Nos últimos anos, vários livros sobre a evolução, em tempo longo, das sociedades humanas foram editados ou re-editados. O mais recente é devido a Oded Galor (da Universidade de Brown, nos Estados Unidos), com o livro “A jornada da humanidade”, e apresenta uma visão complementar à de Yuval Harari (no seu livro Sapiens – história breve da humanidade) e à mais antiga de Jared Diamond (no livro Armas, Germes e Aço).
Esta obra de Oded Galor condensa, numa escrita que procura ser acessível a todos, a investigação de várias áreas, incluindo trabalhos de investigação do próprio autor.
O tempo da evolução mede-se em séculos e milénios, na procura de compreender sucessivamente o que está por detrás de cada aspecto identificado como central para a evolução das sociedades humanas. Vai-se assim caminhando cada vez mais para trás, encontrando nesse trajeto também possíveis explicações para as atuais desigualdades entre zonas do mundo.
O ponto de partida é o comum a muitas das discussões que adoptam uma perspectiva económica – a revolução industrial iniciada em Inglaterra há cerca de dois séculos e meio, a partir da qual a dinâmica de evolução populacional e do conhecimento (científico, tecnológico) teve um acelerar sem precedentes na história humana.
Sendo este ponto de partida conhecido, Oded Galor propõe uma sucessão de “porquês” – para cada explicação, é necessária encontrar a sua própria explicação. Essa procura leva a recuar no tempo, destapando-se os elementos económicos e sociais que operaram, e operam, para originar os atuais níveis de riqueza e de desigualdade entre países e regiões.
Como é natural neste tipo de livros, não é fácil de resumir (eles próprios são o resumo de muitos outros) e o que cada leitor retira será diferente (e é muito provável que uma segunda leitura aqui a algum tempo desperte a atenção para outros aspectos).
Vejamos, então, o que me prendeu mais a atenção (nesta primeira leitura).
Ainda na parte inicial do livro, que procura dar a perceber a revolução industrial e as suas consequências, uma discussão interessante é como se resolveu, na investigação científica, a dúvida sobre se o investimento em mais educação por parte das populações surgiu primeiro e na sua sequência veio a industrialização, ou se houve primeiro a industrialização que depois gerou um maior interesse na educação. Não é evidente qual o primeiro fator. Por um lado, a industrialização, com a crescente mecanização das tarefas tradicionalmente desempenhadas por crianças e com o empregar de pessoas mais educadas, contribuiu para reduzir o interesse no trabalho infantil. Ao mesmo tempo, a redução da mortalidade infantil aumentou os ganhos de apostar em maior educação e menos crianças, mesmo que essas decisões não sejam pensadas dessa forma. Por outro lado, maior educação da população é o que permite a industrialização, para ter trabalhadores capazes de desempenhar as novas funções e de conseguirem estabelecer e justificar inovações incrementais. A observação, estabelecida de forma rigorosa, de que a educação começou a ser mais elevada em zonas ainda não industrializadas, e que posteriormente a um maior investimento em educação se industrializaram, ajuda a perceber que o primeiro impulso poderá ter estado na educação.
Esta regularidade tem implicações para a forma de pensar o ensino atual – não pode ser feito para satisfazer as necessidades das empresas atuais, tem que evoluir para acompanhar o que possam vir a ser as grandes questões futuras (por exemplo, fará sentido em todas as formações haver a discussão de como esse campo de conhecimento pode contribuir para resolver os problemas associadas com as alterações climáticas).
Diferentes elementos económicos conjugaram-se com desenvolvimentos tecnológicos e transformaram a demografia da sociedade, num processo que ainda hoje decorre (com a face visível do envelhecimento das populações nas economias mais desenvolvidas, no por vezes chamado Inverno Demográfico). Estes mecanismos encontram-se também na base de desigualdades que hoje observamos entre diferentes zonas do mundo.
A principal conclusão que resulta desta digressão sobre as fontes profundas do desenvolvimento das sociedades humanas e das diferenças que observamos entre países e regiões é que estas têm raízes históricas, geográficas, institucionais e culturais, que se vão encaixando umas nas outras.
Numa lógica de tempo longo, medido em séculos e milénios, o desenvolvimento das sociedades humanas decorreu em ciclos de reforço mútuo entre progresso tecnológico e evolução demográfica. Contudo, só recentemente, nos últimos dois séculos e meio, se conseguiu ter um ritmo de desenvolvimento tecnológico suficientemente forte para que não fosse acompanhado por um crescimento demográfico (que existiu) que levasse a pouca alteração nos níveis de vida médios da população.
