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As propostas eleitorais (parte II)

No texto anterior, peguei para os programas dos partidos para ver como olhavam para 5 temas que julgo centrais na área da saúde. Mas os programas abordam outros temas que merecem atenção.

A maior parte dos temas são consensuais no interesse que geram nos partidos, e faço apenas o registo de terem sido mencionados, ou não, pelos vários partidos. Para alguns assuntos, os partidos apresentam detalhe adicional, que justificam um comentário.

 PSPSDBEPCPCDSPANILLivre
Saúde mentalS S S SS
Cuidados paliativos / fim de vidaSSSSSS S
Lições da pandemiaS       
COVID-19 longa        
Papel dos municípiosS       
Resistência aos antibióticosS       
“Uma saúde” (“One health”)S      S
Barreiras de acessoS    SS 
Farmácias comunitáriasS     S 
Genéricos e biossimilaresS       
Articulação público – privado /PPPSS/N/NS S/N
Descentralização / municípiosS       
Hospitalização domiciliáriaS SS S  
Centros de responsabilidade integradosS       
Direção executiva do SNSS       
Sistemas Locais de SaúdeS SS    
Revisão da Lei de Bases da Saúde  S    S 
Digitalização     S  
Saúde Oral S     S
Cuidados continuados SSS S  
Listas de espera S    S 
Cuidadores formais e informais S  SS  
Plano plurianual de investimento  S     
Eliminar taxas moderadoras  SS   S
Cuidados de saúde primários SSS S  
Financiamento de acordo com o desempenho  S     
Papel das ARS  S     
Morte medicamente assistida    N  S
Construção de hospitais   S    
Nota: S: menciona favoravelmente; N: menciona oposição; em branco – não menciona

PS: Direção executiva do SNS – o PS retoma a proposta que o Governo apresentou no Outono, e que nos moldes em que foi definida iria criar, com elevada probabilidade, mais confusão administrativa (e menos responsabilidade na decisão) do que era pressuposto ou reconhecido na proposta. Uma análise dessa proposta está disponível aqui. A ideia de uma direção executiva do SNS não é má em si mesma, a aplicação que é proposta é problemática. Para uma alternativa nessa linha, é preferível a proposta de Instituto SNS – Entidade Gestora do Serviço Nacional de Saúde, iniciativa do Health Cluster Portugal (o documento pode ser acedido aqui – é preciso preencher um formulário com os dados de contacto para o documento ser enviado por email, ). É uma discussão que é relevante ter, com a calma e serenidade necessárias, com rapidez, mas sem a pressão de ser “moeda de troca” para aprovação de orçamento na Assembleia da República.

PSD: passar tudo a USF B (no prazo de 3 anos), ter USF de modelo C. A criação de mais USF é relativamente consensual nos vários programas políticas mas necessita de ter a cobertura financeira adequada (e não são apresentadas as “contas certas” associadas com esta ideia). Já a passagem para USF de modelo C tem menos acolhimento geral, surgindo explicitamente apenas no programa do PSD (no documento original: “Abrange as USF dos sectores social, cooperativo e privado, articuladas com o centro de saúde, mas sem qualquer dependência hierárquica deste, baseando a sua actividade num contrato-programa estabelecido com a ARS respectiva, através do departamento de contratualização, e sujeitas a controlo e avaliação externa desta ou de outras entidades autorizadas para o efeito, com a obrigatoriedade de obter a acreditação num horizonte máximo de três anos.”). É um instrumento que merece alguma discussão, mas precisa de ser pensada de forma adequada – ao ser estabelecida uma relação em termos de contrato programa, e pretendendo-se ter uma relação de longo prazo entre os cidadãos e o médico / equipa de família que o acompanhe, o contrato programa e o financiamento não deverão ter como base meros horizontes anuais de negociação. Mas em relações de mais longo prazo, mesmo que seja de 3 ou 5 anos, a “gestão de riscos” torna-se uma questão a ser abordada diretamente. Há insuficiente detalhe para se poder ter uma opinião final sobre esta proposta. Mas sendo uma opção possível, deverá ser discutida nas suas vantagens, nas suas desvantagens e nas exigências que coloca em termos de gestão administrativa (aspecto em que o SNS não tem bom registo).

BE: introduz a proposta de plano plurianual de investimentos. É um elemento importante, e deverá ser considerado. O risco é que se forem pedidas intenções de investimento ou necessidades de investimento às unidades do SNS, a soma de todas essas intenções muito provavelmente dará um volume de investimento muito elevado, e com eventuais duplicações. A concretização operacional deverá ser baseada na existência de propostas de investimento devidamente justificadas, e avaliação e escolha de acordo com as prioridades definidas para o SNS como um todo, evitando por exemplo duplicações de investimento entre unidades, e garantindo que existe racionalidade para o equilíbrio assistencial e financeiro do SNS.

Também refere no programa a “modificação do paradigma de financiamento hospitalar que tem sido baseado na produção de atos médicos, sem objetivos em saúde claramente definidos (financiamento de atos feitos por outros profissionais e incentivos por equipas).” É uma proposta que também merece discussão técnica com profundidade, uma vez que outros modelos de financiamento têm vantagens e desvantagens, não sendo óbvio em que alternativa de financiamento será melhor. Por exemplo, financiamento de acordo com ganhos em saúde, ou com valor gerado em saúde, tem o pequeno grande problema de definir operacionalmente esses elementos, sem ambiguidades, e onde se possa alicerçar a realização de pagamentos. E saber com que frequência são feitos esses pagamentos. Ou se são apenas incluídos para determinar um orçamento global (caso que em que não haveria modificação do modelo de financiamento, apenas mudança da forma de calcular o orçamento). É relevante também saber que grau de risco financeiro para as unidades do SNS que deve estar presente, e quais as consequências de de resultados financeiros negativos persistentes e decorrentes da gestão. Ou seja, estando-se de acordo com o princípio genérico de alterar o modelo de financiamento, os detalhes dessa alteração farão toda a diferença.  

