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tema da semana: redução da taxa de IRC

Do ponto de vista político, uma das “curiosidades” da semana passada foi a dissonância entre ministros sobre a (eventual) redução da taxa de IRC. Mas já agora talvez seja útil perceber se do ponto de vista económico faz sentido, para o país, essa medida. (Para as empresas que pagam IRC naturalmente que é favorável)

O primeiro ponto é saber se, de um ponto de vista global da economia, uma redução das taxas de IRC consegue favorecer um maior crescimento económico. A este respeito, um trabalho recentemente publicado, Do corporate tax cuts boost economic economic growth?, S. Gechert e P. Heimberger, European Economic Review, Agosto 2022, faz um resumo global dos muitos trabalhos existentes (meta-análise). Como principal resultado, depois de corrigirem para efeitos de viés de publicação (é mais fácil publicar trabalhos com resultados favoráveis), têm que não é possível concluir que há uma relação sistemática entre baixar o IRC e ter maior crescimento económico. Ou seja, pode suceder, ou não. O que obriga a que seja bem explicado porque se espera que venha a ter esse efeito.

O segundo ponto é relembrar que em Portugal existem (ou existiam em 2019), 121 benefícios fiscais em sede de IRC (segundo o relatório final do Grupo de Trabalho para o Estudo dos Benefícios Fiscais, nomeado pelo Ministério das Finanças, e liderado por Francisca Guedes de Oliveira, p. 53), pelo que a ser aprovada alguma descida do IRC deveria-se eliminar todos estes outros benefícios fiscais? (taxa de imposto mais baixo e estrutura mais simples?)

O terceiro ponto é diferente – se a intenção é promover o crescimento da economia portuguesa, através do desenvolvimento e crescimento das empresas, então talvez se deva ter um pouco mais de imaginação – e pensar que a redução de IRC deverá ser ligada, de algum modo, a aumentos da produtividade das empresas, recompensar a capacidade de melhoria. A existência de lucros de uma empresas pode dever-se a esta ser mais produtiva num mercado concorrencial, mas também pode resultar de estar em mercados protegidos e com poucas empresas concorrentes. Para o crescimento da economia portuguesa, o primeiro grupo é mais interessante, mas com redução de IRC cega pode estar a beneficiar-se sobretudo o segundo grupo. Daí que me pareça razoável ter uma discriminação da redução de IRC ligada ao crescimento da produtividade das empresas.

A discussão sobre a redução da taxa de IRC deve então ser acompanhada destes dois aspectos – redução dos outros benefícios fiscais já existentes (ou no mínimo justificar adequadamente porque não são eliminados, na dúvida retiram-se) e discriminação de acordo com a progressão da produtividade da empresa. Calculo que se levantem algumas dificuldades operacionais, mas com tanta informação que é reportada pelas empresas, não será certamente difícil cruzar as informações sobre valor acrescentado gerado pela empresa, número de trabalhadores e valor tributável em IRC. A atribuição de redução de IRC não deve ser para satisfazer os pedidos de apoio das empresas, ou acreditar por fé num efeito sobre o crescimento económico. Deve assentar numa lógica clara de qual o canal pelo qual essa redução de IRC premeia a capacidade da empresa em fazer crescer a sua produtividade. O (possível) argumento alternativo de que a redução de IRC se destina a fazer com que as empresas tenham capacidade de investimento, se levado a sério, deverá ser acompanhado pela proposta de redução de todos os outros apoios que existem ao investimento das empresas (subsídios a fundo perdido, taxas de juro bonificadas, etc.). É tempo de fazer com que os apoios públicos tenham uma relação mais direta com o contributo das empresas para melhorar a produtividade na economia portuguesa.


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Sobre as mudanças no ministério da saúde

A promulgação pelo Presidente da República do diploma sobre a nova direção executiva do SNS (de que ainda não conheço o texto neste momento de escrita) e a tomada de posse de uma nova equipa no Ministério da Saúde sugerem, naturalmente, algumas observações.


Felizmente, Adalberto Campos Fernands (ACF), num artigo no Diário de Notícias de 15.09.2022, disponível aqui, apresenta os pontos essenciais, aos quais acrescento alguns detalhes, em acréscimo também ao que expressei ao jornal SOL, disponível aqui.

Vamos então aos “12 trabalhos hercúleos na saúde”, enunciados por ACF, com os quais tenho na grande maioria forte concordância:

  1. Rumo estratégico – é essencial ter uma visão de médio e longo prazo, mas qual e como deve ser construída? Aqui fui revisitar a visão proposta num documento produzido pela Fundação Calouste Gulbenkian, há 8 anos, e que contou com a participação e reflexões de muitos dos que ainda hoje têm intervenção e têm ou tiveram (ou virão a ter) poder de decisão. Sete aspetos surgiam destacados nesse relatório: a) um pacto para a saúde – claramente, a nova lei de bases da saúde (de 2019) não substitui a necessidade de se ter um projeto, uma ambição abrangente. Continua a ser importante que seja definida uma visão para o que se quer do sistema de saúde e do SNS, para as diferentes medidas não sejam apenas uma resposta imediata para cada problema que surge; b) participação dos cidadãos – é uma ideia que é defendida de forma geral, mas depois a prática não acompanha (e participação dos cidadãos deve ser vista pelas decisões que estes ajudam a tomar e não ficar pela criação de órgãos ou grupos junto das unidades de saúde onde apenas quem se organiza acaba por ter voz); c) participação de todos os sectores; d) procura contínua de melhoria da qualidade; e) um sistema de saúde centrado nas pessoas e baseado em equipas – onde mais uma vez (quase) todos concordam, não sendo porém fácil ver que passos se deram; por exemplo, que passos se deram para que o auxílio do sistema de saúde, ou do SNS em concreto, à gestão da doença crónica por parte de cada pessoas seja realizada em equipa?; f) novas funções e uma liderança reforçada a todos os níveis – de momento, a mudança mais visível é a criação da direção executiva do SNS. Nos próximos dias, deverá ser finalmente conhecido o texto final que a cria, para se poder ver se propiciará liderança ou apenas mais confusão; g) sustentabilidade financeira – e aqui a principal preocupação estrutural é qual o verdadeiro empenho do Ministro das Finanças, que pelo menos publicamente aparenta estar ausente da procura de soluções. Alguns destes elementos surgem nos próximos “trabalhos” identificados por ACF. 
  2. Governação – sendo a frase chave de ACF, na minha leitura, a que afirma “a governação do sistema de saúde tem de recentrar o papel da promoção da saúde e da prevenção da doença”. O sinal político dado, com uma secretaria de estado dedicada ao assunto, é positivo de importante. Agora é necessário que se tenha uma visão integrada em vez de (tradicionais) programas avulsos. Deixo aqui um documento com ideias para discussão, adaptação e aplicação. 
  3. Pessoas – também aqui partilho do elemento chave “além das questões remuneratórias, está o projeto de desenvolvimento pessoal e profissional e da resposta à ambição legítima de progresso e de motivação”. O ponto central é ter um primeiro passo, neste momento, de ouvir, que não é sinónimo de seguir toda e qualquer “exigência” e sem obter mais informação. Tem que se andar depressa e mesmo assim vai levar tempo. Se não se andar depressa, não vai acontecer. 
  4. Acesso – este é sempre um tema sensível e onde por vezes a perceção gerada por casos particulares extremos esconde as grandes regularidades. Por exemplo no caso das intervenções de cirurgia, recuperou-se em pouco tempo o funcionamento próximo do que o ocorrido antes da pandemia. Também as consultas externas hospitalares recuperaram. O problema mais importante a prazo estará no cuidados de saúde primários e no número de pessoas sem médico de família atribuído (a redução deste número de pessoas sem médico de família nos últimos dois meses não é ainda sinal de que se tenha encontrado solução para o problema). Os gráficos seguintes, publicamente disponíveis nas informações disponibilizadas pelo Governo, ilustram que a discussão do acesso pode ser feita com números e olhando para as regularidades. Continuará a ser um tópico quente.
  5. Colaboração – nomeadamente as relações de parceria entre sectores, público e privado (com e sem fins lucrativos) – sendo aqui o importante ter a capacidade de olhar para estas parcerias como tendo de conseguir benefícios mútuos, e reconhecer que se basearão quase inevitavelmente em contratos (e não na instrução hierárquica vinda da tutela, como sucede no SNS). E o reconhecer que o sector público tem dificuldade tradicional em definir e monitorizar estas relações contratuais. 
  6. Organização
  7. Gestão – junto estes dois pontos de ACF. Provavelmente o elemento mais importante deles é levar a sério os instrumentos de gestão que são falados há pelo menos uma década (estavam nos compromissos assumidos pelo governo português no memorandum da troika, e que depois foram alegremente e conveniente esquecidos por todos). A sugestão que deixo é começar já a falar de 2024, com uma negociação rápida e elaboração simples dos documentos referentes ao ano de 2023. Não faz sentido ter documentos de planeamento, estratégia e orçamento terminados a meio do ano (ou mais tarde) a que dizem respeito. Tornam-se inúteis e só ocupam tempo que poderia ser melhor utilizado por todos.
  8. Financiamento – as questões centrais de como pagar, quanto pagar e a quem pagar (dentro do SNS) exigem uma reflexão que não esteja presa do prazo de uma ou duas semanas – o financiamento não pode ser desligado da reorganização que se queira fazer e de como essa reorganização pode contribuir para se gastar menos obtendo os mesmos ou melhores resultados para a saúde da população.
  9. Modernização, em que ACF apresento o “propósito de criação de Centros de Referência”. Tendo a associar o ideia de centros de referência à necessidade de concentração para melhoria da qualidade dos cuidados prestados (seja por economias de escala seja por aprendizagem). Creio que a ideia será mais na linha de ter um “selo de centro de excelência”. Nem tudo fará sentido ser organizado em centros de referências, ou então acabará por se ter uma fragmentação extrema em centros de referência (o que não é em geral desejável). 
  10. Transformação digital – é muito mais do que o registo de saúde eletrónico e aplicações d interface com o cidadão. A inovação na área digital pode trazer a) possibilidade de novos serviços que são colocados à disposição dos cidadãos; b) substituição de serviços que eram feitos de outra forma por serviços que eram feitos de outra forma por serviços digitais (a desmaterialização das receitas médicas é um exemplo de substituição), sendo que nalguns casos poderão manter-se várias formas de alcançar o mesmo objetivo. 
  11. Qualidade e ligação a entidades científicas – embora seja importante, podemos ser mais exigentes e detalhados – é necessário criar as interfaces em que a investigação é motivada pela necessidade de resolução de problemas identificados no SNS (na verdade, no sistema de saúde, pois os operadores privados também podem fomentar a ligação às universidades e os centros de investigação). A investigação no campo da saúde não se limita a ensaios clínicos.
  12. Sustentabilidade e desenvolvimento – o elemento de onde surgem os fundos para o Serviço Nacional de Saúde, em que assume particular relevância, dentro do Governo, e relação do Ministério da Saúde com quem gere os fundos disponibilizados pelos contribuintes, que terá sempre que responder à questão de porquê colocar mais dinheiro na saúde e não noutras áreas. Como parte da decisão de sustentabilidade financeira do SNS é política, é necessário ter uma relação de confiança entre os dois ministérios, da saúde e das finanças, e a situação sistemática de pagamentos em atraso na área da saúde não ajuda a que essa confiança exista. Aqui, o ministério da saúde deverá ter como objetivo reduzir os pagamentos em atraso sem, repito sem, recurso a verbas extraordinárias, num montante que permita acreditar-se que algo está a mudar e que mais verbas que sejam disponibilizadas não vão apenas desaparecer. Mas o ministério das finanças também tem de demonstrar interesse e apoio, ajudando a construir soluções em que acredite (e no processo de as construir, aprende um pouco mais sobre a funcionamento e as fontes de despesa do SNS).


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Sobre o debate para a alteração do sistema de pensões

O regresso das férias de verão veio acompanhado do regresso da discussão sobre a fórmula de cálculo das pensões de reforma, com uma anunciada e disputada medida de apoio aos reformados (antecipação de pagamento de compensação por inflação) e com o início da discussão sobre as mudanças a fazer.

A sustentabilidade do sistema de pensões tal como o conhecemos hoje é uma discussão quase permanente desde há muito tempo, em que as posições ora se aligeiram na análise ora se agravam consoante o interesse do momento político. Para uma visão recente do equilíbrio/desequilíbrio das contas públicas, em geral mas onde a Segurança Social é parte importante, deixo como sugestão de leitura o trabalho de Francesco Franco e colegas para a Fundação Calouste Gulbenkian. Outra sugestão de leitura ainda, sobre a sustentabilidade do sistema de pensões, a análise de Amilcar Moreira e colegas, num trabalho para a Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Além da necessidade de conhecer em detalhe a situação financeira atual e a sua evolução previsível caso nada seja feito, vai ser importante refletir sobre o que realmente se vai querer mudar. A ideia de que é necessária uma regra estável de cálculo das pensões de reforma deixa de fazer sentido se em todos (ou quase todos) os anos se pretende não respeitar a regra estabelecida e ao mínimo teste sério sobre a sua aplicação se acaba por colocar em questão essa mesma regra, que se torna num ponto de referência para a decisão pública, um ponto de partida para uma negociação ou imposição por parte do Governo, em vez de seguir um automatismo na sua aplicação. É diferente definir uma regra como sendo algo a respeitar de forma automática ou como algo a ser o ponto de início de um processo anual de escolha.

A distinção não é irrelevante porque as decisões públicas tendem, de acordo com a experiência observada das últimas décadas, a ser pró-cíclicas: limitar as pensões de reforma quando há uma conjuntura económica negativa, e aumentar quando já uma conjuntura económica positiva. Este amplificar do ciclo económico para os reformados é contrário à estabilidade que gostariam de ter. Há uma tensão entre conseguir uma melhor gestão macroeconómica das contas públicas pela limitação do crescimento da despesa e a incerteza adicional que é lançada sobre os pensionistas, cuja capacidade de ajustamento ao ciclo económico é reduzida em Portugal (tradicionalmente, o principal ativo de aplicação de poupanças é a habitação própria, que não tem liquidez para responder a flutuações do ambiente geral, de maior ou menor inflação).

Daqui antevejo que a anunciada discussão (de que sairá um livro verde, ou de outra cor) sobre a segurança social, se quiser resolver, ou começar a resolver, de forma mais duradoura, a sustentabilidade da segurança social terá que tratar e analisar, introduzir na discussão pública e política, novos elementos e não apenas discutir novos parâmetros para a regra de cálculo. Será necessário pensar em como separar as necessidades de gestão macroeconómica das contas públicas da criação de incerteza e ciclos económicos amplificados para os pensionistas. 

A identificação de novas fontes de receita para o financiamento das despesas com pensões, que vá além das contribuições dos trabalhadores, terá de fazer parte da discussão. 

A identificação de mecanismos de proteção social de rendimentos que protejam os pensionistas de flutuações excessivas do poder de compra das pensões terá de ser feita.

