Momentos económicos… e não só

About economics in general, health economics most of the time


3 comentários

viver acima das possibilidades (2)

Num texto recente explorei o argumento em que à necessidade de ajustamento no padrão de consumo privado não corresponde necessariamente uma situação de consumo desmedido e injustificado face ao enquadramento económico que estava presente. O elemento crucial que motiva o actual ajustamento no consumo das familias é a falha da economia em conseguir aumentos de produtividade que sustentem crescimento económico. O passo seguinte é perceber o que se passou do lado do estado e do lado das empresas.

Começando pelo estado. O estado tem, nas suas funções económicas, objectivos que não podem ser prosseguidos de forma individual: estabilização macroeconómica, resposta a falhas de mercado e redistribuição de rendimento são as que me parecem fundamentais. O formato exacto de como cada destes objectivos é alcançado (ou se tenta alcançar) influencia todos os outros e também a capacidade de o conseguir alcançar. Todos estes objectivos implicam alguma forma de despesa pública, pelo que é necessário obter receita. No campo da obtenção da receita, o estado possui o poder coercivo de obrigar a contribuições por parte da população e das empresas.

Parte dos problemas actuais da economia portuguesa resultam da má utilização destes quatro elementos. A estabilização macroeconómica passou, em dado momento, a ser sinónimo de grandes obras públicas, sem quase cuidar dos seus efeitos sobre a economia. A resposta a falhas de mercado serviu de pretexto para uma intervenção extensa do estado como empresário, mas sem correr os riscos de ser empresário (ou seja, falhar, falir e sair). A redistribuição de rendimento implica desequilíbrios que precisam de ser compensados, mas cujo verdadeiro efeito foi sempre sendo adiado. E quando se fala em redistribuição de rendimento, tem-se que pensar nas funções de seguro (por exemplo, apoio no desemprego), mas também nas pensões, além dos óbvios mecanismos de apoio a falta de rendimento.

Estas despesas públicas têm que encontrar contrapartida no crescimento da receita fiscal (entendida em sentido lato) ou na emissão de dívida pública. O crescimento da receita fiscal, para taxas de imposto constantes depende do crescimento da economia. Aumentos das taxas de imposto dão um aumento da carga fiscal num ano, mas não garantem a capacidade de crescimento dessa receita de forma sustentada se não for crescimento da economia subjacente. A emissão de dívida por seu lado gera compromissos de pagamento de juros e de pagamento do empréstimo que serão factor de aumento da despesa pública futura. A solução de emissão de dívida depende de haver alguém que esteja disposto a comprar a essa dívida, na expectativa do retorno de juros que terá essa cedência de fundos. Quando uma destas contrapartidas falha, ou é compensada pela outra ou tem que ocorrer uma redução de despesa pública. No caso português, com a falta de crescimento económico mas aumento da despesa pública, a compensação por emissão de dívida foi possível durante algum tempo, mas agora torna-se necessário outro factor entrar em campo.

O estado ficou também refém das expectativas de crescimento da economia que existiam há uma década atrás não se terem materializado. Contudo, o estado contribuiu de forma activa para que o crescimento da economia fosse menor do que poderia ter sido. Não o fez com esse objectivo claro, mas acabou por ser esse o efeito. Para esse papel do estado contribuiu, a meu ver, em parte um efeito de crowding-out – o financiamento do estado por emissão de dívida tem que incluir as actividades das grandes empresas públicas, dos grandes investimentos e das parcerias público-privadas que atraíram fundos para investimentos e actividades de pouco retorno produtivo, a nível nacional, a nível regional e a nível local, e que se adivinharia à partida serem de pouco retorno produtivo.

Com o argumento de “regulação de mercados”, o estado conseguiu também justificar uma actividade quase empresarial mas sem defrontar os riscos e os incentivos que esses riscos criam para a eficiência que o sector privado tem que enfrentar. A “fuga” à própria burocracia acumulada de décadas (séculos) do estado pelo próprio estado gerou estruturas paralelas (institutos públicos, por exemplo; empresas multimunicipais, etc.) que só adicionou complexidade e despesa.

Toda esta evolução deixa o estado com problemas para cumprir os seus objectivos base. Por exemplo, na gestão macroeconómica que interage com as funções de seguro face à ocorrência de desemprego, é natural que as despesas aumentem por essa via, o que deveria ser compensado por menor despesa futura, nos ciclos bons da economia. Mas se nesses ciclos bons, as maiores receitas são usadas para gerar maior despesa, então rapidamente a função de estabilização intertemporal deixa de ser possível.