CDS: introduz a proposta do “Vale Cuidador”, definido como “comparticipação atribuída às famílias que optam por cuidar dos idosos em casa, no valor que o Estado suportaria com lares, centros de dia, e instituições de cuidados a idosos.” Sendo também esta uma proposta atrativa no seu princípio, não é claro como se processa a verificação de todo o processo. Em particular, como se poderá evitar o seu abuso, no sentido em que se coloca o Estado (os contribuintes) a pagar por algo que seria de qualquer feito no ambiente familiar, ou seja como evitar que seja um formato de “rendimento básico universal” para famílias com idosos em casa. Além de colocar em segundo plano os idosos que possam preferir, por qualquer motivo da sua vida, continuar a residir sozinhos. Não é claro que todas as implicações, financeiras e de bem-estar dos idosos, tenham sido acauteladas na elaboração da proposta. Mas antes de a rejeitar como impossível de concretizar de forma razoável, valerá a pena uma discussão mais em detalhe.

IL:  Partindo do princípio “Garantir acesso universal efetivo a cuidados de saúde”, que é no essencial partilhado por todos os partidos políticos, apresenta uma proposta base que é uma alteração profunda do SNS tal como está. Nota-se na proposta, e face ao programa eleitoral de 2019, uma evolução de pensamento na forma de conceptualizar e apresentar a ideia. Tornam claro que a proposta é alterar o SNS para o aproximar das possibilidades de escolha de prestador que está presente na ADSE (que usa sobretudo prestadores privados). Assim, esta proposta tem medidas e implicações quer do lado do financiamento quer do lado da prestação de cuidados de saúde. Esta proposta é justificada e detalhada de uma forma que não se encontra noutros programas partidários, creio que pela necessidade sentida de explicar os princípios presentes, e porque não chocam com o estabelecido constitucionalmente. A discussão técnica inerente acaba por não ser feita durante a campanha eleitoral. No lado do financiamento, no sentido de obtenção de fundos para pagar as despesas em saúde, a proposta consiste em transformar as Administrações Regionais de Saúde, que já existem, para um formato próximo do que associamos a subsistemas, sendo que haveria então 5 desses subsistemas em concorrência entre si em duas dimensões: a) serem escolhidos pelos cidadãos como garante da cobertura dos seus cuidados de saúde (ou seja, resultam 5 seguradores públicos), e b) estabelecerem relações comerciais com prestadores (presumo que públicos e privados) para assegurar o acesso a cuidados de saúde das pessoas que escolhessem esse subsistema. Numa versão de maior liberdade de escolha nos vários elementos em causa, poderia vir a ter-se um cidadão de Bragança a estar associado com o subsistema criado a partir da ARS do Algarve, tendo os cuidados de saúde prestados em Leiria (com entidade com contrato com o subsistema ARS do Algarve). Estou naturalmente a colocar exemplo extremo, apenas com a intenção de ilustrar que a complexidade de introduzir esta ideia poderá ser maior do que antecipado. Incluindo a questão de saber se as unidades do SNS que prestam cuidados de saúde passam também a ser geridas por estes subsistemas (mantendo a integração vertical atual do SNS), ou se há uma sua separação. Também há a questão técnica de saber se a dimensão dos subsistemas garante a dimensão crítica mínima para poderem desempenhar adequadamente o seu papel (por exemplo, se evoluírem diretamente das atuais ARS, fica-se com dimensões muito desiguais em termos de dimensão, mesmo que Alentejo e Algarve sejam agregadas num único subsistema).

Nos termos da proposta “Estabelecer subsistemas dentro do Serviço Nacional de Saúde, com capacidade para atuar em todo o território, por adaptação, conversão e substituição das atuais Autoridades Regionais de Saúde, e com a função de financiar a prestação de cuidados de saúde a todos os cidadãos, dentro dos limites dos recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis e acordados com os prestadores e os contratos de concessão com o Estado.”

As preocupações com questões de seleção de riscos estão presentes na proposta, uma vez que a proposta estabelece uma necessidade de regulação para este fim: “Nenhum subsistema pode excluir ou recusar um indivíduo, sob que critério for – não há quaisquer exclusões por doenças preexistentes ou exclusões por rendimento ou efetividade de pagamento das contribuições, ou qualquer outro critério de exclusão.”

Na parte da prestação, a proposta enuncia: “Garantir que cada subsistema é livre de organizar as suas redes de prestadores e que na organização da sua oferta deverão ser consideradas por cada um dos subsistemas, pelo menos, as seguintes redes: Assegurar que os subsistemas s o financiados com base num valor per capita ajustado pelo risco. Garantir a obrigatoriedade de pertença a um subsistema.”

Também considera explicitamente mecanismos de compensação para assegurar o equilíbrio do sistema de proteção baseado nestes subsistemas: “Constituir uma câmara de compensação entre os diferentes subsistemas que faca o ajustamento com base em critérios claros e atuariais.” Embora possa parecer pouco intuitivo a necessidade desse mecanismo, ele é tecnicamente necessário (uma explicação técnica do problema, e solução com fundo de compensação disponível aqui). 