A identificação de um sistema novo, ou um ajustamento ao sistema atual, que seja “justo para todas as gerações” será essencial. E esta será uma excelente ocasião para fazer uso das ideias lançadas no âmbito do projeto da Fundação Calouste Gulbenkian sobre justiça intergeracional. O ponto de partida para esta parte da discussão será aplicar as cinco perguntas fundamentais da metodologia desenvolvida para avaliação de justiça intergeracional sobre uma nova proposta para o cálculo das pensões de reforma: A primeira pergunta é se a política ou decisão em apreciação afasta Portugal da sua visão de futuro. A segunda pergunta é se a proposta desfavorece alguma geração, atual ou futura. A terceira pergunta é se a medida apresentada desfavorece alguma faixa etária da população. A quarta pergunta questiona se a proposta reforça a transmissão de desigualdades injustificadas entre gerações. Por fim, a quinta pergunta inquire se a proposta limita as escolhas das gerações futuras. (a página 29 deste documento apresenta uma aplicação destas ideias à anterior reforma, de 2006, do sistema de pensões português)

É bom que seja iniciada uma discussão com tempo. É bom que haja uma comissão que tem tempo para pensar. É bom que a discussão tenha dados, método e racionalidade (e não apenas vozearia e emoções ao extremo), o que veremos se sucede. 

Declaração de interesse: colaborei com a Fundação Calouste Gulbenkian no projeto de justiça intergeracional, que terminou no primeiro semestre de 2022, estando todos os resultados publicamente disponíveis aqui.


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sobre a evolução das sociedades humanas

Nos últimos anos, vários livros sobre a evolução, em tempo longo, das sociedades humanas foram editados ou re-editados. O mais recente é devido a Oded Galor (da Universidade de Brown, nos Estados Unidos), com o livro “A jornada da humanidade”, e apresenta uma visão complementar à de Yuval Harari (no seu livro Sapiens – história breve da humanidade) e à mais antiga de Jared Diamond (no livro Armas, Germes e Aço).

Esta obra de Oded Galor condensa, numa escrita que procura ser acessível a todos, a investigação de várias áreas, incluindo trabalhos de investigação do próprio autor.

O tempo da evolução mede-se em séculos e milénios, na procura de compreender sucessivamente o que está por detrás de cada aspecto identificado como central para a evolução das sociedades humanas. Vai-se assim caminhando cada vez mais para trás, encontrando nesse trajeto também possíveis explicações para as atuais desigualdades entre zonas do mundo.

O ponto de partida é o comum a muitas das discussões que adoptam uma perspectiva económica – a revolução industrial iniciada em Inglaterra há cerca de dois séculos e meio, a partir da qual a dinâmica de evolução populacional e do conhecimento (científico, tecnológico) teve um acelerar sem precedentes na história humana. 

Sendo este ponto de partida conhecido, Oded Galor propõe uma sucessão de “porquês” – para cada explicação, é necessária encontrar a sua própria explicação. Essa procura leva a recuar no tempo, destapando-se os elementos económicos e sociais que operaram, e operam, para originar os atuais níveis de riqueza e de desigualdade entre países e regiões. 

Como é natural neste tipo de livros, não é fácil de resumir (eles próprios são o resumo de muitos outros) e o que cada leitor retira será diferente (e é muito provável que uma segunda leitura aqui a algum tempo desperte a atenção para outros aspectos). 

Vejamos, então, o que me prendeu mais a atenção (nesta primeira leitura). 

Ainda na parte inicial do livro, que procura dar a perceber a revolução industrial e as suas consequências, uma discussão interessante é como se resolveu, na investigação científica, a dúvida sobre se o investimento em mais educação por parte das populações surgiu primeiro e na sua sequência veio a industrialização, ou se houve primeiro a industrialização que depois gerou um maior interesse na educação. Não é evidente qual o primeiro fator. Por um lado, a industrialização, com a crescente mecanização das tarefas tradicionalmente desempenhadas por crianças e com o empregar de pessoas mais educadas, contribuiu para reduzir o interesse no trabalho infantil. Ao mesmo tempo, a redução da mortalidade infantil aumentou os ganhos de apostar em maior educação e menos crianças, mesmo que essas decisões não sejam pensadas dessa forma. Por outro lado, maior educação da população é o que permite a industrialização, para ter trabalhadores capazes de desempenhar as novas funções e de conseguirem estabelecer e justificar inovações incrementais. A observação, estabelecida de forma rigorosa, de que a educação começou a ser mais elevada em zonas ainda não industrializadas, e que posteriormente a um maior investimento em educação se industrializaram, ajuda a perceber que o primeiro impulso poderá ter estado na educação.

Esta regularidade tem implicações para a forma de pensar o ensino atual – não pode ser feito para satisfazer as necessidades das empresas atuais, tem que evoluir para acompanhar o que possam vir a ser as grandes questões futuras (por exemplo, fará sentido em todas as formações haver a discussão de como esse campo de conhecimento pode contribuir para resolver os problemas associadas com as alterações climáticas).

Diferentes elementos económicos conjugaram-se com desenvolvimentos tecnológicos e transformaram a demografia da sociedade, num processo que ainda hoje decorre (com a face visível do envelhecimento das populações nas economias mais desenvolvidas, no por vezes chamado Inverno Demográfico). Estes mecanismos encontram-se também na base de desigualdades que hoje observamos entre diferentes zonas do mundo.

A principal conclusão que resulta desta digressão sobre as fontes profundas do desenvolvimento das sociedades humanas e das diferenças que observamos entre países e regiões é que estas têm raízes históricas, geográficas, institucionais e culturais, que se vão encaixando umas nas outras.

Numa lógica de tempo longo, medido em séculos e milénios, o desenvolvimento das sociedades humanas decorreu em ciclos de reforço mútuo entre progresso tecnológico e evolução demográfica. Contudo, só recentemente, nos últimos dois séculos e meio, se conseguiu ter um ritmo de desenvolvimento tecnológico suficientemente forte para que não fosse acompanhado por um crescimento demográfico (que existiu) que levasse a pouca alteração nos níveis de vida médios da população.

Numa reflexão sobre uma das grandes questões da atualidade, como resolver a emergência climática, Oded Galor tem uma visão optimista. Baseia-se numa confiança em que a capacidade humana em gerar inovação irá encontrar soluções tecnológicas que, primeiro, mitiguem, e depois, mais tarde, eventualmente compensem a trajetória atual. Adicionalmente, a evolução demográfica dará igualmente uma ajuda, através de menor pressão. Mas para conseguir esse efeito será necessário investir, dedicar recursos, para conseguir a inovação necessária. 

A segunda parte do livro explora em mais detalhe os movimentos profundos que originaram e permitiram o atual desenvolvimento tecnológico, bem como levaram a fortes desigualdades entre regiões.

Oded Galor revê o papel das instituições como elemento facilitador do desenvolvimento tecnológico, nomeadamente a criação de instituições que protegem a propriedade intelectual privada (essencial para que se recolha o resultado do que se faz e essencial para que se possam realizar trocas voluntárias e mutualmente vantajosas, o que genericamente se designa por mercado) e que promovem a igualdade de oportunidades. O papel das instituições no desenvolvimento das sociedades humanas foi explorado por J Robinson e D Acemoglu em detalhe, na sua obra “Porque falham as nações”.

A existência de certo tipo de instituições em Inglaterra precedeu o desenvolvimento tecnológico a que se chamou revolução industrial e tem, por sua vez, que ser explicada. As instituições fazem diferenças, mas porque surgiram? 

Para compreender como surgiram essas instituições é necessário recuar mais no tempo e procurar os fatores culturais que estão na base do seu aparecimento.

Numa primeira abordagem centrada na Europa, a ideia da relevância da ética protestante para o desenvolvimento de instituições na Europa, embora tendo suporte estatístico, não é suficiente e é preciso recuar mais. É preciso procurar o que possa estar na base desse conjunto de valores, que incluem confiança entre as pessoas, orientação para o futuro (incluindo o reconhecer o valor da educação) e a manutenção de laços familiares fortes.