Adicione-se a estes factores de dentro do funcionamento do estado o facto de as entidades privadas se terem apercebido, conscientemente ou não, que o poder coercivo do estado, via regulamentação e regulação ou via sistema fiscal, é uma fonte de garantia de receitas, que lhes permite uma vida sossegada, sem os riscos inerentes à concorrência privada. E é sempre fácil apresentar a protecção, mais ou menos explícita, de uma empresa ou actividade como sendo de interesse público ou merecendo esse apoio. Sobretudo quando o estado tem (ou tinha) a capacidade de remeter facilmente para o futuro os custos inerentes, recolhendo as vantagens no momento imediato. A construção de auto-estradas é sempre justificável pela acessibilidade do e ao interior. A recuperação de edifícios municipais é justificável pela dignidade das funções. A construção de piscinas é justificável pela redução das desigualdades de equipamentos (mesmo que depois não funcionem). A concessão de benefícios fiscais é justificável pela importância da indústria ou sector para o desenvolvimento da economia e para a protecção do emprego em determinadas regiões. A imposição de taxas obrigatórias que revertem a favor de empresas é justificável pelo serviço público (chegando-se mesmo ao ponto, como já assinalaram algumas pessoas, de se ter a cobrança de IVA sobre taxas criadas pelo próprio estado). Só falando nos benefícios é fácil as entidades privadas estabelecerem contratos e relações com o estado que na verdade constituem formas implícitas e indirectas de usarem o poder coercivo do estado para assegurarem as suas receitas, frequentemente com a vantagem de com maiores custos conseguirem também maiores receitas.

Desta forma, o estado foi criando com o passar do tempo toda uma teia de despesas e compromissos que são de decisão própria nalguns casos mas que noutros casos constituem “direitos” cedidos a privados sobre as suas receitas (daí a dificuldade com as parcerias público-privadas, por exemplo; ou com as dívidas assumidas perante fornecedores extra-orçamentos das entidades).

Dentro deste quadro, pode-se dizer que o estado “viveu acima das possibilidades”? em certa medida, sim, o estado claramente foi além das suas funções normais, e sucessivos governos deixaram-se arrastar para a “função” de “grande planeador social que iria transformar e revolucionar mentalidades, trazendo o progresso e felicidade a todo o país e a todos os portugueses”. Acresce que os portugueses em geral, não excluindo daqui a maioria do tecido empresarial, vê no estado a protecção e a responsabilidade por todos os eventos. Se há uma seca, é o estado que tem de dar seguro; se há um negócio que falha, é por falta de apoio do estado. É raro ouvir-se alguém dizer que o seu negócio falhou porque a ideia afinal não era tão boa assim, ou porque não se empenhou o suficiente, ou porque simplesmente teve azar no momento e condições. E assim o estado foi alargando a sua intervenção para áreas menos naturais muitas vezes por solicitação de grupos da própria sociedade portuguesa e da economia.

 


Deixe um comentário

sobre a discussão da “refundação do estado social”

no dinheirovivo de hoje, com a proposta de três planos de análise. O tema não é pacífico e desperta muitas reacções emocionais, sobretudo no momento actual. Por isso mesmo, é relevante tentar uma organização da discussão e uma discussão aberta e sensata.

 

Conseguiremos fazer? (refundar o Estado social)

05/11/2012 | 00:17 | Dinheiro Vivo

O tema quente do momento é a refundação do memorando (revisão do estado social ou outra combinação de termos similares). As reacções têm sido as esperadas, com muito de combate político, como teria de ser necessariamente nas actuais condições.

Há a necessidade de tornar esta discussão objectiva e produtiva.

O ponto de partida é saber se é necessária uma revisão do funcionamento do sector público. Face aos problemas actuais, há que reconhecer que estes não nasceram com a crise internacional, que os veio apenas agravar. De uma forma genérica, os problemas centrais do sector público estão três áreas. A primeira é o processo de decisão política da despesa pública (porque se gasta, onde se gasta, quem decide, como decide). Dentro desta área caiem as decisões sobre as auto-estradas, SCUT ou não, as PPP, as obras de arte nas rotundas, os pequenos e os grandes desvios nas obras públicas mal planeadas, mas também as grandes empresas públicas, como as de transportes, que serviram de veículo para investimentos que o Estado não podia ou não queria suportar no seu orçamento.