Esta proposta é não só uma adaptação do que se encontra no sistema holandês, como tem sido referido por várias vezes, mas é também uma evolução de uma proposta apresentada em 1998 por Comissão de Reflexão para a Saúde, coordenada por Daniel Serrão (e da qual não consegui encontrar documento disponível em pdf para link, a referência é Serrão, D., Abrantes , A. V., Veloso, A., Oliveira, G., Moreira, JM., Delgado, M., & Dinis de Sousa, M. (1998). Recomendações para uma reforma estrutural: reflexão sobre a saúde. Conselho de Reflexão sobre a Saúde. Tanto quanto me recordo, também se propunha financiamento canalizado por entidades de base regional. A propósito dos trabalhos de preparação desta comissão presidida por Daniel Serrão, a Associação Portuguesa de Economia da Saúde promoveu na altura um debate sobre a versão preliminar do documento, tendo disponibilizado o resultado desse debate (disponível aqui). Mais de 25 anos depois não deixou de me impressionar verificar que os temas de discussão não mudaram no essencial.

Resulta daqui que esta proposta da IL tem que ser discutida de uma forma profunda, e nos detalhes, muitos deles técnicos, o que é impossível de realizar durante uma campanha eleitoral.

Dos restantes partidos, têm propostas que se inserem no quadro resumo acima, ou que se são de detalhe dentro do sistema de saúde, e do SNS, atual. Não têm, na minha leitura, a natureza transformadora das que comentei em mais detalhe.


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As propostas eleitorais e o meu top5 de medidas na saúde

Por desafio da Associação Portuguesa de Economia da Saúde, descrevi aqui o meu top 5 de ações na área da saúde que gostaria de ver no futuro próximo. É agora tempo de ver como as diferentes propostas dos partidos políticos cobre ou não essas minhas preocupações.

O primeiro comentário às propostas dos programas eleitorais (dos partidos políticos que participaram na sessão de debate promovida pela Associação Portuguesa de Economia da Saúde) é a ausência generalizada de preocupação quantificada com as implicações orçamentais que as respetivas propostas possam ter (a excepção a está consideração geral é o programa da Iniciativa Liberal, que refere uma estimativa por alto do que poderá significar o efeito de uma das suas propostas principais). O segundo comentário é a opção por formulações suficientemente gerais, que não geram objeções, sem se chegar ao detalhe suficiente de como fazer (onde mais facilmente podem surgir divergências entre as propostas). O terceiro comentário é encontrar-se um grupo relativamente amplo de preocupações comuns à grande maioria, se não mesmo todos os programas, pelo menos nos seus aspectos gerais. Apesar disso, há em vários programas propostas originais, umas de maior efeito no sistema de saúde, outras menos. Dado o elevado número de ideias apresentadas, com ou sem base factual, irei apenas referir as que pessoalmente mais me chamaram a atenção.

A primeira parte dos meus comentários seguintes é sobre como cada uma das minhas preocupações Top5 é tratada acomodada, ou não, pelo programa de cada um dos partidos. A segunda parte tratará de (algumas) propostas dos partidos adicionais a este Top5 pessoal.

1 Residentes em Portugal sem médico de família atribuído

É uma preocupação em todos os partidos, embora frequentemente não justificada. Não é claro qual o entendimento que cada partido tem do papel do médico de família, ou da equipa de família, na organização do sistema de saúde. Nem como pretendem assegurar a operacionalização das respetivas propostas. Em particular, os números de utentes sem médico de família revelam, ao longo dos meses dos últimos 10 anos, em termos totais, ciclos de redução do número de utentes sem médico de família quando ocorrem concursos de colocação de novos especialistas em medicina geral e familiar, a que se seguem meses de aumento do número de utentes sem médico de família, até que sejam novamente colocados novos profissionais. Não se conhecendo se as saídas de profissionais que geram estes ciclos entre contratações são sobretudo devidas a reforma dos médicos ou se saída para outras funções.

PS: criar mais unidades de saúde familiar (USF) – apenas a criação de mais USF não garante a cobertura de mais população por médico de família. Aliás, na medida em que ao criar USF se “atiram” os utentes sem médico de família para as UCSP poderá estar-se a reforçar uma situação de “duas velocidades”, com maiores assimetrias entre quem tem e não tem acesso a médico de família.

PSD: A proposta é garantir um médico de família a cada Português (suponho que queiram referir-se a residentes em Portugal), “garantindo-se, na fase de transição até à cobertura universal, o acesso a um médico assistente a todos, recorrendo-se ao sector social e privado quando necessário” – esta proposta assume implicitamente que não há escassez de profissionais de medicina geral e familiar, e que é uma questão de contratação (uma vez que o recurso fora do sector público só é possível se existirem médicos de família disponíveis). A forma como a transição é feita não é explicitada nem como será financiado esse esforço financeiro (mais impostos, ou menor despesa pública noutra área, ou aumento de dívida pública), seja no reforço dos médicos de família do SNS seja no recurso fora do sector público. 

