colocados em prática. Ou seja, o problema não foi apenas a escolha infeliz de um indicador. O problema, a meu ver, é a forma de construção e pensamento que leva à proposta de um indicador ser incompleta e passível de introduzir erros futuros, noutros indicadores. Para sustentar esta afirmação, recupero o que é publicamente conhecido sobre a construção do indicador, para ilustrar onde falhou um passo crucial antes da proposta ser apresentada.

A intenção inicial é usar uma abordagem de pagamento por desempenho para atividades dos médicos de família na área de planeamento familiar. O problema, segundo percebi, é a insuficiente atividade preventiva desenvolvida neste campo. Deseja, quem elaborou a proposta de indicador, uma interação maior entre o médico de família e as pessoas que segue (aqui, fez-se, e bem a observação pertinente de não fazer recair apenas sobre a mulher a responsabilidade deste planeamento). Numa lógica de pagamento por resultados, o passo seguinte será encontrar um elemento observável e verificável de resultado sobre o qual possa ser alicerçado um pagamento. O realizar consultas específicas não é um indicador de resultado. Creio que terá surgido assim, depois de provavelmente terem sido discutidas várias propostas, a sugestão de ter como indicador a interrupção voluntária da gravidez em casos de gravidez não desejada. A lógica subjacente é simples – uma intervenção mais eficaz dos médicos de família deverá resultar num menor número de casos de gravidez não desejada, o que se traduz também num menor número de interrupções voluntárias de gravidez por esse motivo. Como a informação sobre interrupções voluntárias de gravidez realizadas no Serviço Nacional de Saúde é registada, bem como, calculo, motivos clínicos que tenham levado a essa situação, torna-se possível, de forma anonimizada, conhecer o desempenho de cada médico de família neste indicador. É recolhido de forma rotineira, com mecanismos fiáveis, e é um indicador relacionado com a atividade que se pretende promover. Até aqui, de um ponto de vista de construção lógica, faz todo o sentido. Esta construção da relação de causalidade entre atividade e desempenho é necessária para definir um bom indicador. Contudo, não é suficiente. Há elementos adicionais que têm de ser analisados. Esses elementos adicionais lidam com a informação que o indicador pode dar sobre o desempenho. Não basta que uma atividade cause um indicador. É fundamental que não existam outros motivos importantes para que o indicador varie, e sobretudo que o indicador não seja influenciado por outros fatores que estejam debaixo do controle do decisor para o qual se pretende criar um mecanismo de remuneração de acordo com o desempenho. Ou seja, é preciso também analisar de forma completa em que condições é que o indicador transmite informação apenas, ou sobretudo, sobre a atividade que se pretende remunerar. Voltando à interrupção voluntária da gravidez. É possível e provável que haja muitos fatores que levem à decisão de fazer essa interrupção voluntária da gravidez, não sendo de todo claro que uma boa intervenção de planeamento familiar será o elemento dominante na evolução do indicador. Em termos técnicos, o indicador é um sinal com muito ruído. Só este elemento de força do sinal gerado é suficientemente importante para exigir um cuidado metodológico forte na apresentação de um qualquer indicador. Adicionalmente, neste caso concreto, existe ainda uma outra possibilidade – o médico de família poderá eventualmente tentar influenciar a decisão de interrupção voluntária da gravidez depois da ocorrência desta (e não apenas no momento em que contribui para decisões de saúde reprodutiva que levam a menor número de situações de gravidez não desejada, e logo menor número de interrupções voluntárias da gravidez). Ou seja, o indicador tanto pode ser resultado de uma intervenção a nível de planeamento familiar como ser resultado de uma intervenção na decisão de realizar ou não a interrupção voluntária de gravidez. A ideia inicial era remunerar a primeira, e não a segunda, intervenção. Não há forma evidente de como a evolução do indicador pode ser separada no que diz respeito à primeira intervenção ou no que diz respeito à segunda intervenção. Adicionalmente, tornou-se muito claro, em toda a discussão, o não ser eticamente aceitável que a intervenção do médico de família pudesse eventualmente ser no sentido de recomentar a não interrupção de gravidez para favorecer a sua remuneração. Daqui se infere que o processo que levou à apresentação de um indicador não teve o cuidado técnico, metodológico, de exaustivamente analisar se o mesmo indicador poderia resultar de outras intervenções que não aquela que se desejava promover. O caminho da variação do indicador para o que lhe deu origem não termina forçosamente numa melhor intervenção do médico de família a nível de planeamento familiar. Se esta análise tivesse sido realizada, provavelmente o problema que levou à forte reação pública teria sido identificado e o indicador não teria sido proposto. Assim, parece-me provável que o próprio processo de criação de indicadores tem problemas metodológicos, e deverá ser revisto. A criação de indicadores não é um exercício que se possa fazer de modo amador. E essa é uma lição a aprender deste episódio (embora, honestamente, não tenha grandes esperanças que venha a ser mudado algo no processo).

Assim, se a indignação pública com a proposta foi baseada, e bem, em questões de princípio que não foram devidamente analisadas ou valorizadas, o processo técnico, em termos de metodologia, que levou à apresentação do indicador também foi incompleto. E se a indignação gerada impediu que este indicador viesse a ser contemplado, a existência de um processo incompleto poderá levar ao uso de indicadores desadequados, desde que não gerem uma visibilidade pública adversa. Há indicadores que pouco indicam sobre o que se pretende valorizar. Há indicadores que podem ser manipulados (geridos, de uma forma legal), ficando desvirtuada a intenção inicial. Espero que este episódio leve quem pensa nestes indicadores a procurar ter um pouco mais de rigor nas metodologias usadas.


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a propósito dos caminhos (públicos) para o sector da saúde

Nas duas últimas semanas tive a oportunidade de expressar algumas ideias (sem nada de especialmente inovador), primeiro no Diário de Notícias, aqui, e depois num webinar da série Fora da Caixa, com Marina Caldas e Manuel Delgado (disponível no YouTube, aqui). Na sequência desta última conversa, como tomei algumas notas, decidi colocar por escrito alguns pontos, como complemento e reforço. Em formato de ideias soltas, aqui vai:

O dinheiro da saúde tem sido mal gerido?

O ponto de partida é a existência de um reforço considerável neste orçamento para 2022. Com o orçamento deste ano não há motivo para não se fazer melhor gestão do que na década passada.

Pode ser gerido melhor?

Sim. Ao contrário da resposta fácil que é dizer que se tem de nomear bons gestores e fica tudo resolvido, receio que conseguir apenas escolher as “pessoas certas”, o que quer que isso signifique, não seja suficiente. É necessário mudar o próprio quadro em que a gestão se desenvolve e os instrumentos que se usam, além de uma escolha de bons profissionais de gestão. Como exemplo rápido disto mesmo: nomear os melhores gestores e negociar contratos programa anuais durante o ano de vigência desses mesmos contratos é contraditório e largamente inútil. Uma proposta é saltar na substância um ano e estabelecer até final de Julho de 2022 os contratos programa para 2023 e apresentar planos estratégicos (ou o que quer que se lhes chame) a 3 anos até final de Outubro. Entrar na gestão de 2023 com os instrumentos definidos a tempo e horas. Sobre se nomear as empresas é suficiente, remeto para a tese de doutoramento do Alexandre Lourenço, que analisou as nomeações para hospitais do SNS, publicadas oficialmente.

Mas também dentro das organizações é necessário melhorar a respetiva gestão. Cada local terá as suas peculiaridades mas ter um caminho claro só pode ajudar. 

Uma segunda proposta é criar uma equipa de emergência de gestão, para intervir no apoio a unidades que se apresentem com mais dificuldades neste campo e que não são necessariamente as maiores, em termos de dimensão do orçamento.

Uma terceira ideia, que também não é nova, consiste em reforçar a autonomia de gestão dos hospitais que demonstrem a capacidade de usar bem essa autonomia. Para o setor público em geral foi apresentada por Orlando Caliço, há uns anos, numa iniciativa chamadas Sextas da Reforma, e que foi dinamizada pelo Banco de Portugal, Fundação Calouste Gulbenkian e Conselho das Finanças Públicas. A aplicação desta ideia foi proposta pela estrutura de missão Perelman, que acompanhou a execução orçamental nos hospitais do SNS. Não tem nada de novo, é simplesmente a sugestão de que se faça algo pensado antes da pandemia e que foi interrompido por esta.

Olhando agora para os cuidados de saúde primários, profissionais de saúde esgotados nem por isso deixam de ter ideias de como melhorar o modelo de apoiar as populações e com isso reduzir o problema do milhão e 300 mil pessoas que não são seguidas regularmente por um médico de família. Parte da resposta terá de ser recrutar forçosamente mais especialistas em medicina geral e familiar. Parte será procurar modelos que organização que permitam alargar a cobertura oferecida. E aqui o ponto central é como construir uma relação de longo prazo entre a médica de família e as pessoas que ela segue. É importante não só ter os profissionais de saúde mas também assegurar a ideia do cidadão “ser seguido”. Logo contratos de prestação de serviços de base anual não são uma solução de longo prazo. Podem ser um alívio de curto prazo mas a solução duradoura tem que passar pela contratação. OU seja, tem que existir uma perspectiva de longo prazo. Daí que estabelecer contratos com médicos do sector privado só será solução se forem de longa duração, quase que uma forma de mini-PPPs. Por isso, abrir (finalmente) o modelo C das USF é mais interessante, do ponto de vista do que o SNS é suposto fazer, do que contratar no curto prazo no sector privado.

O que é preciso para o SNS ser atractivo?

A resposta honesta é que não sei exatamente. Isto porque profissionais diferentes terão necessidades diferentes, até de acordo com a sua fase de vida pessoal. Ou seja, em lugar de uma resposta única que seja colocada em alguma circular normativa, ou documento oficial, é necessário ter uma “ementa” de possibilidades contemplando diferentes graus de flexibilidade quanto a três pontos chave: remuneração e condições no local de trabalho, oportunidades de desenvolvimento profissional e equilíbrio entre vida pessoal e vida profissional. Esta forma de tornar o SNS atractivo é difícil de criar e exigente para a gestão das unidades de saúde (e provavelmente mais exigente para as mais pequenas, como as USF), e é por isso que necessita de um bom trabalho de base na sua conceptualização e criação.

Ouvir os profissionais de saúde, saber o que valorizam, é central. Claro que ouvir os profissionais não é fazer tudo o que eles possam querer ou dar-lhes tudo o que pedirem. É ganhar conhecimento para conseguir gerir melhor (e aqui está outra forma de melhorar a gestão do SNS).

A dedicação plena é “a” solução?

Tal como apresentado em Outubro (desconheço se há algum documento mais recente), a proposta feita não dá resposta à ideia de flexibilidade de opções, e surgindo numa lógica de controle dos profissionais de saúde, fica longe, no espírito e na forma, do que me parece ser necessário contemplar. Até posso estar enganado. Se me mostrarem evidência, quantitativa e/ou qualitativa, até posso rever esta opinião. As condições atuais de maioria absoluta, que existiam há 8 meses, podem e devem levar a uma maior reflexão na atuação neste campo (maior reflexão não significa ser lento, e sim abrir outras possibilidades de discussão).


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Contributo para a Consulta Pública do Plano Nacional de Saúde 2021-2030 (Direção-Geral da Saúde)

Um grupo de investigadores do Nova Health Economics and Management Knowledge Center elaborou um contributo como resposta à consulta pública lançada pela Direção-Geral de Saúde da proposta de Plano Nacional de Saúde 2021-2030. Este contributo foi submetido através do portal ConsultaLex.gov.pt. Decidimos disponibilizar também através deste meio as ideias propostas para discussão. Nota de cuidado: este é um post longo.

