Num texto recente explorei o argumento em que à necessidade de ajustamento no padrão de consumo privado não corresponde necessariamente uma situação de consumo desmedido e injustificado face ao enquadramento económico que estava presente. O elemento crucial que motiva o actual ajustamento no consumo das familias é a falha da economia em conseguir aumentos de produtividade que sustentem crescimento económico. O passo seguinte é perceber o que se passou do lado do estado e do lado das empresas.
Começando pelo estado. O estado tem, nas suas funções económicas, objectivos que não podem ser prosseguidos de forma individual: estabilização macroeconómica, resposta a falhas de mercado e redistribuição de rendimento são as que me parecem fundamentais. O formato exacto de como cada destes objectivos é alcançado (ou se tenta alcançar) influencia todos os outros e também a capacidade de o conseguir alcançar. Todos estes objectivos implicam alguma forma de despesa pública, pelo que é necessário obter receita. No campo da obtenção da receita, o estado possui o poder coercivo de obrigar a contribuições por parte da população e das empresas.
Parte dos problemas actuais da economia portuguesa resultam da má utilização destes quatro elementos. A estabilização macroeconómica passou, em dado momento, a ser sinónimo de grandes obras públicas, sem quase cuidar dos seus efeitos sobre a economia. A resposta a falhas de mercado serviu de pretexto para uma intervenção extensa do estado como empresário, mas sem correr os riscos de ser empresário (ou seja, falhar, falir e sair). A redistribuição de rendimento implica desequilíbrios que precisam de ser compensados, mas cujo verdadeiro efeito foi sempre sendo adiado. E quando se fala em redistribuição de rendimento, tem-se que pensar nas funções de seguro (por exemplo, apoio no desemprego), mas também nas pensões, além dos óbvios mecanismos de apoio a falta de rendimento.
Estas despesas públicas têm que encontrar contrapartida no crescimento da receita fiscal (entendida em sentido lato) ou na emissão de dívida pública. O crescimento da receita fiscal, para taxas de imposto constantes depende do crescimento da economia. Aumentos das taxas de imposto dão um aumento da carga fiscal num ano, mas não garantem a capacidade de crescimento dessa receita de forma sustentada se não for crescimento da economia subjacente. A emissão de dívida por seu lado gera compromissos de pagamento de juros e de pagamento do empréstimo que serão factor de aumento da despesa pública futura. A solução de emissão de dívida depende de haver alguém que esteja disposto a comprar a essa dívida, na expectativa do retorno de juros que terá essa cedência de fundos. Quando uma destas contrapartidas falha, ou é compensada pela outra ou tem que ocorrer uma redução de despesa pública. No caso português, com a falta de crescimento económico mas aumento da despesa pública, a compensação por emissão de dívida foi possível durante algum tempo, mas agora torna-se necessário outro factor entrar em campo.
O estado ficou também refém das expectativas de crescimento da economia que existiam há uma década atrás não se terem materializado. Contudo, o estado contribuiu de forma activa para que o crescimento da economia fosse menor do que poderia ter sido. Não o fez com esse objectivo claro, mas acabou por ser esse o efeito. Para esse papel do estado contribuiu, a meu ver, em parte um efeito de crowding-out – o financiamento do estado por emissão de dívida tem que incluir as actividades das grandes empresas públicas, dos grandes investimentos e das parcerias público-privadas que atraíram fundos para investimentos e actividades de pouco retorno produtivo, a nível nacional, a nível regional e a nível local, e que se adivinharia à partida serem de pouco retorno produtivo.
Com o argumento de “regulação de mercados”, o estado conseguiu também justificar uma actividade quase empresarial mas sem defrontar os riscos e os incentivos que esses riscos criam para a eficiência que o sector privado tem que enfrentar. A “fuga” à própria burocracia acumulada de décadas (séculos) do estado pelo próprio estado gerou estruturas paralelas (institutos públicos, por exemplo; empresas multimunicipais, etc.) que só adicionou complexidade e despesa.
Toda esta evolução deixa o estado com problemas para cumprir os seus objectivos base. Por exemplo, na gestão macroeconómica que interage com as funções de seguro face à ocorrência de desemprego, é natural que as despesas aumentem por essa via, o que deveria ser compensado por menor despesa futura, nos ciclos bons da economia. Mas se nesses ciclos bons, as maiores receitas são usadas para gerar maior despesa, então rapidamente a função de estabilização intertemporal deixa de ser possível.
Adicione-se a estes factores de dentro do funcionamento do estado o facto de as entidades privadas se terem apercebido, conscientemente ou não, que o poder coercivo do estado, via regulamentação e regulação ou via sistema fiscal, é uma fonte de garantia de receitas, que lhes permite uma vida sossegada, sem os riscos inerentes à concorrência privada. E é sempre fácil apresentar a protecção, mais ou menos explícita, de uma empresa ou actividade como sendo de interesse público ou merecendo esse apoio. Sobretudo quando o estado tem (ou tinha) a capacidade de remeter facilmente para o futuro os custos inerentes, recolhendo as vantagens no momento imediato. A construção de auto-estradas é sempre justificável pela acessibilidade do e ao interior. A recuperação de edifícios municipais é justificável pela dignidade das funções. A construção de piscinas é justificável pela redução das desigualdades de equipamentos (mesmo que depois não funcionem). A concessão de benefícios fiscais é justificável pela importância da indústria ou sector para o desenvolvimento da economia e para a protecção do emprego em determinadas regiões. A imposição de taxas obrigatórias que revertem a favor de empresas é justificável pelo serviço público (chegando-se mesmo ao ponto, como já assinalaram algumas pessoas, de se ter a cobrança de IVA sobre taxas criadas pelo próprio estado). Só falando nos benefícios é fácil as entidades privadas estabelecerem contratos e relações com o estado que na verdade constituem formas implícitas e indirectas de usarem o poder coercivo do estado para assegurarem as suas receitas, frequentemente com a vantagem de com maiores custos conseguirem também maiores receitas.
Desta forma, o estado foi criando com o passar do tempo toda uma teia de despesas e compromissos que são de decisão própria nalguns casos mas que noutros casos constituem “direitos” cedidos a privados sobre as suas receitas (daí a dificuldade com as parcerias público-privadas, por exemplo; ou com as dívidas assumidas perante fornecedores extra-orçamentos das entidades).
Dentro deste quadro, pode-se dizer que o estado “viveu acima das possibilidades”? em certa medida, sim, o estado claramente foi além das suas funções normais, e sucessivos governos deixaram-se arrastar para a “função” de “grande planeador social que iria transformar e revolucionar mentalidades, trazendo o progresso e felicidade a todo o país e a todos os portugueses”. Acresce que os portugueses em geral, não excluindo daqui a maioria do tecido empresarial, vê no estado a protecção e a responsabilidade por todos os eventos. Se há uma seca, é o estado que tem de dar seguro; se há um negócio que falha, é por falta de apoio do estado. É raro ouvir-se alguém dizer que o seu negócio falhou porque a ideia afinal não era tão boa assim, ou porque não se empenhou o suficiente, ou porque simplesmente teve azar no momento e condições. E assim o estado foi alargando a sua intervenção para áreas menos naturais muitas vezes por solicitação de grupos da própria sociedade portuguesa e da economia.