BE: Garantia de um “médico e de uma equipa de saúde familiar para todas as pessoas.” Também assume que há disponibilidade de médicos em Portugal para esta contratação, e não há quantificação da despesa envolvida nem de como será financiada (mais impostos, ou menor despesa pública noutra área, ou aumento de dívida pública). Para resolver de uma forma permanente, referem o aumento do número de vagas para formação em Medicina Geral e Familiar. Há a proposta de uma intervenção mais ampla, com uma equipa de família (enfermeiros, técnicos auxiliares de saúde) apoiada ainda por outros profissionais (assistentes, psicólogos, nutricionistas, higienistas orais, assistentes sociais). Sendo uma proposta que vai no sentido, adequado, de reforço do papel dos cuidados de saúde primários, é necessária uma quantificação de despesa adicional exigida, e se essas intervenções/reforços de equipas terão os efeitos desejados no atual modo de funcionamento, ou se deverá ocorrer uma reformulação das tarefas desempenhadas por cada grupo profissional.

PCP/CDU: Tem a proposta de contratar mais profissionais (para atingir o objetivo consensual de todos em Portugal terem seguimento regular por um médico de família). Também inclui a proposta de enfermeiro de família. Tal como os outros partidos, não há quantificação da despesa implicada, e assume que todas as contratações desejadas serão conseguidas. Igualmente presente está a proposta de redução do número de utentes por médico. Seria útil ter uma referência do cálculo de porquê 1500 habitantes por médico (ou seja, não aceitar acriticamente números avançados, deve-se procurar perceber a origem dos valores e fazer a sua validação técnica). Surge uma contradição se for tentado aplicar-se as duas propostas ao mesmo tempo – a redução do rácio de habitantes por médico implica a necessidade de mais médicos, ou seja, se esta medida for aplicada por inteiro, até poderá suceder que no final haja mais utentes sem médico de família.

CDS: Não trata especificamente este objetivo. 

PAN: apresenta como proposta “Garantir que todos/as os/as cidadãos/ãs tenham médico e enfermeiro/a de família;” mas também “Alterar o atual rácio de um médico por cada 1900 habitantes para um médico por cada 1.500 habitantes” – além de se aplicarem comentários anteriores quanto a assumir-se que há profissionais suficientes em Portugal, e não existir quantificação do que implica esta proposta. 

IL: Tem nas suas propostas a atribuição de um médico de família a todos os residentes em Portugal (fala em portugueses, mas tal como noutros casos, não creio que sejam excluídos estrangeiros a residir em Portugal). Tem como elemento diferenciador a proposta de criação de unidades de saúde familiar tipo (“entidades estabelecidas com autonomia organizacional e financeira e com um contrato-programa com as ARS)”, previstas desde há muitos anos mas ainda não “experimentadas”. Assumem que haverá um aumento de despesa, embora não surja quantificado. Referem que haverá especialistas em medicina geral e familiar presentes no sector privado que poderão ser contratados neste modelo (que consideram ser mais aliciante também para os profissionais de saúde).

Livre: As propostas partilham elementos comuns às propostas de outros partidos: assegurar médico e enfermeiro de família, em equipas alargadas, e defendem a redução do número de utentes “para menos de 1500 utentes por médico). Da mesma forma que partilham as propostas, partilham as observações que foram feitas às propostas dos outros partidos. 

2 Pagamentos em atraso como reflexo de problemas de gestão no Serviço Nacional de Saúde (orçamentos insuficientes e falta de capacidade de gestão)

Este assunto não é uma preocupação explícita das propostas dos partidos (até porque sendo mais técnica, e difícil de apresentar “pela positiva” aos eleitores, será em geral vista como secundária pelo marketing político). Não há por isso uma solução clara que resulte das propostas dos partidos. O mais próximo que se poderá encontrar é que todos defendem “financiamento adequado”, o que quer que isso seja, e não vejo como se defenderia “financiamento desadequado”. Embora não haja referência direta a este problema, é possível, nos textos das propostas, encontrar elementos que contribuem, eventualmente, para que este seja um problema tratado no futuro pelos partidos.

PS: Rever o modelo de financiamento dos hospitais. Mas não adianta mais nada sobre o que significa exactamente (modelo de capitação, como as unidades locais de saúde, aplicado a todos os hospitais? Finalmente realizar contratos programa e anunciar orçamentos antes do ano de atividade começar? Formato “o hospital que gaste que pagamos o que for preciso” – modelo de reembolso de custos?)

PSD: “Promover um novo modelo de financiamento que premeie os ganhos em saúde”. Como princípio geral, é difícil discordar. Já quanto à capacidade de operacionalizar, poderão ser levantadas muitas dúvidas. Desde logo como se pretende medir ganhos em saúde e como estabelecer nexo causal certo e direto entre atividades realizadas e ganhos em saúde conseguidos (admitindo que são mensuráveis). Além deste princípio geral, não se encontra qualquer proposta que permita resolver o problema dos pagamentos em atraso dos hospitais.

BE: “Aumento do orçamento do SNS em percentagem do PIB” – pretende-se, com esta formulação, dar ideia de que é necessário reforçar as verbas para o SNS, mas não há qualquer quantificação, nem como será definido o orçamento global atribuído a cada hospital (é o que for pedido?). Não é claro que se há um objetivo de despesa (orçamento do SNS) em percentagem do PIB. Espero que não porque para ser levado a sério significaria que em tempos de recessão económica (anos em que o PIB diminua), o orçamento do SNS deveria também diminuir para acompanhar. Duvido que haja algum partido que defenda esse tipo de despesa pública em saúde pró-cíclica. Há também a proposta de “exclusão do SNS da aplicação da Lei dos Compromissos”. Não vejo como alterar essa regra resolve os problemas de verba dos hospitais.