Resposta à Consulta Pública – Plano Nacional de Saúde 2021-2030

Documento elaborado no âmbito do Nova Health Economics and Management Knowledge Center, Nova School of Business and Economics, Universidade Nova de Lisboa

Diogo Marques, Diogo Nogueira Leite, Henrique Vasconcelos, Joana Gomes da Costa, José Miguel Diniz, Manuel Marques da Cruz, Pedro Pita Barros, Sara Ribeirinho Machado

0.     COMENTÁRIOS GERAIS

  1. Cumpre, em primeiro lugar, saudar a colocação em consulta pública do Plano Nacional de Saúde 2021-2030. É patente o esforço colocado na elaboração do documento, bem como o espirito de abertura que esteve presente na sua elaboração, e que continua neste passo de ouvir a sociedade. 
  2. Reconhecendo que há muitos elementos de grande mérito no documento apresentado, a resposta à consulta pública que aqui se apresenta foca nos aspetos que consideramos serem merecedores de melhoria. Ao fazê-lo, deixamos de fora, em geral, os elementos que nos surgiram como positivos e amplamente consensuais. Não se pretende fazer uma avaliação da proposta de Plano Nacional de Saúde, situação em que se faria uma análise detalhada dos aspetos positivos e consensuais, e dos aspetos que nos surgem como susceptíveis de melhoria. 
  3. É de relevar que os stakeholders mencionados que não se encontram imediatamente associados à área da saúde são, na vasta maioria dos casos, pertencentes a Gabinetes governamentais e não a instituições do serviço público português. Este facto é tão mais indesejado quando se assistiu, muito recentemente, à criação de um novo Governo da República Portuguesa e, por consequência, seja expectável que estas alterações tenham produzido efeitos na composição desta Comissão de Acompanhamento – quer por via de alterações da orgânica governamental, quer por via de pessoas com o know-how acumulado que deixaram de estar presentes. Assim, afigura-se imperioso estabelecer mecanismos concretos para a articulação tão necessária entre diferentes elementos da sociedade e da Administração Pública Central e Local que permitam construir a desejada resiliência em saúde pública, para a qual contribui também o exercício que o PNS constitui.
  4. No conjunto das ações preconizadas, não se verifica qualquer iniciativa de monta que permita criar resiliência no sistema de saúde a nível público. Não existe um encadeamento óbvio quer com a reforma da saúde pública encetada em 2018 quer com a criação, a nível europeu, da HERA (European Health Emergency Preparedness and Response Authority). A ausência de definição concreta de programas e/ou estruturas que estejam responsáveis pela monitorização de vários dos fatores elencados ao longo do documento e que podem potenciar o surgimento de novas pandemias constitui um fator de preocupação acrescida não apenas pela ausência da sua definição, mas também e sobretudo por revelar que não se incorporou nenhum do capital humano, know-how, e lições aprendidas com a COVID-19 na DGS na sua atividade de prevenção da doença e promoção da saúde públicas. Será extremamente importante encontrar um arranjo organizacional e institucional que permitisse materializar os objetivos da HERA a nível nacional, potenciando a atuação a nível nacional e reforçando o papel de Portugal na União Europeia também por esta via. Recomendamos que seja contemplada na versão final do PNS uma ação concreta nesse sentido.
  5. O documento efetua um levantamento tradicional – e, por consequência, pouco inovador – de saúde pública, demonstrando globalmente uma falta de ambição para usar a pandemia de COVID-19 como mote para melhorar os serviços e sistema de saúde pública de Portugal. São dados alguns passos relevantes no reconhecimento da incerteza e do seu mapeamento, assim como a incorporação da necessidade de uma maior participação no processo de elaboração de políticas públicas. O levantamento que é feito é baseado em metodologias com um racional convencionado – mas que podem não ser as mais adequadas para a análise que se pretende fazer -, e estas utilizam dados imperfeitos que, por sua vez, são gerados por processos que apresentam deficiências cujo impacto na medição dos resultados em saúde pública desconhecemos. Elementos próximos da realidade prática (i.e., do “terreno”) não terão dificuldade em denotar os principais problemas e suas potenciais soluções. Ao abordar o problema com esta perspetiva o PNS seria capaz de conhecer melhor a realidade e, consequentemente, desenhar intervenções focadas que permitam, também elas, construir (como aliás é referido no texto) a saúde pública de precisão. A utilização da “saúde pública de precisão” como paradigma da nova saúde pública permitirá, em tese, alcançar ganhos em saúde verdadeiramente transformacionais. Recomendamos que o foco na “saúde pública de precisão”, com que se concorda tenha reflexos ao nível da informação recolhida e seu tratamento.
  6. Torna-se imperioso aprender bem as lições da pandemia – também a nível de processos, cultura organizacional, pessoas, e orçamentos – e utilizar esta oportunidade para forjar uma nova ambição em saúde pública, que vise contribuir, em última instância, para a felicidade e realização dos cidadãos que residem em Portugal.
  7. Há repetidas referências à cooperação com stakeholders concretizadas nas secções de Metodologia (2.2.2.) e Saúde da População em Portugal (3.2.2. e 3.2.3.). Dessa cooperação resultou um exercício, cuja utilidade não é clara, em que a Comissão de Acompanhamento sugere, de uma lista pré-preparada de (eventuais) necessidades de saúde, aqueles elementos que mais afetam a Saúde dos portugueses em quatro dimensões diferentes (problemas de saúde ou determinantes, considerando ou desconsiderando a COVID-19 em cada um) apenas para entrar em acordo com as necessidades técnicas identificadas e priorizadas – essas sim, levadas ao longo do documento como as prioridades a atender. É pouco claro o que mudou, ou não, com a consulta à Comissão de Acompanhamento.
  8. Refere-se que “O Plano Nacional de Saúde 2021-2030 conta com a participação das diferentes entidades, dentro e fora do sector da saúde, que integram a sua Comissão de Acompanhamento, num processo de cocriação”, mas depois existe um afastamento daquilo que são as suas propostas, que são “da exclusiva responsabilidade dos/as respetivos/as proponentes.” 
  9. Muitas das recomendações do Anexo 5, Síntese das recomendações efetuadas por Conselheiros/as do Conselho Consultivo do PNS 2021-2030, não foram englobadas nas recomendações ou objetivos. Quais foram e porquê? E as que não foram, por que motivo?
  10. Há dificuldade de compreender quais são as estruturas que fazem parte desta Comissão de Acompanhamento. Deveriam estar divididas de acordo com os setores de atividade. 
  11. Seria útil uma maior clarificação do que foi o contributo / propostas decorrentes destas duas aberturas à cooperação, sendo que o Plano Nacional de Saúde não tem que necessariamente acolher todas as sugestões que são recebidas, devendo, porém, ser claro porque não são acolhidas propostas decorrentes de solicitações a stakeholders e comissões de apoio que sejam criadas. Os exercícios de consulta e de cocriação beneficiam também de haver transparência na informação prestada sobre as decisões de acolher, ou não, propostas que sejam feitas. 
  12. Considera-se positivo o esforço de construir um PNS de forma participada, com as inerentes dificuldades de conciliação do que serão visões diferentes, expressas por intervenientes distintos no campo da saúde.  
  13. Recomendamos que seja incluído um texto, que não precisa de ser extenso, de resposta às propostas que são mencionadas no Plano Nacional de Saúde, referindo que foram acomodadas ou que não foram incluídas, com duas ou três frases de explicação da decisão.
  14. De uma análise ao Plano como um todo transparece um documento que continuamente tenta justificar uma dificuldade em definir estratégias palpáveis ou a consequência esperada das mesmas, comprovado pela utilização da projeção a 2030 (ou a sua melhor alternativa) para a fixação de objetivos, não chegando a cumprir a fundamentação científica a que se compromete ao referir que o processo de elaboração do PNS “Assenta numa forte base de evidência nacional e internacional”.
  15. Para esse contexto, muito contribui a seleção das melhores estratégias de intervenção para a saúde sustentável, resultante da análise e integração dos resultados obtidos na definição e priorização das necessidades em saúde e não do impacto real que se prevê obter com as intervenções (que é omisso). Recomendamos que o Plano Nacional de Saúde tenha grande clareza quanto ao impacto esperado das intervenções que são propostas (sendo que a manutenção de bons resultados já alcançados pela continuidade ou reforço de esforços passados são parte dessas intervenções e respetivo impacto).
  16. O modelo lógico do planeamento estratégico utilizado na elaboração do PNS não é transversalmente cumprido. Embora tenha uma identificação exaustiva das Necessidades de Saúde, (discutivelmente) se foque “no que é importante” e defina também um plano de Monitorização e Avaliação, não apresenta o mesmo critério e rigor no que toca a escolha das “Melhores Estratégias” ou das “Recomendações para a Implementação” – sendo evidente que este PNS se torna especial por abranger uma década apenas por definir objetivos para 2030, através de projeções com inúmeras limitações (plasmadas no documento) e garantindo uma redefinição de objetivos quase certa em 2025.
  17. Do “extenso e profundo diagnóstico de saúde da população” e da resultante definição de objetivos e estratégias e recomendações à sua implementação, fica um PNS que, muito por força das limitações que vai referindo, dificilmente se destaca inequivocamente de uma “lista prêt-à-porter de problemas de saúde, ordenados segundo metodologias de priorização criadas para abordagens mais simplistas e unidimensionais dos problemas de saúde e seus determinantes” (PNS; p. 185).
  18. Numa lógica de “Plano”, planear significa também preparar para ajustar ao longo do caminho, sendo que pouco é referido quanto aos mecanismos de ajustamento que possam existir e sua “governance”.  Recomendamos a inclusão de um capítulo ou subcapítulo dedicado à apresentação da “governance” do PNS.
  19. É referido que o PNS 2021-2030 pretende selecionar “as estratégias de intervenção mais adequadas”. O que se entende por mais adequadas depende dos objetivos que sejam definidos bem como das restrições que sejam defrontadas. Ao falar-se de objetivos de saúde sustentável tem de ser dada uma clara definição.  É referido que um dos objetivos é a “redução das iniquidades em saúde”, pressupondo que seja sem redução do nível de saúde que já foi conseguido (reduzir iniquidades – ou seja diferenças não justificáveis – pode ser feito baixando uns em vez de melhorar os outros).
  20. O qualificativo de “saúde sustentável” aparece associado aos objetivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas.  Assim, objetivos de saúde sustentável deve ser lido como prossecução de objetivos de melhoria do estado de saúde da população compatíveis e que simultaneamente favoreçam cumprir-se os objetivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas. Na prática, o termo engloba dois objetivos, que podem não estar alinhados em todo o momento. 
  21. O documento parece inacabado. Parece um documento de preparação para a discussão do Plano Nacional de Saúde, e não, o próprio Plano Nacional de Saúde. Refere-se muitas vezes qual foi a intenção do documento, mas pouco daquilo que se pretende, de facto, fazer. O documento inicia-se a partir de um diagnóstico não estruturado, em que os diferentes tópicos vão surgindo, sem qualquer contexto. 
  22. O documento podia-se chamar Plano Nacional de Doença, tal é a tão baixa prioridade dada à promoção da saúde e prevenção da doença. 
  23. O texto está mais próximo de um relatório de mortalidade e morbilidade do que um Plano Nacional de Saúde. Por exemplo, sucesso é definido como redução na mortalidade materna, mortalidade infantil, e evolução da esperança de vida. É, por isso, um PNS que se centra em outcomes de saúde (Quadro 40 e 41) embora se diga que “No que respeita às necessidades de saúde por determinantes de saúde, para além dos fatores biológicos, comportamentais e ambientais, foi possível destacar, com elevada preponderância, os fatores relacionados com o sistema de saúde e a prestação de cuidados de saúde, os económicos, e os demográficos e sociais.” Uma vez escolhido o foco nos outcomes, então aí entram os suspeitos do costume, as doenças crónicas da saúde dos Portugueses (Figura 80). As estratégias de intervenção (Quadro 43), em particular as de promoção da saúde, são difíceis de definir e implementar (para não dizer impossíveis). 
  24. Os objetivos são excessivamente vagos, sem horizontes temporais definidos, sem medidas de sucesso ou fracasso (não-SMART) – e.g., “Partilhar conhecimento para resiliência comunitária”. Por um lado, é compreensível que o foco de um plano seja a um nível mais macro que outro tipo de documentos mais estratégicos, mas não pode ser completamente negligenciado nos poucos objetivos e metas aos quais se propõe.
  25. Poderia ter sido feita a definição de prioridades com base nas necessidades de saúde (pública) da população portuguesa, orientando as formas de atuação com base nos diferentes níveis de prevenção. Há alguma descrição da situação socioeconómica e menção de outros incluídos determinantes referidos nos ODS, sem relação com a situação de saúde ou doença.
  26. Foco muito reduzido em DALYs e praticamente nenhum em qualidade de vida, num paradigma caracterizado por doenças crónicas
  27. O PNS dá insuficiente relevância prática à promoção da saúde e prevenção da doença. Este aspecto é relevante por vários motivos: Primeiro, a carga muito elevada em termos de prevalência de doenças não transmissíveis, muitas das quais são associadas a comportamentos e hábitos de risco. Estima-se que, em Portugal, cerca de 1/3 das mortes são atribuíveis a muitos destes fatores de risco comportamentais (e modificáveis). Além da mortalidade, que parece ser a métrica mais relevante (e mencionada) em termos de consequências em saúde, é relevante avaliar o impacto na qualidade de vida. A verdade é que nos últimos anos, antes da pandemia, não tem sido possível associar à aumento da esperança de vida aumento da qualidade de vida. Isto é particularmente relevante para a pirâmide etária e estrutura da nossa sociedade e evidenciado por “os valores do indicador anos de vida saudável aos 65 anos19 em Portugal foi de 6,9 anos no sexo feminino e 7,9 anos no sexo masculino, valores inferiores aos registados na média da União Europeia (UE) (10,4 anos e 10,2 anos, respetivamente)”.
  28. Recomendamos: (i) pensamento (a longo-prazo) sobre a integração de medidas e alternativas/complementares às existentes a serem utilizadas na prevenção da doença e (ii) aplicação destas medidas com caracter de feedback periódico.
  29. Além dessa apreciação, uma perspetiva mais otimista e pragmática de intervenção no âmbito do PNS poderia ver a capacidade de modificar estes fatores de risco e o seu impacto na doença e na qualidade de vida das pessoas e na sociedade. É de reforçar que, apesar da descontinuidade temporal entre o investimento e os resultados, existe uma relação muito custo-efetiva entre uma aposta na prevenção e na manutenção da saúde. Neste tópico pode ser benéfico introduzir na discussão a quantificação de custos diretos e indiretos associados aos cuidados destas patologias, bem como o custo de oportunidade na resposta a outros grupos de doenças – como as oncológicas – que não pode ser esquecido.
  30. Ainda nesta linha, a definição de uma entidade que tenha como único objetivo a promoção da saúde e prevenção da doença, com essa atribuição publicamente reconhecida, ajudará a que não seja uma atividade subalternizada. 
  31. Neste seguimento, a vigilância epidemiológica é uma vítima particular da falta de atenção e alocação de recursos, dentro do que poderá ser considerado neste PNS com um problema de baixo risco e elevada magnitude. Como exemplo, pode salientar-se vigilância epidemiológica de doenças emergentes (quer as conhecidas e até preveníveis pela vacinação, quer novas infeções víricas com potencial epidémico ou pandémico) e a resistências aos antimicrobianos. Atualmente, em Portugal, o modus operandi vigente baseia-se em sistemas tecnologicamente arcaicos, repletos de erros e ineficiências, e protocolos de utilização pouco otimizados, ou seja, com uma monitorização, e respetiva resposta, pouco útil e rigorosa.
  32. Parte integrante desta aposta deve passar necessariamente por um esforço adequado em acesso à informação correta e pertinente em saúde. O utente deve ser capacitado dos recursos e dos meios necessários para responder a questões relevantes para a gestão da sua saúde e doença, num tom acessível e adequado. É claro que não cabe ao cidadão ter todo o conhecimento relevante, mas a “complexidade” ou “variedade” das suas dúvidas não poderão servir de ponto limitante à construção destas ferramentas.
  33. Neste sentido, é necessária uma reestruturação do site da DGS e de outros canais de informação de modo a facultar informação de forma acessível e clara relativas à saúde em Portugal, incluindo, por exemplo, o PNS, Normas de Orientação Clínica, Legislação, Programas Nacionais (e Regionais e Locais) de Saúde, entre outros.
  34. No campo da Saúde Digital, atendendo à grande democratização e banalização do acesso e utilização de ferramentas digitais para o acesso e usufruto dos cuidados de saúde, é de colmatar a omissão de, pelo menos, uma reflexão ou um conjunto de intenções sobre como se deve regulamentar estes instrumentos e os seus sistemas subjacentes, bem como a sua aplicação de forma a gerar resultados válidos e adequados, protegendo a privacidade dos utentes.
  35. Sobre a “transição digital”, muito há para dizer. Em primeiro lugar, qual é o objetivo pretendido? Transpor todos os processos vigentes para um protocolo informático? Modernizar os procedimentos e dar forma às soluções necessárias com recurso a novas ferramentas e resultados só possíveis numa estrutura informatizada? A falta de resposta a estas questões e de esclarecimento sobre a operacionalização da transição, é preocupante dado os inúmeros problemas associados com uma mudança como a ciber-segurança e qualidade dos dados. Que aspectos da transição digital dizem respeito à relação do SNS (do sistema de saúde) com o cidadão, e que aspectos da transição digital são de suporte de atividades desenvolvidas (sem envolver contacto direto com o cidadão)? 
  36. Um exemplo semelhante é o da consulta pública sobre o Programa iSimplex – GuIA para a Inteligência Artificial, promovido pela Agência para a Modernização Administrativa, cujo documento reflete uma iliteracia neste âmbito por parte dos responsáveis a nível destes órgãos.
  37. Relativamente à forma, o documento tem elementos de escrita que podem ser melhorados, apresentando diversas inconsistências na sintaxe e na ortografia. Adicionalmente, as figuras que acompanham o documento, não apresentam a melhor qualidade, sendo em alguns casos, impossível a sua leitura. 