Se a cultura de uma sociedade determina, ou permite, que surjam instituições que são “amigas” do desenvolvimento tecnológico, a pergunta natural seguinte é o que leva a essas características culturais e porque são diferentes de região para região, e de modo suficientemente forte para que determinem caminhos de desenvolvimento diferentes, levando às desigualdades que hoje observamos.

O desenvolvimento das normas que definem uma sociedade decorre, em parte, do ambiente (geografia e clima) em que se formam, além de serem influenciadas pelos processos tecnológicos e económicos a que dão origem.

A capacidade humana de aceitar a ideia de tradição e de conhecimento vindo do passado ajudou a criar normas e regras que resultam dessa aprendizagem. A diversidade de sociedades e de normas resulta então do ambiente em que cada sociedade se desenvolveu e adaptou.

Exemplo da ligação entre normas, cultura e desenvolvimento tecnológico e depois económico, é a importância da confiança para a existência de trocas, de mercados. Tal como uma tradição de envolvimento cívico facilita o aparecimento de instituições focadas no bem comum. Das características culturais, surgem as instituições.

Para explicar esta diferença entre sociedades, para perceber o que está na origem de valores base dos grupos humanos, Oded Galor recorre a dois fatores primordiais: a geografia e a diversidade humana. Vale a pena um olhar mais detalhado sobre ambos.

A geografia determina o ambiente e o clima para culturas agrícolas e disponibilidade de recursos naturais, mas também pode criar elementos adversos (um exemplo é o efeito nefasto da malária e da mosca tsé-tsé em África).  Mas a geografia também pode facilitar ou dificultar o desenvolvimento da sociedade humana de formas mais subtis, e a forma como acabam por emergir países influencia o processo de desenvolvimento.

Segundo Oded Galor, quando a geografia facilita o surgimento de grandes estados, torna-se mais fácil a quem governa conter desenvolvimentos tecnológicos ou culturais que os ameacem no seu poder. Com fragmentação em diferentes estados / sociedades surge a possibilidade de o que é contido num país ou região ser experimentado noutro país (o que no jargão económico de hoje será transferência de tecnologia, transmitida durante muitos séculos pela deslocação física de pessoas, por migrações). 

Um exemplo de como a cultura de uma sociedade, no sentido de valores comuns, surge moldada pela geografia é terem surgido sociedades, pessoas, com uma maior atenção ao futuro (a ideia de retorno de investimento) em regiões onde as condições da terra permitem uma maior produtividade agrícola. O ter excedentes nas culturas agrícolas leva a ter que se pensar onde os guardar e o que fazer com eles no futuro. Tal como a incerteza sobre o que a terra dá em cada ano leva a maior cautela e precaução em geral. A forma de pensar, em tempo longo de séculos, acaba por ser influenciada pela geografia.

O tipo de cultura agrícola predominante, mais favorecido pela geografia e clima de uma região, também leva a traços culturais distintos – como exemplo, a cultura do arroz, que necessita de mecanismos de irrigação de água que têm de ser coordenados entre muita gente, leva a uma cultura mais coletivista.

E apesar desta sucessiva busca do que origina os diferentes caminhos de desenvolvimento humano, permanece uma questão – se é a geografia e o clima que acabam por estar no início de tudo, porque é que ao longo dos séculos e milénios, as regiões do mundo alternaram no seu papel de liderança (dado que a geografia e o clima são, ou foram, bastante estáveis durantes os milhares de anos de desenvolvimento das sociedades humanas)?

Há aqui a necessidade de recuar ainda mais um passo e entender que as sucessivas inovações tecnológicas eram propiciadas por fatores distintos e por isso surgiram em locais diferentes. A difusão de um avanço tecnológico potenciava depois que outros fatores levassem outras zonas a dar o próximo salto tecnológico, seja pela disponibilidade de outros recursos seja pela emergência de outras culturas e instituições.

O caminho do progresso humano não é linear, e até duvidoso, na minha leitura do livro de Oded Galor, que apenas uma região isolada do resto do mundo, tivesse conseguido alcançar o conhecimento e desenvolvimento, tecnológico e de valores, que hoje temos.

O desenvolvimento tecnológico dos últimos cinco séculos foi-se progressivamente desligando da produtividade agrícola, e depois dos recursos naturais; passou a assentar cada vez mais no engenho humano. A dependência dos fatores puramente naturais foi-se reduzindo (e as zonas que tinham mais vantagem nos fatores puramente naturais e agrícolas foram tendo mais relutância em mudar). Da agricultura para a indústria passou-se da terra fértil para a disponibilidade de outros recursos naturais. Agora com a passagem para a “economia do conhecimento” (como é comum dizer-se), os recursos cruciais passam ainda a ser outros. E é possível que daqui a dois séculos, os recursos essenciais para o desenvolvimento das sociedades humanas sejam algo que não antecipamos hoje, beneficiando relativamente não sabemos que região.

Além da geografia, Oded Galor coloca igualmente grande destaque no papel da diversidade humana. Para Oded Galor, maior diversidade humana tem um custo de menor coesão social e uma vantagem de maior criatividade, e a existência de culturas e instituições que enquadram de forma diferentes esses custos e vantagens geram caminhos distintos de desenvolvimento.

Definir e medir a diversidade humana é um problema complicado (e susceptível de diversas interpretações) e é uma discussão que ainda não se encontra finalizada. No entender de Oded Galor, quando se está em contexto de mudança tecnológica rápida, predominam as vantagens da diversidade humana, pois há mais oportunidades de aproveitar a criatividade que lhe está associada. Essa diversidade humana terá uma forte componente social, pelo que sociedades culturalmente mais abertas tenderam, nos últimos dois séculos e meio, a favorecer o desenvolvimento tecnológico e o progresso económico. 

Resulta então a necessidade de mais um “porquê” e de recuar ainda mais, para se compreender que as sucessivas inovações tecnológicas de cada salto na evolução das sociedades humanas foram propiciadas por fatores diferentes e por isso surgiram em regiões diferentes. A difusão de um avanço tecnológico potenciou que depois diferentes fatores levassem outras zonas a dar o próximo salto de desenvolvimento, seja pela disponibilidade de outros recursos seja pela emergência de outras culturas e instituições.

Esta identificação de elementos de muito longo prazo, como a cultura e as normas de uma sociedade, para o processo de desenvolvimento é crucial para se perceber porque uma importação rápida e pouco pensada de políticas e/ou instituições de uns países para outros acaba por ter fracos resultados (e muito abaixo das expectativas).

Segundo a visão de Oded Galor, a redução das atuais desigualdades entre regiões do mundo irá assentar em duas grandes forças: de um lado, a difusão cultural e tecnológica levará o seu tempo mas irá acontecer; de outro lado, a procura de mecanismos explícitos de redistribuição que mitiguem as diferenças existentes enquanto se processa o ajustamento de longo prazo. Com estes dois elementos, as sociedades tenderão a aproximar-se. A menos, claro, que haja um novo salto tecnológico que assente num fator que não sabemos hoje qual será traga para a frente do desenvolvimento uma região do mundo que inesperadamente se coloca na frente da evolução das sociedades humanas (é, no fundo, esse o padrão de séculos e milénios que Oded Galor nos apresenta).

Como é provável que outros leitores tenham encontrado interesse noutros pontos do livro, ou encontrado outras explicações e ideias mais interessantes, fica aqui aberto o espaço para troca de impressões.