CDU: Genericamente, tem a propostas de “adequado financiamento do SNS”. Aplicar aqui os comentários já feitos a propósito das propostas dos outros partidos.

PAN: Também aqui as propostas são de grande generalidade “Definir uma estratégia de sustentabilidade do SNS para um período de 10 anos”. Aplicam-se por isso comentários anteriores. Mais interessante é incluírem propostas que procuram utilizar sistemas de recompensas/penalizações: “Majorar financeiramente entidades que demonstrem boas práticas e resultados em saúde, formação e valorização dos profissionais, otimização das organizações, qualificação dos serviços e desenvolvimento de competências das suas lideranças; Atribuir prémios ou incentivos aos serviços hospitalares que se destaquem na transição para modelos de saúde mais eficientes; Criar linhas de financiamento próprias para Hospitais que queiram introduzir práticas de Valor em saúde (Value-Based Healthcare -VBHC)”. Ou seja, há pelo menos uma preocupação com a gestão das unidades de saúde, e logo dos hospitais públicos, que será necessário considerar para conseguir resolver o problemas dos pagamentos em atraso sem ser por “atirar dinheiro para cima do problema”.

IL: Apresentam ideias associadas com a mudança dos modelos de gestão, com destaque para a utilização de indicadores de qualidade e de custo-benefício. Defendem a criação de um plano “para melhorar a gestão dos hospitais públicos. Apresentam a proposta clara de “terminar com a prática de financiamento dos hospitais por aumentos de capital” (ou seja, geração de dívida e pagamentos em atraso), colocando também um escrutínio ao nível da Assembleia da República (o que talvez seja excessivo numa frequência mensal de acompanhamento que seja provavelmente necessária em alguns casos; por outro lado, enquanto o problema global existir talvez não seja despropositado uma atenção semestral ou anual da Assembleia da República). 

Livre: Alinhado com as propostas genéricos de outros partidos, defende q que se acabe “de vez com a sub-orçamentação crónica do SNS, garantindo um orçamento suficiente”. Aplicam-se por isso também os mesmos comentários genéricos.

Nenhum dos partidos explicita o que fazer caso os aumentos de orçamento não eliminem a criação de dívida e de pagamentos em atraso, nem como resolver problemas de qualidade de gestão que surjam. Não é um problema fácil de resolver, motivo pelo qual seria interessante saber se há algum pensamento estruturado dos partidos políticos sobre o tema.

3. Política moderna de gestão de recursos humanos na saúde

De uma forma genérica, pode-se pensar em condições de trabalho (remuneratórias e não remuneratórias), desenvolvimento profissional, estratégias de retenção dos profissionais de saúde, capacidade de compreender motivos de saída, e tomar ações que evitem saídas (e que pode passar por encontrar dentro do SNS outras colocações profissionais). Não sendo especialista de recursos humanos, resulta que as propostas dos partidos políticos acabam centrar-se em aspetos remuneratórios (e mais uma vez sem previsão de despesa que implicam as propostas que apresentam) ou considerações genéricas.

PS: Apresenta as preocupações com a retenção de profissionais de saúde no SNS, com a motivação dos profissionais do SNS (embora sem referir como é que tal pode ser feito no SNS), com o “equilíbrio entre vida familiar e profissional”, com o desenvolvimento profissional. Retoma as propostas de mecanismos de remuneração (“incentivos pecuniários e não pecuniários”) para a “atração e fixação de médicos em zonas carenciadas. Contudo, não há uma identificação do critério que define uma zona carenciada. As mudanças na forma de encarar a gestão de recursos humanos no SNS não se podem limitar a pensar em zonas carenciadas, sendo necessária uma abordagem muito mais ampla. Defende a proposta de regime de dedicação plena como parte essencial desta “nova política”, com papel dos sindicatos na sua formulação. Mas se a ideia de ter mais opções de contratos de trabalho vai, a meu ver, no caminho certo, não se deve pensar nela apenas como instrumento da “luta público – privado”, como tem sido frequentemente apresentado na discussão política e partidária. Provavelmente, até será de encarar mais possibilidades, que permitam escolhas flexíveis dentro do SNS para os vários objetivos enunciados (motivação, equilíbrio de vida familiar – vida profissional, etc.).

PSD: As propostas centram-se na componente remuneratória e na contratualização de objetivos. Ora, sendo essa parte importante, acaba por ter sempre uma natureza de curto prazo, e não uma perspetiva de relação de longo prazo entre o SNS e os profissionais de saúde que contrata. Não é possível estabelecer e contratualizar objetivos de desempenho a 10 anos. Tem que ser possível criar uma expectativa de desenvolvimento profissional de 10, 20 ou 30 anos no SNS (e dentro desses 10, 20 ou 30 anos de relação então haverá espaço para mecanismos de incentivos).

BE: Tem a proposta de “definição de uma estratégia nacional de recursos humanos do SNS”, que se desdobra em “estruturar carreiras e aumentar salários, desenvolver planos de apoio, formação profissional e ao ensino tutelado e melhorar a investigação em saúde para fixar profissionais”. Porém, a concretização centra-se sobretudo na parte remuneratória e nas “carreiras” como solução para todos os problemas. As “carreiras” será um elemento necessário, mas certamente não suficiente, para conseguir construir uma nova forma do SNS tratar os profissionais de saúde que contrata. 

PAN: Apresenta a proposta genérica de garantir “condições de trabalho de qualidade, gratificantes e atrativas para todos os profissionais de saúde”, partilhando com os outros partidos a proposta de “Disponibilizar a opção de Regime de Dedicação Exclusiva para os profissionais de saúde”. Inclui ainda algumas medidas de melhoria das condições remuneratórias ou de exercício de funções no SNS, mas sem uma visão ampla de longo prazo.