A segunda área está na produtividade do sector público. O sector público ajudou a absorver num momento histórico um tremendo choque no mercado de trabalho, na sequência da descolonização. Mas nos últimos 20 anos foi incapaz de se orientar para servir o cidadão, apesar de algumas bem sucedidas acções de modernização. Os serviços da administração central e local revelam todos os dias a quem por eles passa situações que não se poderão manter. Nalguns casos, apenas a dispensa de pessoas poderá ajudar a resolver essas situações.

Antecipo que a propósito deste argumento se venha falar do número de funcionários públicos em Portugal comparado com outros países. O perigo da estatísticas mal usadas está ai para confundir a discussão. Por exemplo, desde que se criaram os hospitais EPE, os seus trabalhadores deixaram de contar para estas estatísticas, apesar de continuarem a ser empregues pelo sector público. Aqui há mesmo uma necessidade de definir processos e tarefas dentro do sector público, ainda que todas as funções actuais não se alterassem.

A terceira área de revisão está precisamente nas funções que se pretende que o Estado desempenhe numa sociedade moderna. Não pode ser unicamente uma discussão de cortes de despesa e de custos. O quanto custa terá que ser introduzido na discussão em algum momento, mas primeiro é preciso definir qual o papel do Estado em várias áreas de intervenção, e qual a melhor forma de fazer essa intervenção. Surge nesta área a discussão de prestação directa pelo Estado, ou de intervenção privada, a contrato ou não com o Estado.

Cada uma destas três áreas envolve decisões que não pacíficas nem fáceis. É pouco provável que actuar apenas numa destas áreas resolva de forma permanente a questão central do Estado ser uma força de desenvolvimento da sociedade (e da economia) e não um factor de resistência a esse desenvolvimento.

Tendo presentes estas três áreas, há que perguntar se acreditamos que temos a capacidade de fazer a reflexão sobre elas de forma ponderada, e que leve a decisões operacionais. Ora, é aqui que o Estado pode observar o que o mundo empresarial costuma fazer. Raramente mudanças desta natureza são feitas com base apenas em pensamento interno. Há o recurso a consultores externos, que trazem duas vantagens, uma visão de fora e descomprometida, e conhecimento de outras situações similares ou próximas. No caso do sector público, os “consultores” são naturalmente entidades como o Fundo Monetário Internacional ou a OCDE, por exemplo. As decisões serão nacionais (exige-se que assim seja) mas podemos beneficiar da visão e conhecimento que poderão vir de fora.

Há que mostrar, por parte de todos os agentes políticos, económicos e sociais, a capacidade de discutir e decidir, ouvindo todas as visões, incluindo as que vêm de fora, para que como sociedade tomemos decisões sobre o sector público que queremos ter. Conseguiremos fazer?


1 Comentário

o estado social, o ministro das finanças e o futuro

ontem, o ministro das finanças teve uma afirmação que deve ser levada a sério se queremos evitar ciclos de dívida pública e de austeridade – o que pretendemos do estado em termos de despesa é superior ao que estamos dispostos a pagar. As consequências a retirar desta afirmação podem ser muitas, a primeira em termos temporais deveria ser uma avaliação do papel do estado, em tudo o que o estado faz (e que não é apenas o dito “estado social”). E para fazer essa discussão no futuro próximo há que primeiro desbloquear a razão pela qual essa discussão, que parece tão óbvia e que tantos já referiram antes, ainda não se processou.

Um dos principais motivos, senão mesmo o principal, é a presença de custos concentrados e benefícios dispersos em cada área, ou de uma forma mais ligeira, o problema da conta do restaurante – a dividir por todos, cada um consome mais do que individualmente. Na discussão sobre os benefícios pretendidos do estado, na discussão das actividades que o estado deve desempenhar, há sempre a presunção do custo a dividir por todos, o que faz com que todos reclamem mais e eventualmente consigam mais. Não sei bem como alterar estas percepções nas propostas, talvez em cada proposta que surja indicar quanto será preciso aumentar de IVA para que ela seja concretizada?