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Sobre a direção executiva do SNS que não o será…

O acontecimento desta semana no sector da saúde foi a demissão, mas em continuidade de funções, da ministra da saúde. Como foi muita coisa dita, apenas a nota rápida de a “gota de água” referida pelo primeiro-ministro para a saída da ministra da saúde não ser provavelmente o fator mais relevante. A pressão pública para a saída da ministra da saúde fez lembrar o tempo em que havia muitas grávidas a dar à luz em ambulâncias, até que a saída do ministro da saúde desse momento “terminou” com essa situação.

Mas enquanto a luz mediática incide sobre a “dança de cadeiras” no ministério da saúde, o “sistema” continua, e é nos pequenos acto, e não nas grandes declarações, que por vezes se consegue encontrar o verdadeiro pensamento sobre como deve funcionar o SNS. Assim, nesta semana que termina houve uma clarificação quase invisível. 

A 2 de setembro de 2022 foi publicado o Despacho nº 10692/2022 do ministério da saúde. Este Despacho despacha a criação de uma comissão executiva “para rever os modelos de organização das urgências metropolitanas de Lisboa e do Porto”. Este Despacho contém, implicitamente, uma importante “declaração” no seu ponto 14 – a (discutida) Direção Executiva do SNS, prevista no novo Estatuto do SNS, não será realmente executiva. Num tema que é, parece-me, claramente de organização e funcionamento interno do SNS, estabelece-se que “14. Compete à Direção Executiva do SNS (…) elaborar os documentos que reflitam os novos modelos de organização das urgências metropolitanas de Lisboa e Porto, a submeter à tutela para efeitos de aprovação”. (sublinhado meu). 

É o assumir da versão Direção Executiva do SNS como gabinete de estudos (na melhor interpretação) ou como caixa de correio (secretariado?) da “comissão executiva” criada por este Despacho (numa interpretação menos benévola). 

Logo numa das primeiras oportunidades de afirmação do seu papel de entidade executiva, a Direção Executiva elabora documentos com base no que outros fazem para apresentar à tutela – não percebi onde está o elemento executivo da Direção. Da forma como está escrito, a minha leitura é que a Direção Executiva é desapossada de qualquer ação executiva que tenha a ver com organização dos serviços de saúde do SNS. 

Ou seja, se for este o espírito presente quando se criou a Direção Executiva, fica claro que não há qualquer mudança no funcionamento do SNS, apenas mais uma camada da cebola burocrática.Um segundo comentário a esta Comissão Executiva: cria grupos distintos para Lisboa e para o Porto, em que é pouco claro como vão aproveitar para conhecimento mútuo das melhores práticas de cada área. O grupo de Lisboa tem apenas pessoas de instituições de Lisboa e o grupo do Porto tem apenas pessoas ligadas a instituições do Porto. Não teria sido bom misturar um pouco mais? Só me parece que teria vantagens. Espero que pelo menos cada uma das duas equipas tenha o espírito de conhecer o trabalho desenvolvido pela outra e dar a conhecer o seu, e que essa comunicação produza aprendizagem mútua.


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Observatório mensal da dívida dos hospitais EPE, segundo a execução orçamental (nº 74 – Agosto 2022)

Após uma interrupção de alguns meses, é tempo de retomar o acompanhamento da evolução dos pagamentos em atraso. No início do ano, depois das transferências extraordinárias (habituais!) no final do ano de 2021, que permitiram ao governo anunciar o valor mais baixo de pagamentos em atraso desde que há o seu registo regular, criou-se a expectativa de algo poder mudar ao longo de 2022.

Os números dos primeiros 7 meses de 2022, que incluíram eleições, uma maioria absoluta e um orçamento para o SNS com reforço considerável, trazem a desilusão de se manter a evolução habitual de crescimento dos pagamentos em atraso – para o seu ritmo de crescimento mensal em termos absolutos, acaba por ser irrelevante quanto se injecta no SNS.

A figura seguinte apresenta graficamente os valores dos pagamentos em atraso no final de cada mês, tal como publicado pela Direção-Geral do Orçamento. As séries de pontos com as mesma cores apresentam o mesmo valor médio de crescimento mensal dos pagamentos em atraso, em milhões de euros. Os valores correspondentes a cada cor encontram-se no quadro com as estimativas, apresentado no final.

Em termos de dinâmica, a expectativa criada era que em 2022 não se teria o padrão de queda por transferência de verba adicional, seguida de crescimento ao ritmo habitual. Contudo, ocorreu exactamente o mesmo padrão, e o ritmo de crescimento foi igual ao dos primeiros meses de 2021.

Esta evolução será até desconcertante para quem afirma que o principal problema é o subfinanciamento – depois de um reforço substancial de orçamento do SNS, precedido de uma “limpeza” por transferência excepcional de verbas (o valor em Dezembro de 2021 é o mais baixo desde que há estes registos), não deveria ter ocorrido um crescimento dos pagamentos em atraso ao mesmo ritmo de 2021, e que é substancialmente superior a ritmos obtidos noutros períodos. Em média, o crescimento recente tem sido da ordem dos 79 milhões de euros por mês.

Ou seja, esta evolução sugere que apenas reforçar orçamento sem outras alterações não tem efeito assinalável nesta dinâmica de despesa, e face aos problemas recentes do SNS com o funcionamento dos serviços de urgência, reforça-se a ideia de que apenas dinheiro não resolverá esta dinâmica.

E claro que esta evolução acaba por justificar visões de que o sector público da saúde é um “poço sem fundo” – as verbas disponibilizadas desaparecem, sem que haja mudança no seu funcionamento.

Esta evolução agregada deverá ser analisada hospital a hospital, o que se espera esteja a ser feito, para que possam ser delineadas as medidas adequadas, incluindo mudanças de equipas de gestão, reorganização de serviços dentro e entre hospitais, etc.


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Continuando a olhar sobre as propostas para as urgências hospitalares…

O que tem vindo a ser relatado na comunicação social como sendo o resultado da Comissão liderada por Diogo Ayres de Campos (não encontrei qualquer documento síntese) inclui:

  • Sistema de informação à população sobre disponibilidades dos vários serviços de urgência, com antecedência de uma semana
  • Fixação de preços aos médicos a prestar serviço adicional (sejam internos ou em regime externo de prestação de serviços)
  • Criação de base de dados centralizada com as “contingências” dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde.

Segundo foi possível perceber das declarações prestadas, o preço fixado é igual para todos mas com excepções, que estarão associadas com a localização dos hospitais e para hospitais “mais debilitados em termos de equipas”, ou seja, afinal o preço não é igual para todos (e bem).

Infelizmente, afasta a “necessidade de reencaminhar equipas”, o que honestamente me parece dever ter prioridade sobre contratar serviços externos, por o “reencaminhamento de equipas” poderá ser parte de uma futura prática permanente, com o objetivo de reduzir a dependência da prestação de serviços para satisfazer necessidades frequentes (as necessidades permanentes deverão ser resolvidas com contratações, e por isso com recursos internos). A este respeito, causa alguma perplexidade a contradição interna do SNS relatada em dois textos, publicados lado a lado no jornal Expresso de 1 de julho de 2022. No texto de Vera Lúcia Arreigoso, é citado Diogo Ayres de Campos “não é juridicamente possível” a transferência de equipas hospitalares para os serviços em SOS. No texto de Joana Ascenção, sobre as urgências metropolitanas na zona do Porto “E com base nos profissionais disponíveis (…) foi possível distribuí-los pelos hospitais, mesmo que isso implicasse deslocações dos médicos” (o que sucede desde 2005). Ou na zona do Porto estão a usar um processo que “não é juridicamente possível” ou a barreira jurídica foi ultrapassada por algum tipo de acordo ou a barreira não é realmente jurídica mas de real dificuldade em os hospitais (centros hospitalares) da zona de Lisboa trabalharem em conjunto, dominando a visão do “castelo” de cada um, com claro prejuízo para os cidadãos. As soluções aqui podem ser várias: a) perceber o que é possível no Norte que “não é juridicamente possível no Sul” – proponho uma estadia “Erasmus – SNS” da comissão criada e mais alguns membros do Ministério da Saúde na ARS Norte por uma semana; b) se “não é juridicamente possível” com a atual estrutura, então crie-se um único centro hospitalar em Lisboa, fazendo com que as deslocações passem a ser uma decisão interna e por isso “juridicamente possível”. Só por curiosidade, para quem considerar que um único centro hospitalar em Lisboa é demasiado grande, a Assistance Públique – Hôpitaux de Paris tem 38 hospitais e atende mais de 10 milhões de doentes por ano (informação consultada a 3 de julho de 2022 no respetivo website). Talvez a coordenação em Lisboa necessite de uma solução deste tipo? 