PCP: Partilha a proposta de instituir a “dedicação exclusiva dos médicos e enfermeiros”, e torna concreta a proposta de aumento da remuneração base e contagem de tempo de serviços. Também tem a proposta de substituir empresas de trabalho temporário por trabalhadores “com vínculo público. Não é uma nova forma de pensar de como tratar os profissionais de saúde, focando-se em elementos tradicionais de discussão, e não em elementos de longo prazo que sejam elementos de atratividade do SNS para os profissionais de saúde.

CDS: Não tem uma proposta estruturada.

IL: Tem as propostas de substituição de empresas de trabalho temporário, tarefeiros, por profissionais de saúde contratados diretamente pelas unidades de saúde. Não há a referência de detalhe, encontrada nas propostas de outros partidas, de melhoria de condições remuneratórias, embora esteja genericamente presente. Há ainda a referência a “formação especializada e cruzada dos profissionais”, avançando no sentido de uma maior flexibilidade das tarefas realizadas por cada grupo profissional, discussão que é sempre complicada de realizar por defesa corporativa de cada grupo profissional de saúde. 

Livre: As propostas referem as condições remuneratórias e as condições não remuneratórias (formação contínua, equilíbrio vida pessoal e profissional), incluindo a possibilidade de dedicação exclusiva e dedicação plena. São, assim, propostas similares, na sua essência, à que outros partidos apresentam, com as mesmas forças e fraquezas.

Assim, de uma forma geral, é razoável concluir-se que a preocupação com os profissionais de saúde está presente em todas as propostas dos partidos políticos, com foco sobretudo nas condições remuneratórias e, em alguns casos, nas condições de trabalho. Não é visível, porém, uma estratégia de longo prazo, que contemple o tempo longo de desenvolvimento profissional de quem trabalha no SNS. Curiosamente, nenhum partido refere como decorre a concorrência pelos profissionais de saúde, pelo sector privado em Portugal e por entidades estrangeiras.

3 Promoção da saúde e prevenção da doença

No campo da promoção da saúde, as duas principais curiosidades de partida foram a) saber se o pensamento dos partidos vai além dos “hábitos saudáveis”; b) saber se consideram estratégias diferentes das que têm vindo a ser consensuais (“apostar na prevenção”, “literacia em saúde”, como principais destaques). As propostas dos diferentes partidos são, na sua essência, bastante similares. Em nenhum dos casos se pensa em como fazer de forma diferente para que se mude a própria forma de olhar para este tema. Retomo aqui a minha proposta: A promoção da saúde e a prevenção da doença têm um problema base de não haver quem tenha a responsabilidade executiva clara e exclusiva (sobre o que fazer, como fazer, e como avaliar o que é feito). Daí que a criação, ou designação, de uma entidade responsável unicamente por este elemento contribuirá para que ganhe visibilidade e presença nos processos de decisão. Esta entidade deve ter como única atribuição a promoção da saúde e a prevenção da doença na população. Se assim não for, se houver acumulação com outras funções, não será diferente do que tem sucedido. Uma das primeiras decisões, talvez mesmo a primeira, desta entidade deverá ser garantir que cada residente em Portugal tem direito a uma consulta por ano dedicada totalmente à promoção da sua saúde. É um direito cuja garantia será organizada e verificada por esta entidade, e que fará parte da respetiva avaliação de desempenho. A informação sobre o acesso a este direito a uma consulta de promoção da saúde deverá integrar o relatório anual de acesso a cuidados de saúde no âmbito do SNS.

PS: Apresenta uma referência explícita à “melhoria dos determinantes sociais da saúde”, aos “hábitos saudáveis”, e à realização de rastreios, bem como os princípios de “saúde em todas as políticas”. 

PSD: Apresenta a proposta de “promoção de hábitos alimentares e de vida saudáveis”, através de “novos programas nacionais”, e de investir na “literacia em saúde”. Também faz a proposta de “agravamento fiscal dos produtos nocivos à saúde”, alargando, presumivelmente, o que tem sido a experiência com o imposto sobre o teor de açúcar em bebidas.  

BE: Defende o “reforço da verba do orçamento do SNS afeta à promoção da saúde e prevenção da doença, para além dos atuais 1%.” Aqui há que ter o cuidado de perceber melhor as estatísticas de despesa. Há muitas ações e intervenções realizadas que correspondendo a prevenção ou a promoção da saúde não são registadas como despesa com essa natureza (por exemplo, intervenções realizadas no âmbito dos cuidados de saúde primários que são de prevenção). Não há, atualmente, uma boa contabilidade do que seja a despesa em prevenção e em promoção da saúde em Portugal, e esta proposta do BE deveria levar, pelo menos, a um esforço de conhecimento sobre o que deve ser considerado prevenção e promoção da saúde, e como gerar uma estimativa do que é esse esforço em termos financeiros. Refere-se depois a literacia em saúde, e áreas de intervenção específicas (mas tradicionais quando se fala de prevenção).

PCP: Nada de específico a assinalar.

CDS: Nada de específico a assinalar.

PAN: Menciona a necessidade de “investir eficazmente em saúde preventiva” bem como em “programas de rastreio”. Introduz a proposta de “reforçar a capacitação de todos os profissionais de saúde em saúdepreventiva”. Não deixa de referir os hábitos de vida saudável (incluindo alimentação, atividades físicas, etc.), literacia em saúde. Elencam-se algumas áreas de intervenção, dentro de processos de intervenção habituais.