1.     INTRODUÇÃO

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Seria muito interessante que se começasse este exercício por fazer uma avaliação de como correu, pelo menos, o último PNS. Em particular, seria útil observar o seguinte:- exposição de motivos para a extensão do último PNS em 4 anos e o seu impacto nas políticas de saúde pública;- que motivos (e evidência de suporte) levaram a que este plano fosse desenhado para uma década em vez dos 4 anos usuais, indicando explicitamente os principais trade-offs associados com um prazo temporal mais longo para o novo PNS;- o que foi feito e o que ficou por fazer;- dentro do que foi feito, o que correu bem e o que correu menos bem, e quais as principais lições aprendidas;- mensuração dos principais efeitos atribuíveis ao PNS e seu impacto na saúde pública de Portugal;- apreciação, até à data, da pandemia COVID-19 – esta é realizada mais tarde, no capítulo 3, pese embora de uma forma que apenas transmite o impacto da COVID-19 nas preocupações de saúde pública exacerbadas pela pandemia e não um reflexo holístico, como seria adequado ao PNS.27
Pese embora seja compreensível que a implementação deste novo plano tenha sido retardada em um ano devido à pandemia e intensa atividade da DGS, o PNS é referido como sendo válido de 2021-2030. Contudo, nenhuma indicação é dada quanto ao ano e meio que decorreu sob a égide da COVID-19 e que impacto pode ter, para as políticas definidas e respetivas projeções, o facto de ser expetável que este plano apenas surta efeitos a partir do 2.º semestre de 2022. Este esclarecimento ajudará a melhor balizar a atuação da DGS e resultados obtidos por este PNS, assim como a justificar o hiato de execução implícito.27
Quais são as principais necessidades e expectativas de saúde da população residente em Portugal? Onde foi estudado/abordado? Que informação/indicadores temos sobre isto? É abordado no capítulo 2 a forma como isto é feito, o que sugere a possível existência de um enviesamento na forma de coleta da informação. Este enviesamento resulta da definição de principais necessidades e expetativas de saúde da população através do consenso dos diretores dos programas de saúde nacionais. Apesar de, teoricamente, se encontrarem bem posicionados para as definir nos setores mais importantes até à data, não significa que o sejam para o futuro. Mais ainda, por responderem perante a DGS e, em última análise, o Ministério da Saúde, não se pode descartar que pelo menos parte destes peritos esteja, ainda que subliminarmente, condicionada. Tal resulta num exercício que pode ter uma legitimidade questionável, para além de poder impossibilitar a definição de necessidades e/ou expectativas que uma base mais alargada de consulta permita antecipar. Assim, recomendamos que esta definição resulte de uma consulta mais alargada, seja através de inquéritos dirigidos à população (p.ex., através de auscultação em ambiente de consulta via centros de saúde e/ou hospitais), assim como de fóruns de discussão sobre políticas em saúde, como sejam think tanks, centros de investigação, entre outros.28
Com base em que é que consideramos que estratégias de intervenção são mais adequadas? Quais os critérios utilizados, e qual a base de evidência privilegiada? Pese embora no capítulo 4 se refira como foram identificadas as áreas para intervenção e como se selecionaram intervenções, não existe uma base científica consistente que tenha sido utilizada nem critérios quantitativos que permitam replicar a análise efetuada, afetando a reprodutibilidade do exercício. Esta omissão é grave, e coloca em causa a robustez científica do documento.28
Iniquidades ou desigualdades? Pese embora esta clarificação seja feita no capítulo 5, uma clarificação anterior do ponto de vista conceptual seria bem-vinda, dada a muito maior utilização do segundo termo no léxico.28

2.     METODOLOGIA

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Ainda que a intersectorialidade (e outras formas de exprimir articulação entre agentes com diferentes atribuições no contexto institucional da República Portuguesa e serviço público) seja um princípio louvável e frequentemente enunciado, a sua execução raras vezes traduz o grau de cooperação implícito ao conceito. Não se encontram, ao longo do PNS, documentadas as razões pelas quais se acredita que esta execução será eficaz, nem quais os incentivos que as diferentes partes têm para cooperar com o objetivo de fazer acontecer estes propósitos. É particularmente preocupante que não se enuncie responsabilidades, metas, e resultados concretos ao nível local, regional, e nacional com o propósito de articular, mesmo dentro da própria DGS e sua missão, o contributo de cada um dos agentes e respetivos incentivos para fazer acontecer estes objetivos. Sem a alocação de responsabilidades a execução de qualquer programa fica comprometida; o PNS não é diferente neste aspeto.32
Deverá constar no início da metodologia a definição do termo “saúde sustentável”, que na leitura realizada do documento aparenta ser “objetivos de saúde da população que se encontram alinhados e contribuem para os objetivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas”, devendo depois ser listados os pontos dos ODS que são explicitamente considerados. Note-se que esta leitura é diferente com o que surge na nota de pé de página 8, p. 36, onde se diz que “O conceito de Saúde Sustentável tem a ver com o alcance do melhor nível de saúde e bem-estar da população, sem comprometer a saúde e bem-estar das gerações futuras, nem deixar ninguém para trás”. A sustentabilidade definida nestes termos remete para as noções de justiça intergeracional – não limitar gerações futuras – mais do que os objetivos concretos estabelecidos nos ODSs, que parecem ser o elemento de referência. O termo “tem a ver” não possui qualquer rigor de definição, e é por isso pouco útil neste contexto. O conceito de “saúde sustentável” tal como definido nesta nota de pé de página tem como principal implicação que as intervenções do PNS não deverão limitar as oportunidades disponíveis às gerações futuras. Fazê-lo é compatível com muitas escolhas hoje (por exemplo, tendo um volume de recursos materiais e financeiros que seja compatível com essa liberdade (“sem comprometer”) para as gerações futuras, este poderá ser usado mais para um objetivo de saúde para as gerações atuais ou para outro objetivo concorrente, sendo ambos compatíveis com sustentabilidade como não comprometimento das oportunidades de gerações futuras). Os objetivos dos ODS dão linhas de referência mais concretas, e como tal mais enquadradoras do PNS do que a referência geral às gerações futuras. A importância dessa listagem de pontos concretos dos ODS está em que depois, ao longo dos vários pontos do documento, deverá ser indicado qual o efeito sobre os ODS relevantes (ou resumir numa tabela final, eventualmente). Metodologicamente, poderá ser mais fácil de compreender a “saúde sustentável” tornando explicito sempre que necessário em que medida os objetivos traçados para a saúde da população estão alinhados e contribuem para um ou vários ODS.32
No que refere às razões de natureza social, a questão dos incentivos volta a ser fundamental aqui, sobretudo na perceção das responsabilidades e incentivos para concretizar a democraticidade e grau de participação do modelo proposto.33
Fala-se bastante nos problemas de saúde – elevada e baixa magnitude – mas onde se considera a promoção da saúde e a prevenção da doença?35
A identificação e priorização das necessidades de saúde sentidas ou percecionadas pela população não deveriam partir do próprio? A medição por terceiros pode enviesar as respostas.35
Considera-se interessante, e apropriada, a separação entre problemas de “elevada magnitude” e problemas de “baixa magnitude, mas elevado potencial de risco”, que constitui uma forma útil de garantir recursos para a manutenção de intervenções e atividades que sustentam resultados já alcançados. De certa forma, torna mais visível o “custo de oportunidade” de colocar menos recursos em algumas áreas se só fossem visados os “problemas de elevada magnitude”.35
O segundo subtipo de problemas de “baixa magnitude, mas elevado potencial de risco” está num plano diferente na natureza da incerteza presente face ao primeiro subtipo desse tipo de problemas. São choques aos quais será preciso responder, se ocorrerem, enquanto no primeiro caso provoca-se um choque (negativo) no sistema de saúde e na saúde da população se retirada atenção e recursos. A preparação para os choques que possam ocorrer exige uma atenção que cai na ideia de resiliência de sistema de saúde (que será tratado separadamente).35
Na nota de pé de página 9 é definida “Necessidade de Saúde” que usa o conceito de “estado de saúde considerado desejável”, mas fica por saber o que se entende por “considerado desejável”. É natural que o “desejável” tenha em conta as possibilidades biológicas (será certamente desejável curar uma condição crónica, mas não havendo o conhecimento científico ou a possibilidade biológica de o fazer, não é útil considerar essa necessidade). E é relevante saber se “desejável” inclui o papel dos recursos disponíveis e sua boa utilização. Por exemplo, é “desejável” algo que traga apenas um benefício adicional muito baixo para uma pessoa e tenha um custo muito elevado em termos de recursos usados (que deixam de estar disponíveis para outros fins)?36
Referência à não utilização de preditores além da série temporal, numa situação em que existia para um relevante número de determinantes informação acerca da prevalência (com a mesma possibilidade e limitações para admitir projeções e prognósticos futuros) transforma a abordagem prognóstica numa abordagem demasiadamente simplista.37-38
É feita referência à “identificação e priorização final das necessidades de saúde da população”. É necessário reconhecer que a priorização não é absoluta, e depende dos níveis alcançados nos vários objetivos. Por exemplo, com dois objetivos não significa que todos os recursos sejam destinados apenas a um dos objetivos, e só depois de completamente alcançado esse objetivo se procure alcançar o seguinte. A prioridade pode alterar-se, e altera-se na realidade, consoante se vai melhorando em cada um dos objetivos. Por outro lado, a facilidade com que se pode atingir os objetivos também deverá ser parte das decisões. É aliás este o sentido presente na discussão dos problemas de saúde de elevada e de baixa magnitude – não se pode focar apenas num e descurar o outro tipo de problemas. Significa que a priorização deve ser interpretada não de modo absoluto mas de forma relativa à capacidade e concretização dessas mesmas prioridades.37
As projeções são necessariamente baseadas num conjunto de pressupostos quando ao que se vai ou não vai fazer. Ao utilizar séries temporais para extrapolar para o futuro próximo está-se implicitamente a presumir que as políticas e intervenções passadas se irão manter ao mesmo nível (seja em termos absolutos, seja em termos relativos nos casos em que a evolução das necessidades da população seja acentuada no horizonte de 10 anos). Provavelmente será adequado que cada conjunto de projeções tenha um documento técnico próprio, disponibilizado em separado, que permita a avaliação da razoabilidade dessas hipóteses num prazo de 10 anos.37
Discutível a utilização de apenas 70-80% dos pontos disponíveis, sobretudo após as limitações referidas e que tornam as previsões a 10 anos ainda mais imprecisas. Nota-se também ausência dos gráficos relativos às métricas de acuidade preditiva (que motivaram o uso de menos pontos).Se o objetivo do modelo era a predição a 10 anos, testar a melhor opção (ETS ou ARIMA) com 70-80% dos pontos não é desprovido de sentido. Contudo, o modelo final deve incorporar o máximo de pontos possíveis, sobretudo no contexto dos objetivos deste documento.38
Fixação de objetivos que se pretendia mista, aparentemente não foi. Para todos os objetivos traçados foi sempre definido um valor objetivo para 2030 que correspondia à projeção a 2030 (ou à melhor alternativa prevista no plano).38
Em termos técnicos, é referido que foram usados modelos ARIMA, embora não sejam dados detalhes sobre o número de desfasamentos (“lags”) e ordem de integração das séries, que levam também à utilização de menor número de observações. Adicionalmente, dado que é natural que existam choques aleatórios anuais comuns às diferentes séries, por um lado, e que no caso das taxas de mortalidade o aumento por uma causa leva a que haja eventualmente menor taxa de mortalidade por outra causa, poderá haver vantagem na utilização de modelos VARIMA. As projeções referentes à mortalidade prematura terão menos destes efeitos, provavelmente, uma vez que é possível que todas as taxas de mortalidade prematura (mortalidade que ocorre antes dos 75 anos) diminuam. 
No plano de monitorização e avaliação, sugere-se que seja totalmente claro que a informação de monitorização será disponibilizada com maior frequência do que as avaliações intercalares. E que essa informação de monitorização não seja parte de uma “estratégia de comunicação da informação” pontual e sim publicamente disponível para fácil consulta por parte da população, a qualquer momento. Provavelmente é essa a intenção, utilizando para o efeito o sítio de internet da DGS. Reforça-se a importância que assim seja.41