Como segundo passo, ir além de focar apenas no estado social. A divisão administrativa do país, com a determinação da dimensão mais adequada para os serviços que se pretende decidir a nível local, e a forma como o estado dá trabalho a si próprio deveriam ser reavaliados. É certo que teremos de pensar no estado social, nomeadamente nas três grandes áreas: pensões, saúde e educação, mas não devem ser as únicas.

O grande problema é como fazer essa discussão primeiro de uma forma técnica, e depois de um modo político, em cima de uma base técnica que seja consensual. Por exemplo, se se considerar que a dimensão de uma autarquia deve ser abranger um certo número mínimo de habitantes, ou uma determinada área geográfica, por essa ser a escala que permite prestar os serviços de proximidade da melhor forma (atingindo os objectivos desejados com os menores custos), a dimensão técnica da discussão estaria feita. Depois haveria a discussão política – se não se quer essa dimensão adequada do ponto de vista técnico, então quem paga os custos adicionais? poderá ser por impostos locais em cima de transferências centrais, se for apenas uma vontade local, ou deverá ser por solidariedade nacional, com base em transferências globais, se corresponder a uma visão partilhada por todo o país? Ou haverá ainda outras soluções?

 


3 comentários

crowding-out, explicado por

Ricardo Reis, Universidade de Columbia: aqui

Numa recente sessão no Parlamento, surgiu uma confrontação entre o deputado João Galamba e o Governador do Banco de Portugal Carlos Costa sobre um termo técnico – crowding-out – a propósito do crédito à economia, com direito a texto escrito por João Galamba.

Ricardo Reis faz uma exemplar discussão dos argumentos usados. A ler.

 


5 comentários

ainda a discussão sobre a função pública, no dinheirovivo.pt

Nas várias intervenções sobre os salários da função pública, grande parte da discussão acabou por centrar-se em questões de equidade (ou falta dela). Que eu tenha dado conta, praticamente ninguém discutiu o porquê da situação em primeiro lugar de querer pagar diferente à função pública ou se querer dar um vinculo definitivo de trabalho a quem está na função pública, remetendo-se implicitamente para o argumento simples e simplista de direitos adquiridos. Ora, é precisamente este aspecto que encontrei discutidos em dois artigos de Luís Fábrica, que me parecem merecedores de atenção, e que dão origem a questões relevantes também no campo das implicações económicas – é este o tema do meu artigo de hoje no dinheirovivo.pt, aqui:

 

Revisitando a discussão sobre os salários da função pública

14/11/2011 | 04:10 | Dinheiro Vivo

Dois recentes artigos de Luís Fábrica sobre a função pública são de leitura obrigatória. Esclarecem as origens e processo de geração dos desequilíbrios internos da função pública, nomeadamente o porquê da segurança de emprego e da lógica de um “prémio salarial” na função pública para alguns cargos (que já não existe neste momento). Mas também como ao longo do tempo essas razões levaram a um desequilíbrio que acaba por se virar contra a própria função pública.

À análise de Luís Fábrica podemos acrescentar a dimensão económica. O Governo, e a função pública como estrutura de suporte às decisões e actuação deste, detém um recurso económico escasso – o poder coercivo do Estado, seja pela positiva (licenciamentos e autorizações, distribuição de verbas) seja pela negativa (proibições e sanções, impostos, contribuições e taxas).

Este poder coercivo é único entre os agentes da economia, e a sua utilização tem uma componente apreciável de discricionariedade. Desde a atribuição de uma multa na construção de um edifício até à produção de legislação, muitas são as decisões da administração pública, exercida por funcionários públicos, que têm valor económico, e pelos quais não existe um “preço de mercado” que seja pago. Tomemos o exemplo de licenciamento de funcionamento de uma qualquer actividade. O preço pago pela licença não reflecte o seu valor económico, nem o deve fazer. A decisão do funcionário público em atribuir, ou não, a licença depende do zelo e interpretação que este coloque na verificação das condições para essa atribuição.

A redução dos salários nominais na função pública poderá acarretar comportamentos de ajustamento que potencialmente degradam o funcionamento da administração pública.

Esses ajustamentos no comportamento incluem complacência (e mesmo apoio) a colegas que desenvolvem outras actividades geradoras de rendimento durante o horário de trabalho, bem como corrupção, receber verbas ou “contribuições” para usar de forma favorável a quem “contribui” a discricionariedade da decisão da administração pública. O custo de uma pessoa, monetário e moral, de envolvimento nestas actividades é menor se o salário recebido for mais baixo.