Numa reflexão sobre uma das grandes questões da atualidade, como resolver a emergência climática, Oded Galor tem uma visão optimista. Baseia-se numa confiança em que a capacidade humana em gerar inovação irá encontrar soluções tecnológicas que, primeiro, mitiguem, e depois, mais tarde, eventualmente compensem a trajetória atual. Adicionalmente, a evolução demográfica dará igualmente uma ajuda, através de menor pressão. Mas para conseguir esse efeito será necessário investir, dedicar recursos, para conseguir a inovação necessária.
A segunda parte do livro explora em mais detalhe os movimentos profundos que originaram e permitiram o atual desenvolvimento tecnológico, bem como levaram a fortes desigualdades entre regiões.
Oded Galor revê o papel das instituições como elemento facilitador do desenvolvimento tecnológico, nomeadamente a criação de instituições que protegem a propriedade intelectual privada (essencial para que se recolha o resultado do que se faz e essencial para que se possam realizar trocas voluntárias e mutualmente vantajosas, o que genericamente se designa por mercado) e que promovem a igualdade de oportunidades. O papel das instituições no desenvolvimento das sociedades humanas foi explorado por J Robinson e D Acemoglu em detalhe, na sua obra “Porque falham as nações”.
A existência de certo tipo de instituições em Inglaterra precedeu o desenvolvimento tecnológico a que se chamou revolução industrial e tem, por sua vez, que ser explicada. As instituições fazem diferenças, mas porque surgiram?
Para compreender como surgiram essas instituições é necessário recuar mais no tempo e procurar os fatores culturais que estão na base do seu aparecimento.
Numa primeira abordagem centrada na Europa, a ideia da relevância da ética protestante para o desenvolvimento de instituições na Europa, embora tendo suporte estatístico, não é suficiente e é preciso recuar mais. É preciso procurar o que possa estar na base desse conjunto de valores, que incluem confiança entre as pessoas, orientação para o futuro (incluindo o reconhecer o valor da educação) e a manutenção de laços familiares fortes.
Se a cultura de uma sociedade determina, ou permite, que surjam instituições que são “amigas” do desenvolvimento tecnológico, a pergunta natural seguinte é o que leva a essas características culturais e porque são diferentes de região para região, e de modo suficientemente forte para que determinem caminhos de desenvolvimento diferentes, levando às desigualdades que hoje observamos.
O desenvolvimento das normas que definem uma sociedade decorre, em parte, do ambiente (geografia e clima) em que se formam, além de serem influenciadas pelos processos tecnológicos e económicos a que dão origem.
A capacidade humana de aceitar a ideia de tradição e de conhecimento vindo do passado ajudou a criar normas e regras que resultam dessa aprendizagem. A diversidade de sociedades e de normas resulta então do ambiente em que cada sociedade se desenvolveu e adaptou.
Exemplo da ligação entre normas, cultura e desenvolvimento tecnológico e depois económico, é a importância da confiança para a existência de trocas, de mercados. Tal como uma tradição de envolvimento cívico facilita o aparecimento de instituições focadas no bem comum. Das características culturais, surgem as instituições.
Para explicar esta diferença entre sociedades, para perceber o que está na origem de valores base dos grupos humanos, Oded Galor recorre a dois fatores primordiais: a geografia e a diversidade humana. Vale a pena um olhar mais detalhado sobre ambos.
A geografia determina o ambiente e o clima para culturas agrícolas e disponibilidade de recursos naturais, mas também pode criar elementos adversos (um exemplo é o efeito nefasto da malária e da mosca tsé-tsé em África). Mas a geografia também pode facilitar ou dificultar o desenvolvimento da sociedade humana de formas mais subtis, e a forma como acabam por emergir países influencia o processo de desenvolvimento.
Segundo Oded Galor, quando a geografia facilita o surgimento de grandes estados, torna-se mais fácil a quem governa conter desenvolvimentos tecnológicos ou culturais que os ameacem no seu poder. Com fragmentação em diferentes estados / sociedades surge a possibilidade de o que é contido num país ou região ser experimentado noutro país (o que no jargão económico de hoje será transferência de tecnologia, transmitida durante muitos séculos pela deslocação física de pessoas, por migrações).
Um exemplo de como a cultura de uma sociedade, no sentido de valores comuns, surge moldada pela geografia é terem surgido sociedades, pessoas, com uma maior atenção ao futuro (a ideia de retorno de investimento) em regiões onde as condições da terra permitem uma maior produtividade agrícola. O ter excedentes nas culturas agrícolas leva a ter que se pensar onde os guardar e o que fazer com eles no futuro. Tal como a incerteza sobre o que a terra dá em cada ano leva a maior cautela e precaução em geral. A forma de pensar, em tempo longo de séculos, acaba por ser influenciada pela geografia.
