Honestamente, não tenho a informação toda para poder dizer, mas chamou-me a atenção do titulo de um artigo no Público “Bastonário e sindicatos dos médicos querem horas extra com valores iguais às dos prestadores de serviços”. E chamou a atenção porque perde imediatamente a pergunta do que significa exactamente e porquê. É necessário um pouco de análise económica básica nesta discussão (livro de texto sugerido “The Economy”, disponível gratuitamente, para quem quiser ver melhor as bases dos argumentos seguintes).
Comecemos pela descrição da situação, baseada no que tem sido descrito em várias entrevistas e por vários orgãos da comunicação social: a) os médicos pertencentes aos quadros dos hospitais são, em alguns casos (crescentemente?), insuficientes para cumprir as obrigações de escala de urgência (obstetrícia e ginecologia tem sido a de maior destaque, existindo referência a outras especialidades). b) a possibilidade de horas extraordinárias por médicos da instituição [acima do contratualmente estabelecido, e no que possa ser decisão dos profissionais em fazer ou não essas horas extraordinárias adicionais (alterado 19h00, 16/06/2022)] não tem sido concretizada, em parte porque o valor adicional pago não é compensador (se fisicamente for impossível colocarem mais horas, então pagar horas extra com outro valor não resolve o problema de disponibilidade, tem que haver alguma possibilidade de decidir trabalhar mais horas se for remunerado de forma que seja aceite pelos médicos); c) há o recurso regular, mais nuns hospitais do que noutros, a empresas que organizam a prestação de serviços médicos (em que as empresas recrutam e organizam a prestação), sendo o valor hora pago mais elevado que o valor que seria pago por horas extraordinárias a pessoas do hospital e valor esse que difere de local para local de acordo com as informações publicamente disponíveis.
Se esta descrição captar as principais linhas da questão, significa que há um mercado de prestação de serviços médicos, que funciona com preços / valores pagos determinados pela necessidade (procura) e pela disponibilidade (oferta). Significa que em períodos ou locais onde há menos disponibilidade de médicos no regime de trabalho “à tarefa”, os valores pagos serão maiores. Significa que em períodos ou locais onde maior necessidade, com menos alternativas, os valores pagos serão maiores. Claro que para a comparação é relevante o valor recebido pelos médicos que desenvolvem a atividade por via de prestadores de serviços, e não o valor pago à empresa que organiza (que incluirá a respetiva margem de serviço).
Sendo assim, o ponto de comparação “valores iguais às dos prestadores de serviços” tem ambiguidade, porque não existe um valor independente da situação de cada local. E mais importante, esse valor de referência, preço dos prestadores de serviços, não é independente da disponibilidade dos médicos de cada hospital para darem horas extraordinárias adicionais, a um valor de remuneração mais elevado do que tem sido oferecido.
Em termos de análise económica, ao permitir que se pague valores mais elevados aos médicos do hospital para horas extraordinárias adicionais que façam, está-se a reduzir a necessidade (a procura) de serviços de prestadores de serviços médicos, o que fará baixar o preço pago nesses serviços. Ou seja, o que se pretende ter como ponto de referência irá variar de local para local, o que irá criar incerteza quanto à remuneração que deverá ser paga.
E aqui entra uma outra decisão – pretende-se que o pagamento destas horas extraordinárias seja feita em contexto de mercado (o que parece implícito na ideia de comparação com os valores pagos pelos prestadores de serviços), ou quer-se estabelecer um valor fixo e imutável às condições de cada hospital e especialidade?
A forma de organizar o processo irá depender da resposta a esta questão. Se for participação no mercado, é como se os médicos de cada hospital tivessem em cada momento que apresentar uma proposta para essas horas extraordinárias. O que levaria a uma versão dos hospitais contratarem os seus próprios médicos como se fossem prestadores de serviços. Essa possibilidade tem tudo para gerar incentivos perversos (complicar a atividade normal para serem necessárias mais horas extraordinárias, que seriam necessariamente feitas pelos próprios) – é por isso de saudar a posição da Ministra da Saúde em ter afastado (pareceu-me) essa possibilidade.
Ficamos então com a segunda alternativa – fixar um valor comum a todos os hospitais e especialidades, por hora mais. Terá menos flexibilidade, mas não se descartando a possibilidade de recorrer a empresas de prestadores de serviços são mantidos limites a eventuais situações perversas.
Indo nesta direção, há então que compreender que o valor atualmente recebido pelos médicos em regime de prestação de serviços não é o valor adequado. Deverá ser um valor mais baixo, uma vez que aumentando a “oferta” desta forma, o valor de equilíbrio no mercado de prestação de serviços será mais baixo.
Há, porém, uma ressalva – se a situação atual for tal que cada hora extraordinária adicional feita pelos médicos de cada hospital ser uma hora extraordinária a menos disponibilizada pelas empresas de prestação de serviços (os médicos deixariam de estar disponíveis para estas empresas na exacta proporção em passassem a estar disponíveis para o hospital), então o preço de equilíbrio ficaria inalterado. Só que neste caso, então esta medida também não resolveria o problema, uma vez que não estaria a aumentar a “oferta agregada”. A determinação do preço de referência para as horas extraordinárias que irão substituir empresas de prestação de serviços por medicos do próprio hospital com mais horas extraordinárias é por isso muito menos óbvia do que resulta das afirmações publicamente feitas (se houver algum objetivo de racionalidade económica, obviamente).
Dito isto, decorre desta análise rápida (e que admito possa necessitar de ser corrigida por algum elemento que não tenha considerado e seja relevante para o resultado final), que a definição do valor hora a ser pago não deve ser igual ao valor que tem sido praticado no mercado de prestação de serviços médicos. Deverá ser mais baixo, mesmo mantendo a posição de que deverá ser indiferente aos médicos optarem por fazer horas extraordinárias através do hospital diretamente ou através de uma empresa de prestação de serviços (esta “exigência” também poderá ser discutida, com base noutros elementos, mas aceito-a neste ponto de discussão, pois mesmo com esta condição, a conclusão mantém-se).
Em termos de opções, a melhor opção a médio e longo prazo é ter os quadros técnicos preenchidos de forma a assegurar o trabalho necessário em condições normais, e recorrer a horas extraordinárias / empresas de prestação de serviços (o que for menos oneroso) apenas em condições muito pontuais, e decorrentes de picos de procura ou choques de restrição de oferta não antecipados.
No imediato, a utilização de pagamento de trabalho extraordinário a médicos do próprio hospital é preferível, em termos técnicos e em termos financeiros, a ter uma dependência considerável de empresas de prestação de serviços médicos.
A determinação das remunerações tem que ser devidamente pensada, e não decidida no calor do momento ou em momento de pressão. E princípios de funcionamento económico devem ser incorporados na discussão, de forma a que sejam tomadas as melhores decisões.
Para discussão, e porque “quem disser o contrário é porque tem razão” (frase “roubada” a um livro de Mário de Carvalho).
(os contornos de uma resposta mais estrutural ficam para discussão próxima)