Infelizmente, também não se fala em avaliar as necessidades e a modulação das equipas à procura previsível de cada local em cada período do dia. 

Para se perceber melhor o que possa suceder com a fixação de preços que o SNS está disposto a oferecer para a prestação de serviços médicos, se for um preço coordenado centralmente para todos os hospitais fico com a dúvida se estará de acordo com os princípios de defesa da concorrência gerais (também aplicáveis aos mercados de contratação de trabalho). Mesmo que o seja, gostaria de saber um pouco mais sobre os efeitos esperados (pela Comissão): pagando menos do que tem sido o “preço de mercado”, o que leva à expectativa de que haverá médicos suficientes interessados nesse valor (é uma expectativa baseada em evidência de algum tipo, ou simplesmente esperança)?

A informação que gostaria de ver e que me parece fácil de obter (por parte da comissão): usando os valores pagos em cada contrato/acordo dos últimos meses, qual a média desse valor ajustada para a localização do hospitais, para o número de contratos feitos pelo SNS nessa mesma altura (digamos, semana, embora esteja dependente de como a informação esteja organizada). Para compreender o funcionamento deste mercado de contratação de serviços externos de médicos, falta a informação sobre a procura destes serviços por entidades do sector privado, que se deveria procurar obter (ou junto das empresas de prestação de serviços, ou junto das entidades privadas, se alguma delas estiver disposta a colaborar). 

Com estas médias ajustadas, pode-se compreender melhor como o preço terá ser ajustado para a localização e para a intensidade da procura.

Note-se que fixar um preço médio global com possibilidade de ajustamento para valores superiores sempre que for necessário para não ter falhas de serviço significa que se vai gastar mais do que na atual situação de funcionamento de mercado, sem que o resultado final seja distinto. Ilustrando o argumento com um exemplo simples, hipotético (não tenho os valores reais). Se com dois hospitais distintos, observarmos dois preços, 30€ / hora e 70€/hora, o preço médio é 50€/hora. Se for fixado este preço, então quem estava disposto a receber 30€/hora, acaba por receber mais 20€/hora. Quem só estava disposto a prestar o serviço por 70€/hora (por ser num hospital mais distante), irá receber na mesma esses 70€/hora para que não deixe de prestar o serviço. O valor pago total é então maior, sem ter em nada alterado o funcionamento do mercado. Se a expectativa da medida proposta é que quem antes recebeu 70€/hora receba agora 50€/hora pelo mesmo serviço prestado, deverá ser claramente explicado porque existe essa expectativa e porque é razoável.

Um outro elemento que estava à espera de ver presente de uma forma muito explícita (embora me pareça que está de algum modo implícito) é a contratação antecipada primeiro de recursos internos e se estes forem insuficientes, de recursos externos, para suprir necessidades previstas a um mês. O estabelecimento antecipado destes contratos, internos e externos, é igualmente uma forma de garantir preços mais baixos (claro que faltas de última hora, imprevisíveis, terão que ter soluções de última hora, mas o que puder ser antecipado deve ser antecipado).

Como os comentários acima se basearam na informação pública disponível, poderei estar desajustado da realidade; se houver nova informação que justifique alteração da posição sobre estas propostas, irei fazendo as respetivas atualizações.


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Voltando ao assunto do fecho das urgências

Apesar de ser necessário agora dar algum tempo para que sejam pensadas, discutidas e apresentadas propostas de solução, quer para os problemas pontuais de curto prazo quer para os problemas estruturais de longo prazo, duas das ideias que têm sido circuladas merecem desde logo um comentário.

Primeiro, a tentação da comissão nomeada pela Ministra da Saúde para entrar na regulação de preços (dos serviços prestados pelos tarefeiros). De forma sucinta, num mercado em funcionamento, com ajustamento de preços para que se consiga oferta (capacidade) para satisfazer a procura (necessidades), utilizar a imposição de preços máximos terá como efeitos a) pagar menos às empresas de prestação de serviços; b) ter mais situações de urgências fechadas por falta de capacidade para as manter abertas. Resolver problemas de falta de oferta através de limitação de preços que essa oferta pode receber significa apenas que haverá capacidade / oferta que deixará de estar disponível. Se os preços mais elevados pagos nalguns casos resultaram da necessidade de pagar mais para convencer profissionais de saúde a prestar esse serviço, limitar esse pagamento garante que não haverá essa capacidade. (este argumento falha se as empresas de prestação de serviços estiverem a exercer poder de mercado, ou se os gestores das entidades que contratam forem incompetentes na negociação – se for um destes ou ambos os casos que a comissão teve em mente, então deverá disponibilizar a informação que sustenta essa sua posição). Se os preços elevados resultam da interação entre procura e oferta, então a introdução de preços máximos vai resultar apenas em mais interrupção de serviços.

A falta de capacidade de oferta tem que ser resolvida através de aumentos de oferta ou de redução da procura. Como não é razoável pensar-se que rapidamente se consegue baixar a utilização de urgências por parte da população, então a preocupação deverá ser a de aumentar a oferta. Toda a lógica económica sugere fortemente que limitar preços não é uma forma de aumentar a oferta!

Segundo, foi referido por representantes do Ministério da Saúde que parte da solução estrutural virá a estar no estatuto do SNS, e ouve em pelo menos um caso a referência à ideia da Direção Executiva do SNS. Sobre uma análise global do estatuto do SNS proposta em Outubro de 2021 (não consegui encontrar uma versão atualizada), há um comentário detalhado aqui. Mas relevante para esta discussão sobre o potencial que a direção executivo do SNS, tal como prevista pelo Governo, tem para resolver de forma estrutural é olhar para três artigos do estatuto do SNS: Artº 9 – fala em funcionamento em rede, planeamento estratégico, emitir normas e monitorar – como funções, entre outras, da Direção Executiva do SNS. Do Art 27º também dito que esta direção executiva tratará de fazer inquéritos de satisfação a utentes e a profissionais (calculo que seja contratar quem faça esses inquéritos). No art 14º-3, é dito que a “política de recursos humanos do SNS, baseada num plano plurianual de recursos humanos e definida pelo membro do Governo responsável pela área da saúde”. Daqui se depreende que NÃO é a direção executiva do SNS que terá um papel nesse aspecto. O Art 90º-2 estabelece que o pagamento a unidades do SNS é feito através de contratos programa, programas plurianuais a celebrar entre ACSS, ARS e as unidades do SNS, e estes contratos programa são autorizados pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério das Finanças. E mais uma vez não há aqui qualquer papel da Direção Executiva. Ou seja, num problema que envolve pagamentos e gestão de recursos humanos, o estatuto do SNS prevê que cada aspecto seja tratado por entidades diferentes, e nenhuma delas é a Direção Executiva do SNS, que se limitará a observar, monitorizar e emitir normas, além de perguntar a utentes e a profissionais se estão satisfeitos (repito para acentuar que com esta estrutura não consigo perceber como é que esta Direção Executiva do SNS irá resolver o problema estrutural em causa).