3.     SAÚDE DA POPULAÇÃO EM PORTUGAL – DIAGNÓSTICO

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Capítulo extenso, com pouco foco e que mesmo para o leitor gera alguma dificuldade em percecionar o que realmente é fundamental que esteja minuciosamente descrito como aconteceu com todos os dados apresentados neste capítulo. Nas 85 páginas do capítulo, “salientou-se”, “destacou-se” ou “referiu-se” um qualquer dado 65 vezes. O ser um capítulo demasiado extenso, sem transição/divisão entre tópicos, pouco sistematizado torna difícil a sua leitura.44
Sendo um documento que permanecerá por 10 anos, as imagens e gráficos que o acompanham deveriam ter sido elaborados de acordo com a formatação do documento e não parecer que foram retirados de diferentes documentos 
A meio do documento surgem os ODS, evidenciando os objetivos, por vezes os definidos nos ODS, outras vezes os países com melhor desempenho e por vezes a média da UE. Por que razão isto acontece? Qual o racional para se escolherem estes valores e não outros? 
Conflito constante entre os últimos dados/séries disponíveis/apresentados/ selecionados. Exemplo: Página 44, refere no texto os de 2021 da população em Portugal, mas informação apresentada na tabela é de 2019. 44
O capítulo 3 tem três grandes problemas que ecoam por todo o documento:- A base de comparação para as diferentes variáveis analisadas é alterada com frequência, tornando a comparabilidade e interpretação dos dados bastante difícil (existem linhas de corte tanto para valores iniciais como finais de anos muito variáveis, terminando algumas séries em 2017 e outras em 2021, a título de exemplo). É importante harmonizar as linhas de corte para início e fim de séries temporais ou, pelo menos, listar os pressupostos/razões pelas quais se analisou aquele período em específico e não o mesmo que o anteriormente utilizado para outras variáveis. – O facto de se fazer alusão à pandemia COVID-19 e seu impacto na exacerbação das necessidades em saúde destoa fortemente com o remanescente do documento, uma vez que poucos dados são analisados de forma a providenciar uma perspetiva mais completa da pandemia. Ademais, e considerando o exposto na parte introdutória do capítulo 4, quando se considera o horizonte temporal do PNS, é essencial afirmar as opções de política que presidiram ao facto de não se terem ainda dados concretos. É por insuficiência dos sistemas de informação e não se ter informação curada disponível? O que sucedeu à informação contida nos boletins diários da DGS, e como se incorporaram as discrepâncias detetadas em vários estudos académicos no processo de roll-over desta informação? Por que razão não se conseguiu agregar a mesma de modo útil a informar este PNS e melhor permitir, por exemplo, mapear os grupos etários (ou outra variável de interesse) que têm maior probabilidade de sofrer de algumas das necessidades de saúde exacerbadas, e consequentemente melhor abordar a carga de doença (burden of disease) e os DALY daí decorrentes? Todas estas questões, para além do óbvio impacto demográfico, económico, de acesso a cuidados de saúde (entre outros) da pandemia, assumem uma relevância tal que a sua omissão ou parco tratamento no âmbito deste documento perturba o leitor. Seria importante haver uma opção clara relativamente à pandemia COVID-19 – abordar ou não neste documento – e explicar o seu racional. De novo, seria completamente lícito que se fizesse esta análise em momento posterior e se deslocasse toda a discussão sobre o seu impacto para o documento aí produzido, tanto quanto não fosse como adenda ao PNS 2021-2030 aventada, por exemplo, em momento de avaliação intercalar já definido; o que não é justificável é apenas fazer reparos episódicos sem abordar uma tão óbvia e séria questão de saúde pública. – A qualidade dos dados utilizados só é referida episodicamente no capítulo 6, e não existe uma análise sumária (nem que seja como anexo) que permita aferir da mesma. Ora, considerando que por várias vezes é assinalada a parca quantidade de dados disponíveis ou a sua completude, é essencial mapear a que se deve este fenómeno – deve-se a dados omissos? A sistemas de informação que não comunicam? Existe uma grande variabilidade de dados disponíveis para as diferentes variáveis consoante a fonte de dados? Sem a existência deste anexo técnico ou de uma síntese das diversas variáveis analisadas e respetiva qualidade dos dados, avaliada de acordo com uma metodologia sólida e cientificamente validada, os exercícios estatísticos produzidos têm uma utilidade muito limitada. Afinal de contas, todos os artigos científicos começam, na componente de métodos, pela produção de estatísticas descritivas que caraterizam a fonte dos dados. Este elemento é substanciado, a título de exemplo, no capítulo 4, pelas projeções produzidas e elevadíssima incerteza subjacente, que se reflete bem na grande amplitude dos valores estimados.44
No plano é percetível a limitação existente relativa à coleta de dados em Portugal.Vale a pena realçar os seguintes aspetos:- Inexistente ou incompleta base de comparação entre variáveis, sendo esta alterada em diversos momentos. Isto impede/prejudica a análise precisa dos diversos indicadores;- Falta de posicionamento de projeção dos diversos indicadores de interesse discriminados no documento, tanto para o contexto português como de acordo com a envolvente europeia.44
O PNS adota aqui uma classificação de grupos etários clássica (0-14, 15-64, 65+ anos). Esta divisão teve, na sua génese, as considerações referentes a vida ativa da população. Sugere-se que seria mais interessante ter um critério de classificação por grupos etários com significado em termos de problemas de saúde ou intervenções do sistema de saúde em termos de prevenção e promoção da saúde (no que resultaria provavelmente um grupo etário inicial menos amplo – correspondendo aos primeiros anos de vida, e depois nas idades mais avançadas, um grupo etário onde se começassem a ter maiores sinais de carga de doença crónica, e um grupo etário final onde essa carga é muito maior). O PNS será um veículo adequado para propor e adotar classificações de grupos etários que tenham significado em termos das intervenções de saúde que se pretende considerar.44
Com o aumento da idade legal de reforma (https://dre.pt/dre/detalhe/portaria/307-2021-176075693) para 66 anos e 4 meses em 2023, bem como escolaridade obrigatória até ao 12º ano, as referências a dependentes e população ativa com as balizas temporais clássicas é desadequada (https://dre.pt/dre/legislacao-consolidada/lei/2009-34513275 – Âmbito da escolaridade obrigatória – 1 – Para efeitos do previsto no n.º 1 do artigo anterior, consideram-se em idade escolar as crianças e jovens com idades compreendidas entre os 6 e os 18 anos). A própria definição de população ativa, tal como definido pelo INE  (“População com idade mínima de 15 anos que, no período de referência, constituía a mão de obra disponível para a produção de bens e serviços que entram no circuito económico (população empregada e desempregada).”) coloca a questão de “disponível”: se não houver abandono escolar, a grande maioria dos jovens com 18 anos ou menos estará ainda a concluir a escolaridade obrigatória e como tal não “disponível” para o mercado de trabalho. A população ativa é definida como população que está empregue ou à procura de trabalho. População inativa inclui estudantes, reformados (mesmo que abaixo de 65 anos), pessoas com incapacidade, etc. Assim, as afirmações sobre população ativa não são totalmente exatas, e será preferível encontrar uma outra formulação para apresentação das ideias centrais, até porque mais do que um índice de dependência baseado na população ativa, interessa ter um índice de necessidades de saúde (cujas balizas temporais podem ser distintas, e provavelmente serão, das “importadas” de outros contextos, nomeadamente segurança social e emprego).48
“O índice sintético de fecundidade (ISF) cresceu (sendo de 1,42 em 2019)” em Portugal.Vs“Na UE as mulheres têm tido, em média, menos filhos, sendo que o ISF tem sido inferior a 2,1 crianças por mulher. Em 2013 e 2018, o ISF na UE foi de 1,55 e 1,56 crianças por mulher, respetivamente.”.Se o ISF é o número médio de crianças vivas nascidas por mulher em idade fértil e se Portugal tem um ISF de 1,42, a média da EU de 1,55 não é menor.51
Não é possível percecionar as diferenças de forma tão expressiva no texto como nas tabelas, no que diz respeito à evolução dos óbitos e respetivas taxas de mortalidade infantil, neonatal, perinatal e fetal, podendo inclusivamente induzir em erro o leitor. As variações apresentadas ao longo dos anos são, salvo raras exceções, em volta de valores muito próximos entre si e a variação percentual daí resultante dificilmente será relevante do ponto de vista da Saúde Infantil.58
A evolução no Quadro 4 é mais determinada pelo número de gravidezes que têm lugar do que pelo funcionamento do sistema de saúde. As oscilações observadas no quadro 4 não têm depois correspondência no Quadro 5. Sugere-se que seja apenas apresentado o Quadro 5, ou que a ordem de apresentação dos Quadros seja a inversa da atual.58
Sobre o objetivo 3.2, as metas têm ambição embora realistas. Obrigam a que nos próximos 10 anos se faça melhor dos que nos 10 anos passados. Não se torna claro do PNS como se pretende alcançar essas metas (tanto mais que ganhos adicionais serão provavelmente mais difíceis de alcançar quanto melhor for a situação de partida).60
Sobre o objetivo 3.1, a definição de metas quantitativas muito precisas não é particularmente útil dado os baixos números envolvidos, em que pequenas variações absolutas levam a variações percentuais grandes – de acordo com o PNS, entre 2011 e 2016 houve 4 a 6 óbitos maternos por ano, e entre 2017 e 2019, este valor foi de cerca de 15 óbitos maternos. Estas variações poderão ser meramente fortuitas e não refletir a intervenção e o funcionamento do sistema de saúde, dados os baixos valores. Do mesmo modo, compreende-se a referência ao indicador de “proporção de nascimentos (nados-vivos) assistidos por pessoal de saúde qualificado”, mas tomar o absoluto 100% como objetivo ignora aleatoriedade que possa existir (seja por razões completamente fortuitas e alheias ao sistema de saúde, seja eventualmente por decisão própria da grávida).63
Sobre o objetivo 3.4, considera-se que será mais apropriado separar, para efeitos do PNS, a redução da mortalidade prematura por doenças não transmissíveis via prevenção e tratamento, da promoção de saúde mental e bem-estar, separação que é aliás assumida nos indicadores sugeridos. Nos indicadores, deixa-se o desafio de encontrar um indicador que não seja o suicídio. 67
Sobre o objetivo 3.6, deverá ser tornado claro que a capacidade de assegurar as reduções de taxa de mortalidade evitável por acidentes rodoviários não está no sistema de saúde. 70
Considera-se que seria adequado estabelecer objetivos no PNS quanto aos tumores malignos, de preferência em linha com as iniciativas em curso a nível da União Europeia. Não há aparente motivo para serem ignorados objetivos relevantes, mesmo que não constem explicitamente dos ODS.70
Na nota de pé de página 15, afirma-se que a desigualdade entre sexos “poderá” explicar-se pela maior mortalidade. Considera-se que deverá haver um pouco mais confiança nas explicações, ou então colocar sobre a forma de conjetura, e remeter para ambiguidades que surjam na literatura científica.72
É afirmado que “os anos de vida saudável aos 65 anos têm sido mais elevados no sexo masculino”, embora aqui haja um provável elemento de seleção – a probabilidade de atingir 65 anos, com carga de doença que reduza os anos de vida saudáveis, é menor para o sexo masculino. Ou seja, ao melhorar-se a longevidade no sexo masculino é provável que este indicador piore, por esse maior longevidade ser eventualmente conseguida pela sobrevivência até depois dos 65 anos de pessoas com carga doença que limitam os “anos de vida saudável”?74
Sobre o objetivo de “anos de vida saudável à nascença por sexo”, a Figura 41 que lhe dá apoio de interpretação, apresenta dois anos (2012 e 2013) em que Portugal tem melhor indicador que a média da UE27. Estas oscilações, se não tiverem explicação cabal, deixam a questão de saber se a evolução que se venha a encontrar é decorrente de fatores fortuitos, de aspetos metodológicos ou de evolução real.(um pormenor técnico é se o ponto de referência não deveria excluir Portugal e ser UE27-Portugal, de forma a meta não envolve endogenamente os resultados portugueses – cada vez que nos aproximamos da média UE27 fazemos essa mesma média subir).74
Sobre o objetivo 3.3, questiona-se a razoabilidade do “zero absoluto” como meta. Em termos aspiracionais, compreende-se o objetivo de infeção zero. Em termos de indicadores, será improvável que seja exatamente zero casos, e corre-se o risco de tomar qualquer valor estritamente positivo como sendo não atingir o objetivo. Ter um valor menor ou igual a X de novos casos poderá ser um compromisso (atualmente, a meta tem X = 0).86
Sobre o objetivo 1.2, há que atender a que as linhas de pobreza frequentemente utilizadas são estabelecidas em termos relativos, pelo que quedas generalizadas no rendimento médio da população podem baixar a pobreza. Adicionalmente, tomar como indicador a “proporção (%) da população cujo rendimento equivalente se encontra abaixo da linha de pobreza nacional, por sexo e grupo etário” coloca a responsabilidade sobretudo noutras áreas de intervenção pública e não no campo da saúde em particular. Sugere-se que seja declinado este objetivo em termos de despesas de saúde catastróficas, que de forma simples são despesas de saúde feitas diretamente pela população que levam, ou reforçam, o agregado familiar para uma situação de pobreza. Uma referência útil é: “Catastrophic health spending in Europe: equity and policy implications of different calculation methods” (https://www.euro.who.int/en/health-topics/Health-systems/health-systems-financing/publications/2018/catastrophic-health-spending-in-europe-equity-and-policy-implications-of-different-calculation-methods-2018)93
Sobre a evolução das desigualdades de rendimento em Portugal e evolução do índice de Gini, sugere-se a consulta dos trabalhos de Carlos Farinha Rodrigues e colegas.95
Sobre o objetivo 2.1, não se compreende porque é apenas considerado um indicador associado à população adulta.99
Sobre objetivo 3.5, sobre o consumo de álcool, em alternativa à referência ser o valor médio de consumo, poderá ser mais interessante o conhecimento sobre consumo nos grupos mais consumidores. Um mesmo valor médio pode resultar de uma distribuição de consumos bastante diferente. O uso nocivo de álcool encontra-se associado a consumos extremos, que podem levar a um valor médio baixo se a maioria da população não consumir, e o consumo estiver concentrado num grupo específico. Compreende-se que outros indicadores que não o valor médio de consumos de litros de álcool puro per capita (pessoas com 15 ou mais anos) possam não estar facilmente disponíveis. Adicionalmente, o consumo médio não informa necessariamente sobre o abuso de outras substâncias.101
Sobre o objetivo 3.a, é proposto como indicador relacionado com consumo de tabaco a “proporção (%) de fumadores com 15 ou mais anos relativamente ao total da população com 15 ou mais anos”. Considera-se que este deveria ser complementado com um indicador definido de forma similar para a população entre 15 e 25 anos (ou outro intervalo de tempo, que foque na iniciação de consumo). Um objetivo de consumo zero absoluto é irrealista (mesmo considerando um longo prazo que ultrapasse o horizonte de 2030). 101
Sobre o objetivo 7.1, a leitura do objetivo é, e bem, mais geral que o ODS. Deveria ser expressamente referido como deverá ser pensada a intervenção para melhoria deste indicador, dado que falar apenas em preços de energia é obviamente redutor, e a capacidade de definir e de executar intervenções relevantes neste campo extravasa a área da saúde. A mesma observação pode ser realizada a propósito dos objetivos 3.9, 6.1, 6.2 e 13.2 e respetivos indicadores.106, 107, 108
Numa tónica de sustentabilidade, tantas vezes mencionada ao longo do documento, que não pode ser dissociada dos desafios climáticos que enfrentamos, faltam indicações ou planos focados em assuntos tão simples quanto a gestão de resíduos dos cuidados de saúde que, pela sua natureza e quantidade necessidade de uma abordagem particular e sensível às suas necessidades.108
Esforços relativos à criação e suporte de estruturas de apoio a uma população crescentemente envelhecida e aos problemas de saúde mental (psicológica e psiquiátrica)109
Negligência do acolhimento a refugiados, populações migrantes e outras atualmente excluídas dos cuidados de saúde112
Pouco esclarecimento sobre como se tenciona obter a melhoria de acesso aos cuidados, faltando nomeadamente uma atenção especial a:- identificar quem está fora do circuito de cuidados de saúde e quantificação- levantamento dos principais fontes de iniquidade e fatores de risco para agravamento desta- linhas gerais sobre como fomentar melhoria no acesso (e continuidade do seguimento)112
Sobre o objetivo 3.c, o foco exclusivo na intensidade de médicos por 1000 habitantes para acompanhar o acesso a cuidados de saúde não acomoda a possibilidade de diferentes modalidades de acesso, nem a evolução dos sistemas de saúde. Em particular, uma mesma intensidade de médicos poderá ter maior ou menor capacidade de garantir que as necessidades em saúde são satisfeitas, dependendo do desempenho geral do sistema de saúde e do conjunto global de soluções do sistema de saúde para responder às necessidades da população. Indicadores com base em tempos de espera (em diferentes pontos do percurso do doente) e com base em necessidades não satisfeitas darão uma visão mais próxima da realidade de acesso a cuidados de saúde. Sugere-se a utilização de indicadores mais próximos do que se encontra discutido no documento “Benchmarking access to healthcare in the EU” (https://ec.europa.eu/health/system/files/2019-11/opinion_benchmarking_healthcareaccess_en_0.pdf)112
Para cada indicador definido, deverá ser indicada forma de recolha, elemento de intervenção antecipado e área responsável por essa intervenção (colocada sobre forma de tabela num anexo). 

