O recente relatório do FMI tem despertado grandes reacções nos últimos dias. Tendo lido a introdução, o capítulo das pensões e o capítulo da saúde, há três aspectos:
a) as reacções não têm correspondência nos textos – que depois de lidos são claramente menos radicais do que as reacções públicas fariam supor.
b) os diferentes capítulos possuem graus de profundidade e qualidade de análise diferentes
c) o capítulo dedicado à saúde apresenta muito menor qualidade do que o das pensões, ou mesmo do que a própria introdução.
Embora seja começar pelo fim, irei comentar primeiro o capítulo VII dedicado à analise do sector da saúde. O capítulo encontra-se organizado como todos os outros em “background”, “key issues” e “reform options”.
A descrição dos aspectos de background é breve, e focando em quatro aspectos apenas: grande aumento da despesa pública com cuidados de saúde nas últimas três décadas, grande melhoria do estado de saúde da população nesse mesmo período, existência de coberturas duplicadas em termos de financiamento, existência de uma elevada intensidade de médicos (considerada excessivamente onerosa no relatório).
Daqui retiram as questões centrais:
1) insustentabilidade do sistema de saúde – considerando que embora as despesas públicas em cuidados de saúde estejam em linha com a média da OCDE, encontram pressões para crescimento da despesa pública em saúde num “excess cost growth”, no envelhecimento da população e num número de jovens contribuintes que estagnou.
Ora, esta primeira questão é pouco sustentada – primeiro, não é apresentada uma definição do que é sustentabilidade (sem um critério, como podemos saber se há ou não há sustentabilidade?), segundo, devemos ser precisos – está-se a falar de sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde. O sistema de saúde português é mais do que o SNS – tem prestadores e tem financiadores privados. De acordo com a Conta Satélite da Saúde publicada pelo INE, o SNS compra cerca de 1/3 da sua despesa a fornecedores privados. A sustentabilidade técnica – capacidade de fazer, capacidade de prestar os cuidados de saúde que a população precisa – não é uma questão. Mas é diferente da sustentabilidade financeira (ter fundos para pagar aos prestadores de cuidados de saúde).
De acordo com a literatura internacional e com evidência para Portugal, o envelhecimento da população é um contribuinte mas não muito grande para o crescimento das despesas com saúde, ao contrário do que parece considerar o FMI. O consenso internacional da literatura sobre vários países e vários períodos de tempo, e Portugal não é diferente, o principal factor de crescimento das despesas com cuidados de saúde é a evolução tecnológica, logo seguida em importância por efeitos rendimento, e só depois por efeitos associados com o envelhecimento. Aliás, já em posts anteriores procurei evidenciar com números a pequena contribuição do envelhecimento para as despesas com cuidados de saúde.
Adicionalmente o relatório do FMI menciona um conceito de “excess cost growth” que não é explicado – remete para uma nota de pé de página que permite comprar um livro onde estará o artigo que justifica estas afirmações. O texto não se encontra disponível, livre de custos para análise, mas deverá ser feita uma análise cuidada do que lá estará. As contas que aí sejam apresentadas, por díspares do que tem sido a literatura internacional, deverão merecer cuidado escrutínio académico (tive-o há semanas na mão, mas não li esse capítulo, infelizmente). A importância dessa verificação crítica está em que apenas em nota de pé de página é comentada a estimativa da Comissão Europeia no Ageing Report de 2012 que prevê para o período 2015-2030 um acréscimo de 0.7 pontos percentuais do PIB na despesa pública em saúde (e antes das medidas actualmente em vigor para contenção da despesa pública terem pleno efeito). A diferença entre a estimativa da Comissão Europeia e a do FMI é justificada como sendo devida ao facto de estimativa da EC não considerar os efeitos da evolução tecnológica. Mas então isso significa que nos factores acima indicados o “excess cost growth” terá que ser tecnologia e o envelhecimento ter um pequeno papel (como sugere a literatura internacional, repito).
Sobre as medidas em vigor, o relatório do FMI argumenta que a redução para 6,5% do PIB da despesa pública com saúde não é ainda suficiente, dizendo que há “investigação que demonstra que a exploração dos ganhos de eficiência potenciais podem resultar em poupanças que em média serão 2% do PIB até 2017 nas economias desenvolvidas” (tradução livre minha).