Embora não falado (ainda, pelo menos), no estatuto do SNS existe um elemento prometedor – dedicação plena com uma carta de compromisso com metas e objetivos (ou seja, pagamento de acordo com o desempenho), embora os detalhes venham a ser cruciais (e existe a possibilidade de fazer mal).

Outras soluções que têm sido, e que virão certamente a ser discutidas, a) equipas dedicadas nas urgências (com pagamentos adequados) – reforço da oferta; b) maior autonomia dos hospitais para contratar – reforço da oferta; c) ter estratégias de recrutamento a longo prazo – reforço a prazo; d) redução da procura (de urgências), reduzindo as falsas urgências (sobre o que são falsas urgências, ver este post para se ter uma outra visão e porque não será tão fácil assim, e porque por vezes não se está a olhar da melhor forma); e) rever as exigências de equipas de urgência de acordo também com a procura que existe em cada momento do dia (intensidade e tipologia); f) partilha de equipas para urgências entre diferentes hospitais (serem os profissionais de saúde a deslocarem-se para garantir a composição das equipas). E provavelmente há ainda mais outras ideias a serem exploradas.

Duas curiosidades finais: que lições podemos retirar da organização na ARS Norte para as outras ARS? o que sucedeu ao Grupo de Apoio Técnico à implementação das Políticas de Saúde (GAPS), com um grupo de cuidados hospitalares.

Sem a preocupação de ser exaustivo, sugestões: debate online – como superar a crise das urgências? (via LinkedIn) e declarações ao observador do presidente da comissão para as urgências de obstetrícia.

Sobre o trabalho da comissão Ayres de Campos, aqui (a avançar no que me parece ser o bom sentido, de reorganizar a oferta, incluindo concentração de serviços). [atualizado 24/06/2022]

Sobre proposta de solução, por Miguel Soares de Oliveira, no Observador (aqui) [atualizado 04/07/2022]

(nota: se houver sugestões adicionais, irei adicionando à lista)


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a propósito das urgências hospitalares, que valor pagar aos médicos?

Honestamente, não tenho a informação toda para poder dizer, mas chamou-me a atenção do titulo de um artigo no Público “Bastonário e sindicatos dos médicos querem horas extra com valores iguais às dos prestadores de serviços”. E chamou a atenção porque perde imediatamente a pergunta do que significa exactamente e porquê. É necessário um pouco de análise económica básica nesta discussão (livro de texto sugerido “The Economy”, disponível gratuitamente, para quem quiser ver melhor as bases dos argumentos seguintes).

Comecemos pela descrição da situação, baseada no que tem sido descrito em várias entrevistas e por vários orgãos da comunicação social: a) os médicos pertencentes aos quadros dos hospitais são, em alguns casos (crescentemente?), insuficientes para cumprir as obrigações de escala de urgência (obstetrícia e ginecologia tem sido a de maior destaque, existindo referência a outras especialidades). b) a possibilidade de horas extraordinárias por médicos da instituição [acima do contratualmente estabelecido, e no que possa ser decisão dos profissionais em fazer ou não essas horas extraordinárias adicionais (alterado 19h00, 16/06/2022)] não tem sido concretizada, em parte porque o valor adicional pago não é compensador (se fisicamente for impossível colocarem mais horas, então pagar horas extra com outro valor não resolve o problema de disponibilidade, tem que haver alguma possibilidade de decidir trabalhar mais horas se for remunerado de forma que seja aceite pelos médicos); c) há o recurso regular, mais nuns hospitais do que noutros, a empresas que organizam a prestação de serviços médicos (em que as empresas recrutam e organizam a prestação), sendo o valor hora pago mais elevado que o valor que seria pago por horas extraordinárias a pessoas do hospital e valor esse que difere de local para local de acordo com as informações publicamente disponíveis.

Se esta descrição captar as principais linhas da questão, significa que há um mercado de prestação de serviços médicos, que funciona com preços / valores pagos determinados pela necessidade (procura) e pela disponibilidade (oferta). Significa que em períodos ou locais onde há menos disponibilidade de médicos no regime de trabalho “à tarefa”, os valores pagos serão maiores. Significa que em períodos ou locais onde maior necessidade, com menos alternativas, os valores pagos serão maiores. Claro que para a comparação é relevante o valor recebido pelos médicos que desenvolvem a atividade por via de prestadores de serviços, e não o valor pago à empresa que organiza (que incluirá a respetiva margem de serviço).

Sendo assim, o ponto de comparação “valores iguais às dos prestadores de serviços” tem ambiguidade, porque não existe um valor independente da situação de cada local. E mais importante, esse valor de referência, preço dos prestadores de serviços, não é independente da disponibilidade dos médicos de cada hospital para darem horas extraordinárias adicionais, a um valor de remuneração mais elevado do que tem sido oferecido.

Em termos de análise económica, ao permitir que se pague valores mais elevados aos médicos do hospital para horas extraordinárias adicionais que façam, está-se a reduzir a necessidade (a procura) de serviços de prestadores de serviços médicos, o que fará baixar o preço pago nesses serviços. Ou seja, o que se pretende ter como ponto de referência irá variar de local para local, o que irá criar incerteza quanto à remuneração que deverá ser paga.

E aqui entra uma outra decisão – pretende-se que o pagamento destas horas extraordinárias seja feita em contexto de mercado (o que parece implícito na ideia de comparação com os valores pagos pelos prestadores de serviços), ou quer-se estabelecer um valor fixo e imutável às condições de cada hospital e especialidade?

A forma de organizar o processo irá depender da resposta a esta questão. Se for participação no mercado, é como se os médicos de cada hospital tivessem em cada momento que apresentar uma proposta para essas horas extraordinárias. O que levaria a uma versão dos hospitais contratarem os seus próprios médicos como se fossem prestadores de serviços. Essa possibilidade tem tudo para gerar incentivos perversos (complicar a atividade normal para serem necessárias mais horas extraordinárias, que seriam necessariamente feitas pelos próprios) – é por isso de saudar a posição da Ministra da Saúde em ter afastado (pareceu-me) essa possibilidade.

Ficamos então com a segunda alternativa – fixar um valor comum a todos os hospitais e especialidades, por hora mais. Terá menos flexibilidade, mas não se descartando a possibilidade de recorrer a empresas de prestadores de serviços são mantidos limites a eventuais situações perversas.

Indo nesta direção, há então que compreender que o valor atualmente recebido pelos médicos em regime de prestação de serviços não é o valor adequado. Deverá ser um valor mais baixo, uma vez que aumentando a “oferta” desta forma, o valor de equilíbrio no mercado de prestação de serviços será mais baixo.

Há, porém, uma ressalva – se a situação atual for tal que cada hora extraordinária adicional feita pelos médicos de cada hospital ser uma hora extraordinária a menos disponibilizada pelas empresas de prestação de serviços (os médicos deixariam de estar disponíveis para estas empresas na exacta proporção em passassem a estar disponíveis para o hospital), então o preço de equilíbrio ficaria inalterado. Só que neste caso, então esta medida também não resolveria o problema, uma vez que não estaria a aumentar a “oferta agregada”. A determinação do preço de referência para as horas extraordinárias que irão substituir empresas de prestação de serviços por medicos do próprio hospital com mais horas extraordinárias é por isso muito menos óbvia do que resulta das afirmações publicamente feitas (se houver algum objetivo de racionalidade económica, obviamente).