4.                      PROJECÇÕES E PROGNÓSTICO

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Projeções para 2030 – novamente o horizonte temporal de 10 anos. Seria relevante introduzir objetivos intermédios para medição e monitorização dos objetivos.137
Embora o envelhecimento da população tenha sido descrito no documento como uma situação com potencial impacto nas projeções de mortalidade e morbilidade e que deve ser considerado em termos prognósticos, não há nenhuma demonstração de tentativa de melhorar a qualidade das projeções dos problemas de saúde através da incorporação dessa realidade nas projeções – nomeadamente, e no limite, com a aplicação de métodos análogos para estudo e prognóstico da evolução da estrutura etária da população.137
A noção de que existirá um impacto positivo e sinérgico de estratégias de saúde e medidas de prevenção primordial e primárias “iniciadas nas últimas décadas em Portugal” e simultaneamente assumir ser impossível predizer o seu impacto nas projeções dos problemas de saúde é preocupante, porque poderá significar uma de duas realidades: não existem dados (e isso implica a implementação de estratégias e medidas avulso e sem objetivos definidos ou avaliação feita) ou existem dados mas não estão acessíveis publicamente. Qualquer dessas realidades levanta dúvidas sobre a capacidade de elaborar e implementar estratégias a 10 anos no âmbito de um PNS. Caso não existam dados, isto deverá ser assumido, e deverá ser parte do plano a intenção acompanhada das diferentes ações de forma a estes serem gerados.137-138
Pandemia e condicionamento negativo de doenças – seria interessante, se possível: Efeitos de longo prazo da COVID-19 e impacto na qualidade de vida;Incorporação de modelos de ajustamento e projeção para outras doenças infeciosas que poderão existir (considerar toda a evidência e conhecimento adquirido no contexto desta pandemia)138
Seria relevante a introdução de mecanismos de prevenção de problemas de elevada magnitude. Em vez de atuar na existência, vamos atuar na sua prevenção/diagnóstico atempado. Ao longo do documento apenas se observa foco no tratamento e controlo de problemas já existentes.Custará mais prevenir do que tratar? Faltará acompanhamento?138
Na descrição metodológica foi referida a retirada de observações, não usadas no processo de construção do modelo de previsão, para avaliação do erro de previsão (sendo sugeridas várias medidas). Contudo, quando são apresentados os resultados da estimação, não há qualquer referência a essa “qualidade” do modelo de previsão, sendo que consoante o indicador é presumível que seja muito diferente (aspeto que se infere indiretamente de os intervalos de confiança da previsão serem relativamente estreitos em alguns casos e muito amplos noutros casos). 
Já se encontram disponíveis diferentes dados relativos ao impacto da pandemia no sistema de saúde, sobretudo no acesso e no diagnóstico de determinadas patologias. Segundo relatos informais, espera-se que os índices de case-mix dos hospitais venham a revelar que a complexidade das intervenções no âmbito da oncologia se encontra a aumentar. O Registo Oncológico Nacional deverá já ter dados dos diagnósticos que não foram realizados. A redução do número de AVC, EAM, entre outros, revela que estes episódios não foram sinalizados. No entanto, nenhum destes dados é utilizado para o prognóstico. Deverão ser encetados todos os esforços no sentido de compreender o real impacto da pandemia da saúde dos cidadãos até à próxima data de revisão do PNS (2025). 
Qual o impacto destas projeções na capacidade do sistema de saúde tratar estes doentes?  
Não há qualquer menção neste capítulo ao impacto potencial (apesar de quase certo) da resistência a antimicrobianos (5M mortes em 2019, projecções na casa dos 10M em 2050, a nível global, https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)02724-0/fulltext ). No documento todo, há uma menção tímida a este problema no quadro 43, no contexto de One Health, que se afigura como manifestamente pouco.166

5.     OBJETIVOS PARA O ALCANCE DA SAÚDE SUSTENTÁVEL

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Relativamente ao ponto sobre a fixação de objetivos por determinante major de problemas de elevada magnitude: se não se consegue fazer isto, para que serve um Plano Nacional de Saúde? E, tendo sido encontradas limitações, porque não se elencam as fontes consultadas e onde as mesmas foram encontradas? Não existiam revisões sistemáticas, por exemplo, que pudessem alimentar este exercício, tanto quanto não seja por extrapolação para adaptação à realidade portuguesa? Ainda que o consenso de peritos seja uma forma de evidência científica aceite, o arranjo institucional encontrado e a alegada importância deste exercício fazem com que seja importante justificar bem esta componente.168
“não foi possível fixar objetivos por determinantes major de problemas de elevada magnitude.” – Qual a sugestão para a resolução dos mesmos?“(…) objetivos por problemas de saúde que tiveram, no passado, uma elevada magnitude e atualmente se encontram controlados graças a intervenções efetivas e sustentadas no tempo.” – E no caso dessas intervenções não serem efetivas no futuro? O que se sugere?168
Fixar um objetivo exclusivamente em função do valor projetado a 2030 (não tendo em conta a dimensão da variabilidade inerente à projeção) torna a apresentação do intervalo de confiança para cada estimativa um exercício puramente académico.169
Dos 26 objetivos de saúde relativos às necessidades de saúde por problemas de elevada magnitude fixados para 2030, em Portugal, 24 estão diretamente ligados com a taxa de mortalidade e apenas 2 com a diminuição da incidência. Sendo referido anteriormente que muitos destes problemas são evitáveis/tratáveis, não deverá o objetivo estar também a montante na sua prevenção? Só desta forma se assegurará a sustentabilidade da saúde. 170-171

6.     ESTRATÉGIAS DE INTERVENÇÃO PARA A SAÚDE SUSTENTÁVEL

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Menção demasiado rápida a Comunicação e Literacia em Saúde. O capítulo Comunicação Estratégica (9) refere-se, compreensivelmente, à comunicação do próprio PNS, mas isto deixa o documento sem qualquer referência à comunicação em saúde – mais uma falha nas aprendizagens expectáveis da pandemia. Simultaneamente, não há referência a métodos de abordagem ao aumento e consolidação da literacia em saúde da população. Estes dois pilares de sustentabilidade em saúde (integrados no grande chapéu da prevenção) deviam ser apontados como prioritários, se não transversais aos outros desígnios estratégicos.176
Se é aqui feita uma menção explícita à utilização de dados de melhor qualidade e esta permitirá desenvolver uma saúde pública de precisão – implicando, segundo se lê, uma saúde pública que produza melhores resultados em saúde para a população – porque razão é referida apenas neste ponto, e não nas metodologias de caraterização e prognóstico, onde seria efetivamente mais pertinente para o exercício do PNS e permitindo melhor identificar onde se encontram as principais lacunas identificadas? Mais uma vez, a omissão das lições aprendidas durante a COVID-19 neste particular torna-se confrangedora, uma vez que a DGS publicou rotineiramente um boletim diário contendo dados sobre a mesma e que os sistemas de informação foram, em várias instâncias, referidos como casos de sucesso. Queremos, portanto, dizer que nada se aprendeu no robustecimento do sistema de informação de saúde?177
A ausência de uma cifra monetária com o investimento previsto para vários campos do PNS, mas particularmente para o investimento em recursos humanos na saúde (sendo que este já foi estimado noutras sedes) derrota completamente o propósito desta menção, tornando-a num lugar-comum sem oferecer soluções práticas ou alternativas. E, se não é para o fazer, para quê mencionar este aspeto no PNS?178
A ausência de um contrafactual baseado na análise sumária do que se fez até agora nos campos elencados e de como compara face às necessidades futuras retira seriedade e transforma este exercício em algo comparado a uma wishlist.178
Estratégias de intervenção para a saúde sustentável – relevantes, porém pouco concreto relativamente ao que deveria ser feito. Seria interessante a utilização de métricas ou mecanismos de fazer cumprir as estratégias delineadas.Esta limitação é particularmente evidente no ponto de melhoria de acesso e intervenção em que já todos conhecemos as necessidades, mas que continuam a existir desigualdades de demoras no mesmo.178-179
As estratégias são definidas de forma excessivamente genérica, sem qualquer referência a quem compete o seu desenvolvimento, de que forma, em que horizonte temporal, e para que objetivos se espera que contribuam. 
As estratégias definidas não são colocadas em contexto de institucional e de mobilização de recursos. Caberia neste capítulo a apresentação do quadro de decisão utilizado para atribuição dos recursos disponíveis, e realização das escolhas que venham a ser necessárias. A componente de “Preparar e antecipar o futuro” pode beneficiar de uma revisão que incorpore de forma explícita a noção de resiliência de sistema de saúde (“Assessing the resilience of health systems in Europe” https://ec.europa.eu/health/system/files/2021-10/2020_resilience_en_0.pdf, “The organisation of resiliente health and social care following the COVID-19 pandemic” https://ec.europa.eu/health/system/files/2020-12/026_health_socialcare_covid19_en_0.pdf 