Ora consultando a referência apresentada no relatório do FMI fico com dúvidas sobre esta afirmação – embora não haja detalhe completo sobre as contas realizadas, pois a referência é um conjunto de slides powerpoint, tomemos como bons esses resultados. São obtidos com dados anteriores a 2007, logo antes de qualquer das medidas tomadas no âmbito dos últimos anos. Segundo e mais importante, a mesma figura que apresenta um valor de 2% de poupança média para a OCDE apresenta um valor de 1% para Portugal. Sendo plausível que várias das medidas entretanto adoptadas em Portugal fizessem parte do que seria esse ganho de eficiência previsto, e tomando o valor de 1% fica a sensação de que falar em 2% adicionais é uma interpretação claramente abusiva por parte do FMI. A ser levada em consideração, deverá ser muito melhor explicada como essa exigência potencial é compatível com a própria fonte referenciada pelo relatório do FMI. Noto também que se em muitas outras áreas da discussão do FMI o valor médio da OCDE é apresentado como referência, neste caso como Portugal já está perto do valor médio, arranja-se outro ponto de comparação. Nada contra termos pontos de comparação diferentes da média da OCDE, uma vez que é uma visão completamente arbitrária, mas pelo menos há que justificar muito cuidadosamente porque se desvia desse critério neste caso específico.
Sobre as opções de reforma:
A proposta de seleccionar áreas de ineficiência é uma recomendação genérica, facilmente partilhável. Contudo, há um aspecto metodológico que deverá ser considerado no discussão. Se a preocupação é com a sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde, então deverá ser adoptada uma perspectiva dinâmica – implica pensar em como é que as diferentes medidas afectam a taxa de crescimento da despesa pública em cuidados e saúde e não quanto se ganha em termos de despesa num ano ou dois. É nesse ponto de vista que devemos ler as propostas apresentadas.
1) alterar a presença relativa das profissões de saúde, dando mais importância aos enfermeiros. É uma proposta que vai de encontro ao que vem sendo discutido e relativamente aceite em termos de política de saúde em Portugal. Será uma questão de tempo até à sua concretização.
2) limitação do uso repetido de horas extraordinárias – aqui o recente acordo assinado com os sindicatos deverá ter um papel importante, a acumular às restantes medidas (incluindo reduções salariais). Sem ter sido apresentada evidência ou qualquer cálculo, há um julgamento de valor, espera-se que informado, de que é “improvável” que esse acordo seja suficiente. Não há a este respeito informação pública disponível sobre contas e previsões que permitam qualificar esse “improvável”. Estando o documento colocado para participação na discussão pública, seria útil que o FMI apresentasse a base factual (pode ser via link para algum documento de trabalho) da sua adjectivação. Em alternativa, o ministério da saúde e/ou os sindicatos poderão libertar informação que tenha estado subjacente ao seu acordo, como contribuição para a discussão pública. A seguir, com base em dados.
3) No terceiro ponto, há certamente uma gralha, a atender à explicação da proposta – utilização da rede de cuidados continuados como forma de não ocupar camas hospitalares de agudos de elevado custo. O desenvolvimento da rede de cuidados continuados, via capacidade do sector público ou utilizando o sector social como tem sido feito, deverá por isso continuar, e é também um aspecto que parece estar presente nas actuais intenções de política de saúde.
4) A redução da utilização das urgências a favor dos cuidados de saúde primários é a quarta opção proposta. Uma vez mais estamos na presença de algo que se conhece ser um ponto fraco do Serviço Nacional de Saúde, e a procura de soluções não será uma novidade. No último ano procurou-se influenciar essa procura de urgências com recurso ao aumento das taxas moderadoras, sendo relevante avaliar o que se passou. Note-se que o efeito de aumento das taxas moderadoras foi mitigado pelo aumento da população isenta desse pagamento. De qualquer modo, há a sensação de que o factor determinante para a utilização desnecessária das urgências estará na procura de uma resposta que inclua também a possibilidade de fazer rapidamente exames e análises, o que poderá passar por alguma revisão do que pode ser feito a nível de cuidados de saúde primários. De qualquer modo, não há novidade, há apenas necessidade de políticas mais informadas para serem mais orientadas e desejavelmente mais eficazes na redução do recurso à urgência.