Dito isto, decorre desta análise rápida (e que admito possa necessitar de ser corrigida por algum elemento que não tenha considerado e seja relevante para o resultado final), que a definição do valor hora a ser pago não deve ser igual ao valor que tem sido praticado no mercado de prestação de serviços médicos. Deverá ser mais baixo, mesmo mantendo a posição de que deverá ser indiferente aos médicos optarem por fazer horas extraordinárias através do hospital diretamente ou através de uma empresa de prestação de serviços (esta “exigência” também poderá ser discutida, com base noutros elementos, mas aceito-a neste ponto de discussão, pois mesmo com esta condição, a conclusão mantém-se).

Em termos de opções, a melhor opção a médio e longo prazo é ter os quadros técnicos preenchidos de forma a assegurar o trabalho necessário em condições normais, e recorrer a horas extraordinárias / empresas de prestação de serviços (o que for menos oneroso) apenas em condições muito pontuais, e decorrentes de picos de procura ou choques de restrição de oferta não antecipados.

No imediato, a utilização de pagamento de trabalho extraordinário a médicos do próprio hospital é preferível, em termos técnicos e em termos financeiros, a ter uma dependência considerável de empresas de prestação de serviços médicos.

A determinação das remunerações tem que ser devidamente pensada, e não decidida no calor do momento ou em momento de pressão. E princípios de funcionamento económico devem ser incorporados na discussão, de forma a que sejam tomadas as melhores decisões.

Para discussão, e porque “quem disser o contrário é porque tem razão” (frase “roubada” a um livro de Mário de Carvalho).

(os contornos de uma resposta mais estrutural ficam para discussão próxima)


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Indicadores que pouco indicam

Há normalmente alguma vantagem em deixar assentar o pó das indignações públicas, qualquer que seja a razão subjacente, para depois regressar ao tema de uma forma mais fria, porventura mais rigorosa, e num processo de aprendizagem. 

Vem esta introdução a propósito de retomar a discussão da proposta de criação de um indicador de desempenho para os cuidados de saúde primários baseado na decisão de interrupção voluntária de gravidez indesejada. Face à polémica levantada, foi muito rapidamente assumido que o indicador não seria usado (está aqui o ponto final). A decisão é correta. Mas o processo que levou a este indicador ser apresentado e ter quase sido aprovado sugere fortemente que outras propostas, que não levantem indignação pública, mas que tenham os defeitos e problemas desta proposta, acabem por ser aprovados e colocados em prática. Ou seja, o problema não foi apenas a escolha infeliz de um indicador. O problema, a meu ver, é a forma de construção e pensamento que leva à proposta de um indicador ser incompleta e passível de introduzir erros futuros, noutros indicadores. Para sustentar esta afirmação, recupero o que é publicamente conhecido sobre a construção do indicador, para ilustrar onde falhou um passo crucial antes da proposta ser apresentada.

A intenção inicial é usar uma abordagem de pagamento por desempenho para atividades dos médicos de família na área de planeamento familiar. O problema, segundo percebi, é a insuficiente atividade preventiva desenvolvida neste campo. Deseja, quem elaborou a proposta de indicador, uma interação maior entre o médico de família e as pessoas que segue (aqui, fez-se, e bem a observação pertinente de não fazer recair apenas sobre a mulher a responsabilidade deste planeamento). Numa lógica de pagamento por resultados, o passo seguinte será encontrar um elemento observável e verificável de resultado sobre o qual possa ser alicerçado um pagamento. O realizar consultas específicas não é um indicador de resultado. Creio que terá surgido assim, depois de provavelmente terem sido discutidas várias propostas, a sugestão de ter como indicador a interrupção voluntária da gravidez em casos de gravidez não desejada. A lógica subjacente é simples – uma intervenção mais eficaz dos médicos de família deverá resultar num menor número de casos de gravidez não desejada, o que se traduz também num menor número de interrupções voluntárias de gravidez por esse motivo. Como a informação sobre interrupções voluntárias de gravidez realizadas no Serviço Nacional de Saúde é registada, bem como, calculo, motivos clínicos que tenham levado a essa situação, torna-se possível, de forma anonimizada, conhecer o desempenho de cada médico de família neste indicador. É recolhido de forma rotineira, com mecanismos fiáveis, e é um indicador relacionado com a atividade que se pretende promover. Até aqui, de um ponto de vista de construção lógica, faz todo o sentido. Esta construção da relação de causalidade entre atividade e desempenho é necessária para definir um bom indicador. Contudo, não é suficiente. Há elementos adicionais que têm de ser analisados. Esses elementos adicionais lidam com a informação que o indicador pode dar sobre o desempenho. Não basta que uma atividade cause um indicador. É fundamental que não existam outros motivos importantes para que o indicador varie, e sobretudo que o indicador não seja influenciado por outros fatores que estejam debaixo do controle do decisor para o qual se pretende criar um mecanismo de remuneração de acordo com o desempenho. Ou seja, é preciso também analisar de forma completa em que condições é que o indicador transmite informação apenas, ou sobretudo, sobre a atividade que se pretende remunerar. Voltando à interrupção voluntária da gravidez. É possível e provável que haja muitos fatores que levem à decisão de fazer essa interrupção voluntária da gravidez, não sendo de todo claro que uma boa intervenção de planeamento familiar será o elemento dominante na evolução do indicador. Em termos técnicos, o indicador é um sinal com muito ruído. Só este elemento de força do sinal gerado é suficientemente importante para exigir um cuidado metodológico forte na apresentação de um qualquer indicador. Adicionalmente, neste caso concreto, existe ainda uma outra possibilidade – o médico de família poderá eventualmente tentar influenciar a decisão de interrupção voluntária da gravidez depois da ocorrência desta (e não apenas no momento em que contribui para decisões de saúde reprodutiva que levam a menor número de situações de gravidez não desejada, e logo menor número de interrupções voluntárias da gravidez). Ou seja, o indicador tanto pode ser resultado de uma intervenção a nível de planeamento familiar como ser resultado de uma intervenção na decisão de realizar ou não a interrupção voluntária de gravidez. A ideia inicial era remunerar a primeira, e não a segunda, intervenção. Não há forma evidente de como a evolução do indicador pode ser separada no que diz respeito à primeira intervenção ou no que diz respeito à segunda intervenção. Adicionalmente, tornou-se muito claro, em toda a discussão, o não ser eticamente aceitável que a intervenção do médico de família pudesse eventualmente ser no sentido de recomentar a não interrupção de gravidez para favorecer a sua remuneração. Daqui se infere que o processo que levou à apresentação de um indicador não teve o cuidado técnico, metodológico, de exaustivamente analisar se o mesmo indicador poderia resultar de outras intervenções que não aquela que se desejava promover. O caminho da variação do indicador para o que lhe deu origem não termina forçosamente numa melhor intervenção do médico de família a nível de planeamento familiar. Se esta análise tivesse sido realizada, provavelmente o problema que levou à forte reação pública teria sido identificado e o indicador não teria sido proposto. Assim, parece-me provável que o próprio processo de criação de indicadores tem problemas metodológicos, e deverá ser revisto. A criação de indicadores não é um exercício que se possa fazer de modo amador. E essa é uma lição a aprender deste episódio (embora, honestamente, não tenha grandes esperanças que venha a ser mudado algo no processo).

Assim, se a indignação pública com a proposta foi baseada, e bem, em questões de princípio que não foram devidamente analisadas ou valorizadas, o processo técnico, em termos de metodologia, que levou à apresentação do indicador também foi incompleto. E se a indignação gerada impediu que este indicador viesse a ser contemplado, a existência de um processo incompleto poderá levar ao uso de indicadores desadequados, desde que não gerem uma visibilidade pública adversa. Há indicadores que pouco indicam sobre o que se pretende valorizar. Há indicadores que podem ser manipulados (geridos, de uma forma legal), ficando desvirtuada a intenção inicial. Espero que este episódio leve quem pensa nestes indicadores a procurar ter um pouco mais de rigor nas metodologias usadas.