IL: As propostas focam em rastreios.

Livre: As propostas seguem o padrão habitual comum às várias propostas: promoção de hábitos saudáveis (alimentação, exercício físico), saúde no local de trabalho, algumas áreas especificas individualizadas e a referência à “saúde em todas as políticas públicas”.

Globalmente, não será difícil aos diferentes partidos encontrar consensos gerais sobre políticas para promoção da saúde e prevenção da doença. Porém, mais interessante será que consigam acordar em medidas que nenhum deles considerou ainda.

4 Revisitar as comparticipações na área do medicamento

Uma característica do sistema de saúde português que é referida por vários partidos, e como tal se pode considerar ser de conhecimento generalizado, é a elevada componente de pagamentos diretos das Famílias a prestadores de cuidados de saúde (seja prestadores privados, seja prestadores públicos, seja despesa determinada pelo SNS ainda que feita junto de prestadores privados, como a parte do preço dos medicamentos que os cidadãos têm que pagar). Menos conhecido é que as despesas com medicamentos são tradicionalmente a maior componente das despesas privadas em cuidados de saúde das famílias de menores rendimentos (de acordo com os inquéritos aos orçamentos familiares feitos regularmente pelo INE). Daí que uma maior proteção financeira face a cuidados de saúde dos cidadãos de menores de rendimentos tenha que passar por olhar novamente para as comparticipações de medicamentos e avaliar o que deve, ou não, ser alterado.

PS: não há referência 

PSD: não há referência

BE: Apresenta uma proposta concreta, que vai de encontro à preocupação geral: “Expansão do regime especial de acesso ao medicamento para todos os utentes em condição de insuficiência económica.” Aqui há que ter em consideração diversos elementos: proteção financeira, utilização eficiente dos medicamentos, funcionamento regular do mercado, significando que a atuação deverá ser pensada de forma mais ampla que apenas a expansão de regime especial, ou criação de novos regimes.

PCP: A proposta é de “dispensa gratuita nas Unidades de Saúde do SNS e nas farmácias dos medicamentos para os doentes crónicos e para as famílias com carência económica e para doentes com mais de 65 anos.” A esta proposta adiciona-se outra, “A criação de um modelo de comparticipação dos medicamentos que conduza à redução do seu custo para os utentes.” A segunda proposta corresponde ao que julgo ser importante fazer, enquanto a primeira será provavelmente problemática. No passado a “dispensa gratuita”, ensaiada em 2009 para um grupo específico da população, acabou por gerar despesa adicional desnecessária, bem como abusos e fraudes diversas – a gratuitidade total gera comportamentos oportunistas que são difíceis de controlar. 

PAN: não há referência. 

CDS: Apresenta a proposta “Vale Farmácia: medicamentos grátis para os idosos mais carenciados e cidadãos em situação de pobreza extrema”. Coincide no essencial com outras propostas, embora com um mecanismo distinto. Como se aplicam as mesmas considerações sobre a total gratuitidade, o único comentário adicional é saber se o “vale farmácia” tem em si mesmo algum processo (de baixo custo) que evite abusos (embora não seja aparente).

IL: não há referência

Livre: Refere genericamente os regimes de comparticipação, tendo como guia garantir que “nenhum doente deixed e cumprir um regimet erapêutico por insuficiência económica”, estando por isso a minha prioridade alinhada com esta proposta. 


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“O futuro da saúde em debate” – sobre a sessão promovida pela Associação Portuguesa de Economia da Saúde

Decorreu na noite de 20 de Janeiro 2022 uma sessão promovida pela Associação Portuguesa de Economia da Saúde (video disponível via Facebook ou via YouTube) tendo como tema as propostas dos partidos com assento parlamentar para a área da saúde. Não são exatamente debates, sendo antes o usual formato de entrevista individual em formato coletivo, o único possível no tempo disponível e com tantos intervenientes.

A sessão teve consensos, quase unanimidade, em alguns temas, divergências claras noutros. Organizando a meu resumo e comentários imediatos por esses temas. [nota de cautela: o meu entendimento do que foram as posições expressas pode não corresponder ao que os intervenientes quiseram transmitir, é apenas a minha leitura do que ouvi.]

1: Serviço Nacional de Saúde financiado por impostos, como ponto central do sistema de saúde português. Assumido sem qualquer qualificação por todos os participantes. Apenas com diferenças na forma de concretização do que é o papel de proteção dado pelo SNS (ver abaixo).

2: Articulação sector público vs sector privado na prestação de cuidados de saúde.