A independência dos decisores na função pública justifica um “prémio salarial” em determinadas posições, por estarem na base de um recurso escasso que não está presente nas empresas privadas (o poder coercivo do Estado). A isenção da decisão da administração pública face ao poder político de cada momento justifica a segurança de emprego (argumento feito de forma muito clara por Luís Fábrica).

Estes argumentos levam não a uma redução do leque salarial da função pública, mas a um seu aumento, o que não tem sido socialmente aceitável. Coloca dilemas adicionais para um bom desempenho dos sistemas remuneratórios na administração pública.

A compreensão destes aspectos é fundamental para que a redução salarial na função pública não tenha efeitos inesperados, e que poderão ser potencialmente prejudiciais ao processo de transformação da economia. Basta pensar quanto dos (famigerados) custos de contexto dependem de facto de um bom processo de decisão dentro da administração pública.

Referências:
Apogeu e queda da função pública (veja aqui)
Os “privilégios” da função pública (veja aqui)

PS. O autor é funcionário público, leccionando numa universidade financiada pelo Orçamento do Estado.

Nova School of Business and Economics
Escreve à segunda-feira
Comentários e sugestões podem ser enviados para ppbarros@novasbe.pt


Deixe um comentário

sugestão de leitura: andré barata, no blog SEDES

Para início de manhã, mais um excelente texto do André Barata: aqui (http://www.sedes.pt/blog/?p=3993)


1 Comentário

Imaginação precisa-se, a minha contribuição de hoje para o dinheirovivo

Na ressaca das notícias sobre a remoção dos subsídios de Natal e de férias dos funcionários públicos nos próximos dois anos, há que procurar soluções diferentes, uma vez que as abordagens tradicionais parecem ser impotentes. Foi este o ponto de partida para o artigo desta semana.

Imaginação precisa-se

17/10/2011 | 00:25 | Dinheiro Vivo

O país todo está consciente das dificuldades que teremos no futuro próximo. As medidas de contenção da despesa pública passaram a ser medidas de redução de salários de forma generalizada. Esta é, afinal, a forma mais fácil de reduzir a despesa pública, sem ter que efectuar escolhas ou definir prioridades entre áreas de intervenção pública. Na área da saúde também se impuseram reduções de preços a fornecedores de serviços ao Serviço Nacional de Saúde, um caminho que se deverá procurar percorrer em todas as situações possíveis, em todos os Ministérios.

Contudo, o lançamento das últimas medidas é em grande medida (sobretudo?) o reconhecer que afinal não é fácil decidir administrativamente a nível superior onde e como e a quem se corta. Ora, esta constatação parece reclamar uma abordagem diferente. Há que procurar abordar a necessidade de redução de despesa de forma mais imaginativa.

A minha sugestão, que precisará certamente de ser trabalhada e aperfeiçoada, é simples: aproveitar o conhecimento que as pessoas da administração pública detêm e usá-la para estabelecer as prioridades de corte. Certamente que perguntar onde se pode cortar já foi feito, e sem resultados de maior. De outro modo, não se teria assistido às medidas drásticas da última semana. Mas experimentemos usar essas medidas de outra forma.

Primeiro passo, lançar de uma forma generalizada e até ao final do ano um concurso de ideias dentro da função pública para redução da despesa. Haverá um ponto centralizado (em local a definir – Ministério das Finanças é o primeiro que vem à lembrança) de recolha dessas sugestões, nas quais deverá ser indicado o montante de poupança esperado. As sugestões serão anónimas, excepto para quem fizer parte deste ponto de recolha.

Segundo passo, um grupo de trabalho, criado no seio da Administração Pública, fará uma avaliação das principais sugestões consoante o seu potencial de aplicação e de poupança de despesa.

Terceiro passo, a um nível que seja definido, provavelmente Ministro, são aprovadas e levadas à práticas as sugestões de maior impacto potencial real. Ao fim de 6 meses ou 1 ano, é avaliada a consequência prática dessas sugestões. Sempre que a poupança alcançada exceder dois salários de quem apresentou a sugestão, esta pessoa receberá como bónus o valor desses dois salários. Se exceder quatro salários, receberá o valor os quatro salários. E este será o valor máximo de “prémio”.