5) Proposta de integração dos subsistemas no SNS, sendo que é uma vez mais algo que repete o que está presente no Memorando de Entendimento, dando-lhe apenas um aprofundamento no sentido de considerar as forças armadas como uma parte especial do SNS. Resta saber se essa parte especial estaria às ordens do comando militar ou ministério da saúde, aspecto que não é clarificado mas que poderá criar problemas de jurisdição e comando. Mais uma vez, as diferenças são de detalhe para uma questão que se sabe ter de ser resolvida, e que tem vindo a ser adiada.
6) controle das ineficiências de excesso de consumo de cuidado de saúde. Neste ponto, o relatório do FMI é confuso, na melhor interpretação possível. Mistura de forma inapropriada taxas moderadoras com comparticipação de medicamentos. Pode ser apenas confusão de escrita, mas também poderá resultar de confusão de conceitos. É um parágrafo para não ler. Defende essencialmente que deverão ser usadas taxas moderadoras mais elevadas, embora ao contrário do avançado por alguma imprensa não sejam referidos valores concretos.
Os problemas conceptuais deste parágrafo surgem a dois níveis. Por um lado, medicamentos já têm uma comparticipação privada bastante elevada. Por padrões europeus, a comparticipação privada em medicamentos em Portugal é das mais elevadas da Europa, segundo os dados da OCDE. Adicionalmente, a comparticipação privada não é receita do SNS. Os medicamentos são fornecidos por entidades privadas, e o respectivo preço é pago em parte pelo SNS e em parte pelo utente. Esta última além de ser elevada tem estado a aumentar desde Outubro de 2010 (antes da troika). Logo ter na mesma frase a referência às receitas das taxas moderadoras e medicamentos não é adequado.
Por outro lado, centrando a atenção nos serviços com taxas moderadoras propriamente ditas, se o objectivo destas é reduzir a utilização excessiva de cuidados de saúde (é esse o título desta proposta), se o objectivo for alcançado então não haverá cobrança das taxas moderadoras porque se cidadãos não vão às urgências e vão aos cuidados de saúde primários irão pagar uma taxa moderadora substancialmente menor. O objectivo de receita nas taxas moderadoras não é relevante e pode ser mesmo contraditório com o objectivo de redução da procura de urgências. De qualquer forma, os pagamentos de taxas moderadoras não têm como intenção ser uma parte substancial de financiamento do Serviço Nacional de Saúde (até porque se o fossem destruiriam valor social de protecção financeira em caso de doença, aspecto que também procurei exemplificar num outro post).
7) o último ponto introduz medidas complementares, depois de falar em “fiscal affordability”, equidade e eficiência: definição das prioridades e âmbito do que é garantido pelo SNS, aumentar o papel do sector privado incluindo a prestação e o aspecto de seguro. A sustentação para esta afirmação é dada pelo livro do FMI sobre reformas no sector público de saúde. Ora, este capítulo, ao contrário de outros do mesmo livro, li com alguma atenção há algumas semanas, para poder produzir alguns comentários a pedido do jornal “i”, e dessa leitura não era nada evidente que a recomendação para Portugal, com base nos princípios estabelecidos na própria análise realizada, fosse esta. A minha apreciação a partir da mesma base de informação está aqui. Há por isso um pedido de maior clarificação de porque é esta a proposta do FMI, com base no capítulo mencionado, que tem estimativas econométricas de impacto de possíveis reformas e as condições em que esse impacto pode ser esperado. Pelo menos, deveria ser argumentado que as condições para o impacto positivo e maior do que as alternativas estão preenchidas no SNS português.
Globalmente, a análise e as propostas produzidas são relativamente pobres, e seria de esperar mais, até pelas ideias apresentadas a propósito do sistema de pensões, que são mais interessantes do que as apresentadas no campo da saúde. Aqui, nesta área, ou as medidas propostas estão já a ser consideradas e foram identificadas há algum tempo, ou então resultam de análises incompletas ou pelo menos incompletamente justificadas, havendo argumentos no sentido contrário ao da proposta feita. Há também diversas áreas de intervenção que não foram mencionadas com o detalhe devido – área do medicamento e respectiva distribuição e entrada de novos produtos, prescrição e normas de orientação clínica – como o fazer e qual o impacto esperado, o papel da tecnologia e controle da adopção dessa nova tecnologia, etc…
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