7.     RECOMENDAÇÕES PARA A IMPLEMENTAÇÃO

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A referência a um dado estatístico pertinente derivado da Conferência para o Futuro da Europa sem o contextualizar no âmbito mais alargado da infeção por COVID-19 enquanto pandemia e emergência de saúde pública, assim como do sucesso do esforço de vacinação, atribui um caráter semipolítico a esta componente num documento que deveria primar pelo rigor científico.185
Relativamente à pandemia de COVID-19 enquanto gerador de incerteza, é importante realçar que a pandemia é apenas uma das fontes de incerteza; uma bem maior parece ser, de acordo com a própria DGS ao longo do PNS, a qualidade dos dados e dos sistemas de informação que os armazenam e processam.185
Nenhuma destas recomendações ilustra ações concretas, pecando por uma definição ambígua e exequibilidade duvidosa e não sindicável. Assim, as recomendações de implementação constituem, uma vez mais, lugares-comuns sem sentido prático ou concretização material antecipável.188
Não é claro a quem as recomendações se destinam, as que estão diretamente ligadas com o âmbito deste PNS, nem tão pouco aquilo que já foi feito. Cada recomendação deveria conter as ações concretas que decorrem das partes anteriores do PNS. Algumas das recomendações não decorrem da apresentação realizada nas partes anteriores do PNS (exemplos: recomendação 6. A valorização da informação, da comunicação, da ciência, do conhecimento e da inovação; 9. O desenvolvimento de uma nova abordagem ao financiamento e contratualização em saúde). 188
As iniquidades em saúde surgem referidas no início do PNS e na última recomendação (10. A construção de um “Pacto Social para a Década”, centrado na saúde sustentável e na redução das iniquidades em saúde”. Contudo ao longo das perto de 180 páginas entre esse início e a Recomendação 10 não há o desenvolvimento de caracterização dessas iniquidades, dos instrumentos para as reduzir e de quem deverá ter essa incumbência.      
As recomendações condenam-se à sua própria irrelevância por não indicarem ações concretas e diretamente ligadas aos objetivos expressos no documento.  

8.     PLANO DE MONITORIZAÇÃO E AVALIAÇÃO

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Obtenção de dados e informação – para além dos indicadores de avaliação dos objetivos de saúde, seria importante a criação de mecanismos de captura de dados em saúde de forma consistente e continuada, de maneira a garantir a comparabilidade e replicação de possíveis estudos.194
Sistemas de Informação– Em seguimento ao ponto anterior, uma nota sumária sobre a imaturidade e insustentabilidade dos sistemas de informação em saúde. Em Portugal, a interseção da obsolescência tecnológica, com a falta de inter-operabilidade entre os sistemas e a vontade de acrescentar complexidade, como algoritmos de inteligência artificial, cria um problema emergente e perigoso. Deste somatório não poderá resultar simultaneamente uma manutenção e proteção dos dados já recolhidos pelos utentes, a acessibilidade aos mesmos e a sua utilização para benefício dos utentes.- É paradigmático o exemplo de como o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE v2), atualizado de forma profunda em 2018, não foi capaz de cumprir o seu principal objetivo quando surgiu a epidemia de COVID-19. Mesmo a ferramenta Trace COVID-19, que tentou servir como plataforma de acompanhamento dos casos e do rastreio de contactos, teve origem no trabalho desenvolvido por médicos internos de Saúde Pública, sem o orçamento e recursos da Direção-Geral da Saúde.194
Indicadores definidos (como taxas de mortalidade e números de casos por algumas doenças de notificação obrigatória) são insuficientes para refletir adequadamente o estado da saúde em Portugal:- Não considera a qualidade de vida, nem o tempo de vida associada a doença ou disability– Não avalia diretamente a qualidade dos programas de prevenção- Não inclui medidas de avaliação de desempenho dos programas de rastreio oncológico (e.g., número de convocatórias, número de consultas efetivas, número de pessoas com resultado do teste de rastreio, …)- Exclui medidas sobre o acesso e frequência de cuidados de saúde, como percentagem da população sem médico de família atribuído, principalmente para grupos marginalizados e/ou minoritários196-199
Ao fixar como objetivo a projeção a 2030, ocorrem situações indesejáveis em que o objetivo em saúde para 2030 é de aumento de indicadores negativos, como são exemplo as taxas de mortalidade por tumor maligno da laringe, traqueia, brônquios e pulmão em ambos os sexos e para todas as idades e inferior a 75 anos.197
Fixa-se o objetivo de 98.0% de alojamentos servidos por drenagem de águas residuais, quando se desconhece a proporção na RA Açores e numa total ausência de estratégias ou recomendações com potencial de atingir esse objetivo em qualquer janela temporal. Este exemplo ilustra uma recorrência no PNS, de uma diferença significativa entre Portugal Continental e as Regiões Autónomas em vários indicadores, e considera-se que seria apropriado ser apresentado no PNS o caminho de convergência em vários elementos determinantes da saúde em todo o território nacional.199
No que refere à qualidade e segurança dos cuidados, de modo a verificar o cumprimento dos pressupostos intangíveis e os dados comunicados (frequentemente por introdução destes em sistemas informáticos), deve aumentar-se a frequência e o rigor de auditorias não anunciadas dos processos de prestação de cuidadosAdicionalmente, uma reforma dos sistemas de informação, que permitisse uma recolha mais correta e rigorosa dos dados, com menos erros e redundâncias, mais responsabilização e granularidade dos acessos aos mesmos, bem como com maior sustentabilidade e robustez a ataques internos e externos, torna-se absolutamente necessária, numa altura em que a maioria dos sistemas hospitalares estão alicerçados numa ferramenta com duas décadas de existências, múltiplos problemas estruturais e uma redução do número de pessoas que percebe a forma como esta está tecnicamente organizada e construídaEstas alterações poderiam acompanhar um mecanismo que permitisse, dentro das mesmas regras definidas correntemente, a utilização dos dados em saúde, com a devida autenticação, responsabilização e rastreamento, incluindo para fins de investigação científica, cumprindo os princípios da recolha seletiva e mínima dos dadosSeria também relevante uma reforma sobre a medição da segurança dos utentes e da qualidade dos cuidados, nomeadamente através de definição de métricas adequadas, indo além de uma perspetiva operacional (de quantificação de procedimentos/intervenções) e focando nas consequências e ganhos em saúde. O foco na redução de, por exemplo, de listas de espera para cirurgias, quando não existe avaliação da qualidade das operações suplementares, pode permitir que o resultado destas seja inferior ao expectável.Mais ainda, acoplar as alterações anteriormente mencionadas à reestruturação dos sistemas de incentivos, nos diferentes níveis de prestação de cuidados e de prevenção, permitirá potenciar os comportamentos que levaram a resultados positivos (incluindo alguns que poderão ir além das metas previstas), bem como penalizar e evitar aqueles que conduzam a desfechos de menores ganhos em saúde. 

9.     PLANO DE COMUNICAÇÃO ESTRATÉGICA

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Nos objetivos de comunicação, são definidos 5, sendo que do quadro 45 se depreende que envolver e participar dizem respeito ao mesmo objetivo.201-202
Não é definido o que é um “multistakeholder201
Na óptica do “Avaliar o progresso”, poderia ser criado no site do PNS uma secção destinada à monitorização constante do PNS, tal como acontece com os dados existentes no Portal da Transparência.202
Objetivos vagos, sem medidas de sucesso definidas, muito repetidas pelas diferentes ações, e.g., “Criar redes colaborativas e relações de confiança” e “Mobilizar interna e externamente Reuniões e contactos”202-206
Foco em estratégias de comunicação tradicionais, cujos impactos não foram medidos ou divulgados, sem aparente sofisticação estratégica, nomeadamente no que concerne a adaptação da mensagem para diferentes públicos-alvo204

10.  OUTROS COMENTÁRIOS

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Apenas 5 dos intervalos de confiança a 95% para as projeções a 2030 (convertidas em objetivos para 2030) não incluem o último valor observado. Quer isto dizer que, caso o valor observado desse indicadores se mantenha (relativamente) constante em todos os 37 objetivos fixados, apenas 5 poderão ser vistos como em incumprimento dos objetivos traçados para 2030 na primeira avaliação intercalar em 2025.ANEXO 3 (253-256)

02 de Maio de 2022, Lisboa, Londres, Porto, Vila Real.

Nota: As opiniões expressas refletem apenas a visão dos autores do documento e não correspondem necessariamente a posições das instituições com que se encontram afiliados.


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a propósito das urgências hospitalares (no ano de 2022)

A pressão atual sobre os serviços de urgência hospitalar não é algo novo. É um problema cíclico (surgiu praticamente todos os anos em Dezembro, Janeiro e/ou Fevereiro, antes da pandemia alterar este padrão), e desse modo tem que receber uma resposta cíclica e pontual, durante o período de maior procura. Ter a posição de “culpar as falsas urgências” é uma falsa resposta.

Na decisão de recorrer a uma urgência hospitalar, as decisões individuais antes de ir à urgência são influenciadas por vários elementos: a) o que se pensa que possa ser o problema, com um desconhecimento sobre a real situação de cada um; b) a existência, ou não, de outra resposta, além da urgência hospitalar e que seja equivalente do ponto de vista do cidadão, seja em conforto de hora de atendimento e/ou facilidade de deslocação seja em termos de capacidade de resolução; c) custos que tenha, ou não tenha, cada uma das opções disponíveis; d) hábitos existentes de recurso a serviços de saúde.

O argumento das “falsas urgências” consiste em afirmar que um número razoável de casos não deverá ser tratado no contexto de urgência hospitalar. Essa afirmação é provavelmente verdadeira, só que esse conhecimento só se tem depois da pessoa ter sido observada. Uma falsa urgência depois de observação não é necessariamente uma falsa urgência antes de observação (pela falta de conhecimento que o cidadão terá para identificar o grau de gravidade da sua situação). De outro modo, se o cidadão souber que não deve ir à urgência hospitalar e mesmo assim tomar essa decisão, então será melhor chamar-lhe “urgência recreativa”.

A solução aparente para as falsas urgências, aquelas baseadas numa falta de informação do cidadão, será o recurso a outros pontos de contacto com o Serviço Nacional de Saúde, antes de ir à urgência hospitalar. Exemplos desses outros pontos de contacto são a linha de atendimento do SNS e os cuidados de saúde primários. 

Para perceber a dimensão das falsas urgências, uma forma possível de o fazer é olhar para os casos que são chamados de falsas urgências segundo a sua origem – pessoas que tenham sido remetidas (referenciadas) para a urgência hospitalar por decisão dos cuidados de saúde primários, depois de observadas, não deverão ser consideradas como “falsas urgências” se aceitarmos que a decisão clinica depois de observação é a adequada. Também pessoas que passam pela linha SNS24 e são referenciadas para a urgência hospitalar não serão “falsas urgências” unicamente por decisão própria, pois há um processo de avaliação mesmo que não seja de avaliação direta. Assim, se tomarmos como indicador de falsa urgência a atribuição de pulseira verde ou azul na triagem hospitalar à entrada, será de esperar, de acordo com estes argumentos, que a percentagem de pessoas com essas cores quando a decisão de ir à urgência é apenas da própria pessoa fosse muito superior do que é essa percentagem nos casos enviados a partir das observações nos cuidados de saúde primários, ficando eventualmente no meio as situações que têm origem na linha telefónica do SNS24. 

O trabalho de Patricia Alves da Rocha,  A Procura de Cuidados de Saúde Urgentes em Portugal, realizado na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, tem, para o ano de 2019 num hospital central do Porto, antes da pandemia, uma proporção de pulseiras verdes e azuis em pessoas que surgiram na urgência hospitalar por decisão própria de 35%, essa mesma proporção nas pessoas que foram à urgência hospitalar depois de terem ido aos cuidados de saúde primários foi de 31%, e nos casos que foram à urgência hospitalar por indicação da linha SNS24, essa proporção foi de 23%. Ou seja, mesmo nos casos em que há um contacto prévio com o Serviço Nacional de Saúde chegam às urgências hospitalares situações que recebem pulseiras com as cores normalmente usadas para falar de “falsas urgências”. Tal significa que não é assim tão simples designar o que seja “falsa urgência” (não se pode inferir destas proporções muito sobre as decisões de referenciar ou não para a urgência hospitalar, porque não se conhece, neste trabalho, quantas pessoas foram observadas nos cuidados de saúde primários ou atendidas na linha SNS24 e que não foram enviadas às urgências hospitalares; o trabalho da Patricia Alves da Rocha procura metodologicamente tratar esse aspecto, pelo que remeto para o texto o detalhe que o leitor quiser procurar). Não sei também quantos casos de urgência que surgem nos cuidados de saúde primários são referenciados para as urgências hospitalares (essa informação está, porém, de certeza algures no sistema informático do SNS), e poderá tentar perceber-se se depois das pessoas terem sido enviadas para a urgência hospitalar depois de terem ido aos cuidados de saúde primários, acabam por, na situação seguinte em que sentem necessidade de contacto com SNS, “saltar” o passo desse contacto com os cuidados de saúde primários e vão diretamente às urgências hospitalares. Naturalmente, o mesmo pode ser dito sobre o uso da linha SNS24.