Quarto passo, pagar de facto esses prémios, quando se verificar a poupança alcançada.

Desta forma, pretende-se dar aos funcionários públicos a possibilidade de recuperarem os valores perdidos com a supressão dos subsídios de férias e de Natal para os próximos dois anos, e ao mesmo tempo reduz-se a despesa pública num montante superior (uma vez que essa será a regra para se proceder ao pagamento de “prémios”).

Haverá o custo de montar o processos e de o gerir, e o formato exacto tem que ser bem pensado. É um exemplo de como libertar a força criativa que esteja presente na função pública a favor de uma redução efectiva da despesa.

Neste momento, é relativamente claro que as abordagens “tradicionais” falharam, pelo que é preciso ousar com soluções imaginativas e de reinvenção de como a própria função pública funciona.

E já houve diversos comentários via facebook (anonimizei para resguardar quem comentou, conforme tiver autorização irei identificando os autores):

1. Pedro, eu iria mais longe porque os comités como os que tu sugeres acabam por vezes por ser disfucionais. Eu passaria a implementação de todas as medidas locais para o sítio onde elas podem ser implementadas. A investigação sobre este tipo de processos em empresas mostra que a maior parte das sugestões que os empregados / supervisores dão têm a ver com alterações locais nos processos de trabalho em que participam. Soluções mais globais podiam passar por esse comité que sugeres. Um abraço.

2. Parece-me que um processo demasiado macro será difícil de implementar e difícil de medir. Concordo com o Joao Viera da Cunha, sugestões, implementação e acompanhamento ao nível dos departamentos ou serviços seria mais prático – até vou mais longe: destaque-se alguém para receber as sugestões ao nível micro, para as apresentar (junto do dono da ideia) a quem de direito e para a medir ao longo do tempo (e decidir da atribuição de prémio) – entre extinções, fusões e afins, há-de haver quem queira estas novas funções a bem de manter o emprego e o salário.

3. Caro, faço já outra proposta: criar um ponto focal destinatário de denuncias por parte dos Funcionários Públicos sobre mau uso dos dinheiros públicos nos organismos. Para além de poderes acabar rapidamente com algumas situações absolutamente inadmissíveis e eventualmente a responsabilização de dirigentes, ainda ficas com um anedotário que será um verdadeiro estímulo à criatividade e imaginação (que o teu título sugere ser uma necessidade).

4. Caro Pedro, boa ideia, boa iniciativa!


15 comentários

Passos Coelho está certo, mas…

O Primeiro-Ministro defendeu a existência de cortes salariais (temporários por dois anos, no anúncio) na função pública com o argumento de que os trabalhadores do sector público auferem salários superiores aos do sector privado para funções e características similares.

A evidência a que se refere está, segundo creio, num artigo de 2001 de Pedro Portugal e Mário Centeno, publicado no Boletim Económico do Banco de Portugal, em Setembro de 2001. É possível que existam actualizações desses valores, embora não os tenha conseguido encontrar (e seria de elementar bom senso que tivesse sido pedida uma sua actualização).

O quadro seguinte, retirado do artigo, mostra que esse diferencial oscila entre os 25 e os 18% para as mulheres, e entre os 18 e 7% /8% para os homens. Em qualquer dos casos com a característica de o diferencial ser maior para os rendimentos mais baixos do que para os rendimentos mais elevados. A consequência óbvia do argumento de querer corrigir este “prémio” de salário por se trabalhar na função pública obrigaria a baixar mais nos rendimentos mais baixos. O que nas condições actuais teria sérias consequências de imagem.

Adicionalmente, o “prémio” de salário é maior para as mulheres, o que provavelmente reflecte apenas um enviezamento contra as mulheres no mercado privado de trabalho, em que para as mesmas funções recebem menos. Certamente não se quererá, com argumento de equalização salarial, importar esse tipo de discriminação para o sector público.

Daqui resulta que o argumento usado para justificar esta medida de contenção de despesa (retirar subsídio de férias e de Natal). Os 14% a que correspondem a retirada do subsídio de Natal e de subsídio de férias acrescem aos 5% a 10% de redução salarial do ano passado. O que para os escalões mais elevados corresponde a uma redução de cerca de 23% do salário bruto. Para estes níveis salariais, compare-se o “prémio” salarial que existia de 7 a 8%. Mais do que fica compensado, e que se poderá traduzir a médio prazo numa saída da função pública para o sector privado dos profissionais com maiores remunerações (incluindo aqui os sectores da educação, justiça, saúde, para além dos cargos dirigentes da Administração Pública).  Não será no curto prazo por incertezas de conjuntura e elevado nível de desemprego, mas logo que se note uma animação na actividade privada será natural que esses movimentos surjam.