O tipo de cultura agrícola predominante, mais favorecido pela geografia e clima de uma região, também leva a traços culturais distintos – como exemplo, a cultura do arroz, que necessita de mecanismos de irrigação de água que têm de ser coordenados entre muita gente, leva a uma cultura mais coletivista.
E apesar desta sucessiva busca do que origina os diferentes caminhos de desenvolvimento humano, permanece uma questão – se é a geografia e o clima que acabam por estar no início de tudo, porque é que ao longo dos séculos e milénios, as regiões do mundo alternaram no seu papel de liderança (dado que a geografia e o clima são, ou foram, bastante estáveis durantes os milhares de anos de desenvolvimento das sociedades humanas)?
Há aqui a necessidade de recuar ainda mais um passo e entender que as sucessivas inovações tecnológicas eram propiciadas por fatores distintos e por isso surgiram em locais diferentes. A difusão de um avanço tecnológico potenciava depois que outros fatores levassem outras zonas a dar o próximo salto tecnológico, seja pela disponibilidade de outros recursos seja pela emergência de outras culturas e instituições.
O caminho do progresso humano não é linear, e até duvidoso, na minha leitura do livro de Oded Galor, que apenas uma região isolada do resto do mundo, tivesse conseguido alcançar o conhecimento e desenvolvimento, tecnológico e de valores, que hoje temos.
O desenvolvimento tecnológico dos últimos cinco séculos foi-se progressivamente desligando da produtividade agrícola, e depois dos recursos naturais; passou a assentar cada vez mais no engenho humano. A dependência dos fatores puramente naturais foi-se reduzindo (e as zonas que tinham mais vantagem nos fatores puramente naturais e agrícolas foram tendo mais relutância em mudar). Da agricultura para a indústria passou-se da terra fértil para a disponibilidade de outros recursos naturais. Agora com a passagem para a “economia do conhecimento” (como é comum dizer-se), os recursos cruciais passam ainda a ser outros. E é possível que daqui a dois séculos, os recursos essenciais para o desenvolvimento das sociedades humanas sejam algo que não antecipamos hoje, beneficiando relativamente não sabemos que região.
Além da geografia, Oded Galor coloca igualmente grande destaque no papel da diversidade humana. Para Oded Galor, maior diversidade humana tem um custo de menor coesão social e uma vantagem de maior criatividade, e a existência de culturas e instituições que enquadram de forma diferentes esses custos e vantagens geram caminhos distintos de desenvolvimento.
Definir e medir a diversidade humana é um problema complicado (e susceptível de diversas interpretações) e é uma discussão que ainda não se encontra finalizada. No entender de Oded Galor, quando se está em contexto de mudança tecnológica rápida, predominam as vantagens da diversidade humana, pois há mais oportunidades de aproveitar a criatividade que lhe está associada. Essa diversidade humana terá uma forte componente social, pelo que sociedades culturalmente mais abertas tenderam, nos últimos dois séculos e meio, a favorecer o desenvolvimento tecnológico e o progresso económico.
Resulta então a necessidade de mais um “porquê” e de recuar ainda mais, para se compreender que as sucessivas inovações tecnológicas de cada salto na evolução das sociedades humanas foram propiciadas por fatores diferentes e por isso surgiram em regiões diferentes. A difusão de um avanço tecnológico potenciou que depois diferentes fatores levassem outras zonas a dar o próximo salto de desenvolvimento, seja pela disponibilidade de outros recursos seja pela emergência de outras culturas e instituições.
Esta identificação de elementos de muito longo prazo, como a cultura e as normas de uma sociedade, para o processo de desenvolvimento é crucial para se perceber porque uma importação rápida e pouco pensada de políticas e/ou instituições de uns países para outros acaba por ter fracos resultados (e muito abaixo das expectativas).
Segundo a visão de Oded Galor, a redução das atuais desigualdades entre regiões do mundo irá assentar em duas grandes forças: de um lado, a difusão cultural e tecnológica levará o seu tempo mas irá acontecer; de outro lado, a procura de mecanismos explícitos de redistribuição que mitiguem as diferenças existentes enquanto se processa o ajustamento de longo prazo. Com estes dois elementos, as sociedades tenderão a aproximar-se. A menos, claro, que haja um novo salto tecnológico que assente num fator que não sabemos hoje qual será traga para a frente do desenvolvimento uma região do mundo que inesperadamente se coloca na frente da evolução das sociedades humanas (é, no fundo, esse o padrão de séculos e milénios que Oded Galor nos apresenta).
Como é provável que outros leitores tenham encontrado interesse noutros pontos do livro, ou encontrado outras explicações e ideias mais interessantes, fica aqui aberto o espaço para troca de impressões.
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