A mensagem central é que provavelmente as pulseiras azuis e verdes não devem ser tidas como sendo todas “falsas urgências”, e que provavelmente será necessário um trabalho mais detalhado sobre os processos de decisão das pessoas, das possibilidades de atendimento noutros locais, e da análise das práticas de referenciação para a urgência hospitalar, para se perceber como poderão essas decisões serem alteradas. Também será importante compreender se estes decisões são diferentes em períodos de pico de gripe ou nos meses mais frios. 

Antes do próximo Inverno ainda há tempo para se analisar isto tudo, e permitir ao SNS procurar as respostas que ciclicamente tenham que ser montadas para evitar as situações de maior congestão. 


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a propósito do dia mundial da saúde

completando o post anterior, e aproveitando algumas ideias expressas na SIC Noticias desta manhã, e por o Presidente da República ter focado o sector da saúde no discurso de tomada de posse do novo governo, deixo aqui mais alguns comentários.

Para resolver, ou tentar resolver, há dois problemas centrais no SNS que vêm de antes da COVID-19, e uma oportunidade importante com o PRR.

Os problemas são os habitualmente reconhecidos: a) ter capacidade necessária para o SNS cumprir os seus objetivos – ter equipamentos, unidades abertas à população, e sobretudo profissionais de saúde no número certo e no sítio certo (nada de novo); b) ter capacidade financeira e capacidade de gestão – evitar a política de dar pouco para que não seja mal gasto – uma melhoria de gestão e orçamentos realistas é o par necessário para a dança, sendo que o problema tem sido de quem aparece primeiro, a galinha ou o ovo. O tempo da pandemia mostrou que pelo menos alguns hospitais (é no sector hospitalar que a pressão financeira é maior, captada pelo volume de pagamentos em atraso) é possível ter maior autonomia e boa gestão.

É natural que nas próximas semanas se volte a falar, na discussão à volta do orçamento do estado, no acesso da população a cuidados de saúde e na necessidade de médicos de família. A principal dificuldade é que não é de agora o problema de garantir que o SNS tem a sua espinha dorsal de médicos de familia reforçada e a funcionar plenamente. Creio que já se aprendeu (espero que se tenha aprendido) que não é uma questão de abrir concursos para recrutamento. E por isso não basta pensar que há dinheiro do PRR (que tem limitações quanto a ser usado em recursos humanos).

O paradoxo potencial nesta discussão é ter fundos para equipamentos e estruturas e não ter depois os profissionais de saúde essenciais para prestar apoio à população de forma continuada (não nos próximos 6 meses ou dois anos, e sim nas próximas décadas).

O PRR permite aproveitar oportunidades importantes, mas não no recrutamento de médicos de família. Talvez, no campo da saúde, a oportunidade mais importante seja o espaço digital de dados de saúde. numa lógica também de esforço europeu, procurando-se ter um registo eletrónico de saúde global para cada cidadão (e não apenas na relação do cidadão com o Serviço Nacional de Saúde). Aqui, do lado do SNS, a SPMS tem as competências e provavelmente a ambição de participar e desenvolver esta área. Mas vai ter a pressão de necessitar de especialistas técnicos que cruzem saúde com sistemas digitais de dados, software e hardware, comunicações e compressão de informação, cibersegurança, interface com os utilizadores, etc. Esses profissionais vão ter um acréscimo de procura dos seus serviços no sector privado também, e para eles o “mercado de trabalho” será pelo menos europeu. É mais um desafio ainda não totalmente destapado.


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A propósito do novo Governo

Recebi há poucos dias algumas perguntas a propósito do novo Governo, e decidi partilhar aqui as respostas, para discussão com quem quiser (e ainda antes de ler com cuidado o programa de Governo)

a) qual é a tua visão sobre a realidade atual da saúde no nosso país (após mais de dois anos de pandemia e com uma guerra a decorrer na Europa)?

Os problemas de antes da pandemia continuam depois da pandemia, não há grande alteração neste campo. Continua-se com as mesmas dificuldades, acrescidas com um “cansaço” adicional dos profissionais de saúde decorrente do esforço da pandemia, e a necessidade cada vez maior de renovação de equipamentos.Também a componente financeira do SNS não teve melhorias, apesar do esforço financeiro realizado (que seria melhor fazer no inicio do ano e não através de verbas extraordinárias no final do ano).

Do lado positivo, o esforço realizado durante a pandemia mostrou algumas possibilidades interessantes de evolução, que devem ser experimentadas mesmo fora do contexto de emergência criado pela pandemia: autonomia na gestão hospitalar (retomando uma vez mais o bom exemplo do H. São João, do qual se devia aprender os fatores de sucesso para replicar noutros locais o que for replicáveis), a capacidade dos cuidados de saúde primários aguentarem na sua capilaridade o seguimento da população, o desenvolvimento da telemedicina (requerendo uma clarificação do SNS quanto ao que e como paga), o desenvolvimento da hospitalização domiciliária. 

b) Quais são os passos que não se deviam falhar agora sob pena de mais tarde pagarmos um preço muito elevado (como termos que escolher que a partir de determinada idade não se fazem determinados tratamentos inovadores e dispendiosos)?

Tocando apenas em três prioridades essenciais, porque ter muitas prioridades significa não dar prioridade: atribuição de médico de familia a todos os residentes em Portugal. Medida sistematicamente anunciada por praticamente todos os ministros quando tomam posse, mas que depois desaparece da atenção na sucessão de concursos abertos, que preenchem vagas, e em que as saídas subsequentes voltam a fazer crescer o problema. É necessária uma atenção mais contínua, no recrutamento e na retenção das pessoas. Procurar novas formas de resolver a falta de acompanhamento regular da população, explorando a possibilidade de equipas de família e ouvindo propostas de solução por parte dos médicos de família (incluindo pedindo ideias que não impliquem gastar mais). Segunda prioridade, contas certas na saúde – significando fechar de vez o ciclo de pagamentos em atraso, talvez seja altura de finalmente reconhecer a boa gestão que seja feita, desde que lhe sejam dadas as condições de gestão, e substituição rápida de equipas de gestão que se revelem desadequadas. Terceira prioridade, definir uma política de recursos humanos, para os vários grupos profissionais da saúde, que passem mais pela definição de uma trajetória profissional atraente nas unidades públicas (e que não se resume a pagar mais). 

c) Como tornar o SNS sustentável é a pergunta de mil milhões de dólares ou 12 mil milhões de euros, o valor inscrito na proposta na última proposta de OE. Basta mudar a forma como se financia a saúde, adotando, por exemplo, um modelo baseado em value based healthcare?

Não basta pensar em termos de “value based healthcare”, que pode ajudar, definindo até atividades que não devam ser feitas e identificando melhores práticas. Mas qualquer técnica de gestão, como é o movimento de “value based healthcare”, não conseguirá produzir grandes resultados se não for acompanhado de uma mudança cultural nas organizações (aqui, neste caso concreto, ganhar o hábito de discutir abertamente os resultados obtidos e o que melhor se pode fazer). Neste momento, o SNS enfrenta dois desafios de sustentabilidade – uma sustentabilidade técnica, de ter os recursos humanos necessários para cumprir o seu papel, e uma sustentabilidade financeira, ter as verbas necessárias para cumprir as metas assistenciais de forma eficiente. É necessário levar mais a sério mecanismos de substituição de unidades de saúde que não consigam prestar os serviços de saúde pretendidos com custos adequados. 

d) Como é que se reduz a ineficiência no SNS?

Cumprindo o que se promete, prometendo o que se pode cumprir, e criando os enquadramentos adequados. Traduzindo num exemplo, se uma unidade de saúde assinar um compromisso de atividade assistencial contra determinado orçamento, então esse orçamento deve ser dado, e depois se não forem alcançados os compromissos assumidos, a unidade em causa deve fechar, se for possível, ou ser substituída a sua gestão sem mais perguntas ou “últimas oportunidades”. 

As unidades do SNS nunca recebem o dinheiro de que necessitam para funcionar o ano inteiro, sendo que no final lá entra mais um extra para pagar dívidas em atraso. Isto repete-se ano após ano. De que forma esta situação condiciona os gestores hospitalares?

Esta situação só pode criar perturbação na gestão. Torna também mais importante a capacidade de influenciar a atribuição de verbas adicionais do que a capacidade de realizar boa gestão. Pode até criar efeitos perversos se ficar instalada a ideia de quem mais dívida gera, mais verba extraordinária recebe no futuro.

e) Qual é o incentivo que os administradores hospitalares têm para serem eficientes a gerir o dinheiro do Orçamento do Estado que lhes é transferido se, no final, bem ou mal gerido, o hospital recebe sempre o valor necessário para pagar  o que deve?

Só têm o espirito de missão para contrariar o incentivo negativo criado pela necessidade de negociação anual (talvez até mesmo permanente para alguns) de mais verbas. 

f)  e ainda mais alguma coisa?

Outros dois aspetos normalmente fora do radar e que julgo merecerem mais atenção: a) promoção da saúde, com criação de uma entidade própria que seja julgada pelo que fizer nesse campo (e se não fizer, é extinta ao fim de três ou cinco anos, pode ficar definido desde já), para evitar que essa atividade seja diluída no meio de muitas outras, e que seja desenvolvida de uma forma que seja útil à população e de modo que não seja paternalista; b) revisão da comparticipação dos medicamentos, tendo em conta o peso que têm nos orçamentos familiares dos grupos populacionais de menores rendimentos. 


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A necessidade de um novo Orçamento do Estado

Uma das primeiras decisões de António Costa quanto tomar posse novamente como primeiro-ministro será apresentar um programa de Governo e um Orçamento do Estado. Como o Orçamento do Estado prometido (e brandido) antes das eleições foi feito para ser apresentado em Outubro de 2021, como o programa eleitoral do Partido Socialista foi apresentado em Janeiro de 2022 aos eleitores, como, entretanto, a Rússia invadiu a Ucrânia, muito terá que mudar no Orçamento do Estado.

Não foram apenas as condições económicas globais que se alteraram de forma importante. Também o papel da União Europeia como um bloco de países que decide em conjunto mudou. Em termos económicos, temos atualmente um choque de aumento dos custos de energia que fará subir muitos preços de forma permanente e é um choque negativo nas economias comum a todos os países da União Europeia. Temos igualmente um choque de refugiados, com maior peso nos países geograficamente mais próximos da Ucrânia. A resposta a esse choque terá de ser solidariamente distribuído dentro da União Europeia (com o acolhimento não se sabe por quanto tempo destes refugiados e com o apoio financeiro que será certamente dado aos países que mais afetados estão a ser por este movimento de milhões de pessoas). Há, ainda, o choque de apoio à Ucrânia, seja agora em termos de ajuda humanitária e de apoio, quer seja, muito provavelmente, mais tarde para o esforço de reconstrução das infraestruturas do país, produtivas e de habitação. Há o potencial (e previsível) choque alimentar caso a situação de guerra venha a impedir a grande parte (a maioria? a totalidade?) das culturas agrícolas da Ucrânia e com a quebra de relações comerciais com a Rússia.

Nos próximos tempos, decisões importantes que afetarão a economia portuguesa irão ser tomadas coletivamente como União Europeia (o que é diferente de serem decisões da Comissão Europeia), numa responsabilidade coletiva de todos os países. E com choques negativos de várias naturezas sobre a economia será impossível tomar medidas que “façam de conta” que estes choques não existem, em particular não será possível sustentar medidas de apoio que procurem manter tudo como estava (antes da pandemia).

Enquanto o choque da pandemia da COVID-19 se antevia como um choque transitório, o choque da guerra na Ucrânia será um choque permanente em toda a Europa, mesmo para os países que não são parte direta nos combates. As medidas de apoio económico não vão poder ser as mesmas. Os objetivos que lhes vão estar subjacentes vão ser diferentes.

Em consequência, será de esperar que à medida que o tempo corre, a sensibilidade à situação de guerra diminua e a preocupação com os efeitos no dia-a-dia aumente na população. Provavelmente haverá contestação social de uma forma que não se teve durante a pandemia.

O contexto para a decisão política é muito diferente, e vai exigir novas prioridades para a ação governativa e um novo Orçamento do Estado. Essas novas prioridades vão implicar escolhas. Não vai ser possível voltar a que era a economia pré-pandemia e tentar fazê-lo irá ser pior para toda a economia portuguesa a breve prazo. Há que compreender e acomodar o que forem efeitos permanentes dos atuais choques. 

As escolhas económicas que se aproximam não vão ser simples nem evidentes. Não o fazer já no orçamento do Estado que o novo Governo irá apresentar significa apenas criar a necessidade de um orçamento retificativo daqui a uns meses.


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Observatório mensal da dívida dos hospitais EPE, segundo a execução orçamental (nº 73 – Fevereiro 2022)

A publicação recente dos valores da execução orçamental referentes ao mês de Dezembro de 2021 permite confirmar o efeito no stock dos pagamentos em atraso da transferência extraordinária realizada no final do ano de 2021. A expectativa para 2022 é que ao se ter alcançado um valor historicamente baixo no final de 2021, a dinâmica de crescimento possa ter sido alterada. Claro que com base na experiência dos últimos não há qualquer sinal de que essa expectativa se possa concretizar. Mas até ter os resultados referentes a Janeiro e Fevereiro de 2022 (o que sucederá no final de Março) não se conseguirá ter uma conclusão clara quanto a este aspecto. 