O argumento de Passos Coelho de maior “prémio” salarial na função pública é no sentido do efeito correcto, mas a decisão tomada, na sua magnitude, esmaga, e inverte, o prémio para as remunerações mais elevadas. Veremos se a prazo se traduzirá num problema de recursos qualificados para o sector público.

Fonte: Portugal e Centeno (2001)

Adenda:

via oinsurgente, do Boletim do Banco de Portugal do Verão de 2009, há uma actualização deste estudo inicial de Pedro Portugal e Mário Centeno, feita por Maria Manuel Campos e Manuel Coutinho Pereira. A Figura desse trabalho dá a informação similar à do Quadro 1 de Portugal e Centeno.

Nestes quadros não é tão fácil perceber os valores exactos do “prémio salarial” associado com a função pública, mas duas características são mantidas:

a) o prémio salarial diminui quando se passa de salários mais baixos para salários mais elevados (quando se passa dos decis mais baixos para os mais elevados);

b) o prémio salarial nos salários mais elevados está claramente abaixo dos 23% e foi mais do que compensado pelas recentes medidas.

Adicionalmente, o trabalho de 2009 faz uma análise por profissões, sendo claro que várias têm “prémio salarial negativo”.

PS: esta análise poderá ser revista se entretanto houver outras estimativas mais actualizadas deste prémio salarial associado com a função pública.


1 Comentário

Melhoria da qualidade da produção legislativa

Há poucas semanas, talvez um mês, a presidente da Assembleia da República falou que gostaria de ter maior qualidade legislativa.

Este é um objectivo com que todos concordarão. Como vai sendo usual, levar à prática é o problema.

A este respeito, talvez seja razoável aproveitar o que estava a ser feito no Governo anterior. Isto porque pelo menos desde 2001 (faz 10 anos!) que se vão dando pequenos passos, interrompidos por longas pausas. Houve a Comissão da Simplificação Legislativa (ver aqui). Outras comissões existiram (ver a listagem aqui)

A DGPJ – Direcção Geral da Política de Justiça tem disponíveis exemplos de avaliação de impacto normativo (aqui). Têm falhas? certamente. Podiam ser melhores? pois, se calhar podiam. Mas são um princípio, e as melhorias virão com a experiência e com a insistência.

Houve mais recentemente o “Guia de Avaliação de Impacto Normativo” cuja produção foi coordenada pelo Prof. Carlos Blanco de Morais, que também organizou um Curso Avançado de Avaliação do Impacto das Leis, onde participaram pessoas de vários organismos públicos que participam na produção de legislação.

Ocorreu ainda um esforço de realização de avaliações de impacto normativo correspondentes a situações reais. No Plano de Actividades para 2011 da Direcção-Geral da Política de Justiça está previsto um “curso prático de avaliação do impacto das leis” (p. 22)

Se se quer de facto levar a sério a ideia de melhor qualidade legislativa, será importante não deixar cair estes esforços, tanto mais que o investimento inicial de muitas pessoas envolvidas na produção de legislação se encontra já feito. Abandonar o trabalho já desenvolvido e abandonar as pessoas, significa que da próxima vez que se tentar será mais difícil. Não será levado a sério, e apenas visto como mais uma tentativa de algo que não vai acontecer. Há sempre barreiras de hábitos a serem ultrapassadas quando se quer introduzir novas formas de trabalho. Uma vez ultrapassadas essas barreiras, custa bastante perder o entusiasmo e interesse das pessoas, e que só muito dificilmente será recuperado.

Embora não goste muito de dar conselhos, aqui abro uma excepção, e fica a sugestão de se recuperar o trabalho que andou a ser feito pelas pessoas destes cursos, e levá-lo até ao fim, tornando públicos os seus resultados. Não só poderia melhorar a qualidade da produção legislativa, como mostrar que a Administração Pública tem capacidade técnica para sustentar essa melhoria de qualidade na produção de leis.