A situação actual, sem orçamento aprovado para 2022, funcionando com os valores de 2021 em regime de duodécimos, poderá ter comprometido algum propósito de garantir uma gestão sem crescimento dos pagamentos em atraso.Tendo o ano de 2021 completo, incluindo a habitual (e inevitável) transferência extraordinária de final de ano para os hospitais do SNS, é possível ilustrar o engano que é olhar unicamente para o stock de pagamentos em atraso no final do ano – que tem uma tendência claramente decrescente, ou seja, uma evolução favorável, ou olhar para a dinâmica intra-anual, em que o ritmo de crescimento mensal dos pagamentos em atraso se manteve sempre elevado, uma evolução desfavorável. A reconciliação da dinâmica mensal com as observações anuais é dada pelas crescentes transferências é feita pelas crescentes transferências extraordinárias. A disponibilidade do governo para as fazer revela que politicamente a mobilização de recursos é possível, colocando-se então a questão de ser preferível fazer esse reforço logo no orçamento inicial e tendo mecanismos que penalizem o resvalar do que seja um orçamento considerado realista em termos do movimento assistencial que cada hospital terá de prestar. A discussão do próximo orçamento do Estado, dentro de algumas semanas, deverá ser capaz de clarificar se vai haver uma disposição para terminar este ciclo de dívida – regularização – dívida, ou se vai procurar-se alguma forma de alterar esta dinâmica (relembrando que simplesmente dar mais dinheiro no final do ano não se traduz numa alteração desta dinâmica e das suas consequências para a gestão dos hospitais e logo para a saúde da população que por eles é servida).


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As propostas eleitorais (parte II)

No texto anterior, peguei para os programas dos partidos para ver como olhavam para 5 temas que julgo centrais na área da saúde. Mas os programas abordam outros temas que merecem atenção.

A maior parte dos temas são consensuais no interesse que geram nos partidos, e faço apenas o registo de terem sido mencionados, ou não, pelos vários partidos. Para alguns assuntos, os partidos apresentam detalhe adicional, que justificam um comentário.

 PSPSDBEPCPCDSPANILLivre
Saúde mentalS S S SS
Cuidados paliativos / fim de vidaSSSSSS S
Lições da pandemiaS       
COVID-19 longa        
Papel dos municípiosS       
Resistência aos antibióticosS       
“Uma saúde” (“One health”)S      S
Barreiras de acessoS    SS 
Farmácias comunitáriasS     S 
Genéricos e biossimilaresS       
Articulação público – privado /PPPSS/N/NS S/N
Descentralização / municípiosS       
Hospitalização domiciliáriaS SS S  
Centros de responsabilidade integradosS       
Direção executiva do SNSS       
Sistemas Locais de SaúdeS SS    
Revisão da Lei de Bases da Saúde  S    S 
Digitalização     S  
Saúde Oral S     S
Cuidados continuados SSS S  
Listas de espera S    S 
Cuidadores formais e informais S  SS  
Plano plurianual de investimento  S     
Eliminar taxas moderadoras  SS   S
Cuidados de saúde primários SSS S  
Financiamento de acordo com o desempenho  S     
Papel das ARS  S     
Morte medicamente assistida    N  S
Construção de hospitais   S    
Nota: S: menciona favoravelmente; N: menciona oposição; em branco – não menciona

PS: Direção executiva do SNS – o PS retoma a proposta que o Governo apresentou no Outono, e que nos moldes em que foi definida iria criar, com elevada probabilidade, mais confusão administrativa (e menos responsabilidade na decisão) do que era pressuposto ou reconhecido na proposta. Uma análise dessa proposta está disponível aqui. A ideia de uma direção executiva do SNS não é má em si mesma, a aplicação que é proposta é problemática. Para uma alternativa nessa linha, é preferível a proposta de Instituto SNS – Entidade Gestora do Serviço Nacional de Saúde, iniciativa do Health Cluster Portugal (o documento pode ser acedido aqui – é preciso preencher um formulário com os dados de contacto para o documento ser enviado por email, ). É uma discussão que é relevante ter, com a calma e serenidade necessárias, com rapidez, mas sem a pressão de ser “moeda de troca” para aprovação de orçamento na Assembleia da República.

PSD: passar tudo a USF B (no prazo de 3 anos), ter USF de modelo C. A criação de mais USF é relativamente consensual nos vários programas políticas mas necessita de ter a cobertura financeira adequada (e não são apresentadas as “contas certas” associadas com esta ideia). Já a passagem para USF de modelo C tem menos acolhimento geral, surgindo explicitamente apenas no programa do PSD (no documento original: “Abrange as USF dos sectores social, cooperativo e privado, articuladas com o centro de saúde, mas sem qualquer dependência hierárquica deste, baseando a sua actividade num contrato-programa estabelecido com a ARS respectiva, através do departamento de contratualização, e sujeitas a controlo e avaliação externa desta ou de outras entidades autorizadas para o efeito, com a obrigatoriedade de obter a acreditação num horizonte máximo de três anos.”). É um instrumento que merece alguma discussão, mas precisa de ser pensada de forma adequada – ao ser estabelecida uma relação em termos de contrato programa, e pretendendo-se ter uma relação de longo prazo entre os cidadãos e o médico / equipa de família que o acompanhe, o contrato programa e o financiamento não deverão ter como base meros horizontes anuais de negociação. Mas em relações de mais longo prazo, mesmo que seja de 3 ou 5 anos, a “gestão de riscos” torna-se uma questão a ser abordada diretamente. Há insuficiente detalhe para se poder ter uma opinião final sobre esta proposta. Mas sendo uma opção possível, deverá ser discutida nas suas vantagens, nas suas desvantagens e nas exigências que coloca em termos de gestão administrativa (aspecto em que o SNS não tem bom registo).

BE: introduz a proposta de plano plurianual de investimentos. É um elemento importante, e deverá ser considerado. O risco é que se forem pedidas intenções de investimento ou necessidades de investimento às unidades do SNS, a soma de todas essas intenções muito provavelmente dará um volume de investimento muito elevado, e com eventuais duplicações. A concretização operacional deverá ser baseada na existência de propostas de investimento devidamente justificadas, e avaliação e escolha de acordo com as prioridades definidas para o SNS como um todo, evitando por exemplo duplicações de investimento entre unidades, e garantindo que existe racionalidade para o equilíbrio assistencial e financeiro do SNS.

Também refere no programa a “modificação do paradigma de financiamento hospitalar que tem sido baseado na produção de atos médicos, sem objetivos em saúde claramente definidos (financiamento de atos feitos por outros profissionais e incentivos por equipas).” É uma proposta que também merece discussão técnica com profundidade, uma vez que outros modelos de financiamento têm vantagens e desvantagens, não sendo óbvio em que alternativa de financiamento será melhor. Por exemplo, financiamento de acordo com ganhos em saúde, ou com valor gerado em saúde, tem o pequeno grande problema de definir operacionalmente esses elementos, sem ambiguidades, e onde se possa alicerçar a realização de pagamentos. E saber com que frequência são feitos esses pagamentos. Ou se são apenas incluídos para determinar um orçamento global (caso que em que não haveria modificação do modelo de financiamento, apenas mudança da forma de calcular o orçamento). É relevante também saber que grau de risco financeiro para as unidades do SNS que deve estar presente, e quais as consequências de de resultados financeiros negativos persistentes e decorrentes da gestão. Ou seja, estando-se de acordo com o princípio genérico de alterar o modelo de financiamento, os detalhes dessa alteração farão toda a diferença.  

CDS: introduz a proposta do “Vale Cuidador”, definido como “comparticipação atribuída às famílias que optam por cuidar dos idosos em casa, no valor que o Estado suportaria com lares, centros de dia, e instituições de cuidados a idosos.” Sendo também esta uma proposta atrativa no seu princípio, não é claro como se processa a verificação de todo o processo. Em particular, como se poderá evitar o seu abuso, no sentido em que se coloca o Estado (os contribuintes) a pagar por algo que seria de qualquer feito no ambiente familiar, ou seja como evitar que seja um formato de “rendimento básico universal” para famílias com idosos em casa. Além de colocar em segundo plano os idosos que possam preferir, por qualquer motivo da sua vida, continuar a residir sozinhos. Não é claro que todas as implicações, financeiras e de bem-estar dos idosos, tenham sido acauteladas na elaboração da proposta. Mas antes de a rejeitar como impossível de concretizar de forma razoável, valerá a pena uma discussão mais em detalhe.

IL:  Partindo do princípio “Garantir acesso universal efetivo a cuidados de saúde”, que é no essencial partilhado por todos os partidos políticos, apresenta uma proposta base que é uma alteração profunda do SNS tal como está. Nota-se na proposta, e face ao programa eleitoral de 2019, uma evolução de pensamento na forma de conceptualizar e apresentar a ideia. Tornam claro que a proposta é alterar o SNS para o aproximar das possibilidades de escolha de prestador que está presente na ADSE (que usa sobretudo prestadores privados). Assim, esta proposta tem medidas e implicações quer do lado do financiamento quer do lado da prestação de cuidados de saúde. Esta proposta é justificada e detalhada de uma forma que não se encontra noutros programas partidários, creio que pela necessidade sentida de explicar os princípios presentes, e porque não chocam com o estabelecido constitucionalmente. A discussão técnica inerente acaba por não ser feita durante a campanha eleitoral. No lado do financiamento, no sentido de obtenção de fundos para pagar as despesas em saúde, a proposta consiste em transformar as Administrações Regionais de Saúde, que já existem, para um formato próximo do que associamos a subsistemas, sendo que haveria então 5 desses subsistemas em concorrência entre si em duas dimensões: a) serem escolhidos pelos cidadãos como garante da cobertura dos seus cuidados de saúde (ou seja, resultam 5 seguradores públicos), e b) estabelecerem relações comerciais com prestadores (presumo que públicos e privados) para assegurar o acesso a cuidados de saúde das pessoas que escolhessem esse subsistema. Numa versão de maior liberdade de escolha nos vários elementos em causa, poderia vir a ter-se um cidadão de Bragança a estar associado com o subsistema criado a partir da ARS do Algarve, tendo os cuidados de saúde prestados em Leiria (com entidade com contrato com o subsistema ARS do Algarve). Estou naturalmente a colocar exemplo extremo, apenas com a intenção de ilustrar que a complexidade de introduzir esta ideia poderá ser maior do que antecipado. Incluindo a questão de saber se as unidades do SNS que prestam cuidados de saúde passam também a ser geridas por estes subsistemas (mantendo a integração vertical atual do SNS), ou se há uma sua separação. Também há a questão técnica de saber se a dimensão dos subsistemas garante a dimensão crítica mínima para poderem desempenhar adequadamente o seu papel (por exemplo, se evoluírem diretamente das atuais ARS, fica-se com dimensões muito desiguais em termos de dimensão, mesmo que Alentejo e Algarve sejam agregadas num único subsistema).

Nos termos da proposta “Estabelecer subsistemas dentro do Serviço Nacional de Saúde, com capacidade para atuar em todo o território, por adaptação, conversão e substituição das atuais Autoridades Regionais de Saúde, e com a função de financiar a prestação de cuidados de saúde a todos os cidadãos, dentro dos limites dos recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis e acordados com os prestadores e os contratos de concessão com o Estado.”

As preocupações com questões de seleção de riscos estão presentes na proposta, uma vez que a proposta estabelece uma necessidade de regulação para este fim: “Nenhum subsistema pode excluir ou recusar um indivíduo, sob que critério for – não há quaisquer exclusões por doenças preexistentes ou exclusões por rendimento ou efetividade de pagamento das contribuições, ou qualquer outro critério de exclusão.”

Na parte da prestação, a proposta enuncia: “Garantir que cada subsistema é livre de organizar as suas redes de prestadores e que na organização da sua oferta deverão ser consideradas por cada um dos subsistemas, pelo menos, as seguintes redes: Assegurar que os subsistemas s o financiados com base num valor per capita ajustado pelo risco. Garantir a obrigatoriedade de pertença a um subsistema.”

Também considera explicitamente mecanismos de compensação para assegurar o equilíbrio do sistema de proteção baseado nestes subsistemas: “Constituir uma câmara de compensação entre os diferentes subsistemas que faca o ajustamento com base em critérios claros e atuariais.” Embora possa parecer pouco intuitivo a necessidade desse mecanismo, ele é tecnicamente necessário (uma explicação técnica do problema, e solução com fundo de compensação disponível aqui). 

Esta proposta é não só uma adaptação do que se encontra no sistema holandês, como tem sido referido por várias vezes, mas é também uma evolução de uma proposta apresentada em 1998 por Comissão de Reflexão para a Saúde, coordenada por Daniel Serrão (e da qual não consegui encontrar documento disponível em pdf para link, a referência é Serrão, D., Abrantes , A. V., Veloso, A., Oliveira, G., Moreira, JM., Delgado, M., & Dinis de Sousa, M. (1998). Recomendações para uma reforma estrutural: reflexão sobre a saúde. Conselho de Reflexão sobre a Saúde. Tanto quanto me recordo, também se propunha financiamento canalizado por entidades de base regional. A propósito dos trabalhos de preparação desta comissão presidida por Daniel Serrão, a Associação Portuguesa de Economia da Saúde promoveu na altura um debate sobre a versão preliminar do documento, tendo disponibilizado o resultado desse debate (disponível aqui). Mais de 25 anos depois não deixou de me impressionar verificar que os temas de discussão não mudaram no essencial.

Resulta daqui que esta proposta da IL tem que ser discutida de uma forma profunda, e nos detalhes, muitos deles técnicos, o que é impossível de realizar durante uma campanha eleitoral.

Dos restantes partidos, têm propostas que se inserem no quadro resumo acima, ou que se são de detalhe dentro do sistema de saúde, e do SNS, atual. Não têm, na minha leitura, a natureza transformadora das que comentei em mais detalhe.