2a) Papel supletivo, sem ter lógica concorrencial, do sector privado (com e sem fins lucrativos, este último normalmente designado por sector social) face ao SNS: PS, PSD, BE, CDU,

2b) O SNS enquanto pagador pode optar pelo prestador, público ou privado, que melhor resposta conseguir dar: CDS

Comentário: Há que distinguir o que são “desejos” e o que é a “realidade”. A ideia de que o sector privado estará à espera das “migalhas” que o SNS lhe deixar, quando lhe deixar, e que está sempre pronto a cumprir as “vontades” e “necessidades” do SNS é ingénua e propiciadora de problemas. Na medida em que qualquer pessoa pode escolher entre ir ao SNS ou a um prestador privado, os prestadores estarão necessariamente em concorrência. Não vejo como será possível a um doente que se dirige a um prestador privado, com ou sem fins lucrativos, receber uma resposta desse prestador que seja algo como “verificou que o SNS não o pode tratar? Veja lá que só o posso receber se vier com uma carta em que o SNS declara que não tem capacidade de o fazer e que supletivamente o indica para ir a um prestador privado”. Ou seja, se uma pessoa doente decidir recorrer a um prestador privado em vez de ir ao SNS e estiver disposto a pagar (como parece ser o caso pelos elevados pagamentos diretos que vão para prestadores privados), então a concorrência com o SNS estará sempre presente – o outro lado da medalha de concorrência é liberdade de escolha do doente, e não estou a ver como a lei de bases da saúde obriga qualquer pessoa que se sinta doente a ter de ir ao SNS. A grande implicação é que o SNS tem que assumir que os doentes podem comparar os serviços do SNS com os do sector privado, e nalguns casos poderão escolher um ou outro. Só mesmo obrigando o sector privado a fechar aquilo que o SNS determinasse que deveria fechar é que esta situação concorrencial não existiria. Mas a liberdade haver prestadores privados não está em causa, nem para o Bloco de Esquerda (pelo menos, no que foi expresso na sessão).

3: Subfinanciamento crónico do Serviço Nacional de Saúde – reconhecido como unânime, não houve qualquer proposta de como resolver (aumentar impostos, reduzir outra despesa, reduzir coberturas do SNS, outra solução que ainda não tenha sido pensada?). A Iniciativa Liberal referiu a necessidade de suficiência orçamental, mas sem na sessão elaborar mais, pelo que fica para a leitura das respeitas propostas eleitorais. Foi bastante mais clara a opção de alterar o modelo de financiamento público (que não deixará de ser por via de impostos) para um modelo com várias agências de base regional e inscrição obrigatória.

Comentário: a proposta da Iniciativa Liberal parece retomar a proposta da Comissão presidida por Daniel Serrão, de 1999, mas só uma leitura das propostas permitirá clarificar, fica para outro texto). Discordando, ou não, é pelo menos uma proposta clara de alterar o modelo de financiamento

4: Incapacidade do SNS cumprir o seu papel, como demonstrado por haver 4 milhões de portugueses com seguros de saúde para terem acesso a cuidados de saúde: PSD

Comentário: este é um dos “mitos” que perdura na discussão do sistema de saúde português.  E mito por dois motivos – primeiro, a parte quantitativa do número de pessoas seguras – de acordo com os dados da Associação Portuguesa de Seguradores, disponível só o valor de 2019 no website (no que está disponível de forma aberta), no polígrafo, o valor que encontraram na verificação feita a partir de um artigo do jornal “ECO”, foi de quase três milhões de pessoas, e se cada pessoa tiver mais de um contrato de seguro de saúde, o número de contratos de seguros de saúde privados pode ser maior do que três milhões. O segundo motivo, e mais forte a meu ver, é o facto de os fundos financeiros movimentados por estes seguros de saúde serem cerca de 3,82% do total de financiamento do sistema de saúde português em 2019, segundo a conta satélite da saúde do INE. Está longe de ser um montante significativo. Aliás, muito longe sequer de conseguir captar muito dos pagamentos diretos das famílias (que estão nos 30% do financiamento global da saúde), e bastante perto do volume de financiamento público via deduções fiscais (que é uma forma de seguro público), que corresponde a 3,62%. Logo, usar os seguros privados como indicador de falhas do SNS é pouco interessante, o foco deverá ser os pagamentos diretos das famílias. A importância dos pagamentos diretos foi mencionada pelo CDS, mas sem elaboração sobre como resolver o problema, se é que é visto como problema (pareceu-me que sim). Também o Livre referiu os problemas das taxas moderadoras e dos copagamentos, e da forma como afetam as famílias de menores rendimentos. Aqui, faltou apenas darem um passo: reconhecer que para as taxas moderadoras, as isenções existentes tratam diretamente das dificuldades de acesso por motivos financeiros (é um dos motivos para ter isenção de taxa moderadora), enquanto para os copagamentos, nomeadamente nos medicamentos, a carga de despesa sobre as famílias de menores rendimentos é ainda grande. A solução de eliminar totalmente copagamentos e taxas moderadoras, apresentada pelo Livre, levanta logo a questão de como se financia, e de como se controla a utilização excessiva. Em particular, se forem abrangidos os copagamentos nos medicamentos. Para perceber melhor o que possa estar em causa, será bom que se volte a olhar para o que foi, em 2009, o resultado de fornecer de forma totalmente gratuita medicamentos a uma parte da população (idosos de baixos rendimentos), onde o efeito, incluindo casos de fraude e abuso que foram reportados na altura nos media. Basta pensar que se um medicamento for dado gratuitamente a uma pessoa, o que a impede de dar (vender?) a outra pessoa e ir novamente pedir dizendo que perdeu o que lhe foi dado, sobretudo com medicamentos de prescrição obrigatória. Mas o ponto que é necessário rever os copagamentos é perfeitamente válido, só no antevejo que a solução, devidamente pensada em todas as suas consequências, venha a ser gratuitidade total.

5: Necessidade de carreiras profissionais no Serviço Nacional de Saúde: BE, PAN, 

Foi um aspecto em que não houve contestação ou divergência visível (pelo menos, ninguém defendeu a ausência de carreiras profissionais). Embora não tenha sido explicitado por todos, e tenha sido o BE a dar mais tempo e argumentação neste campo, parece consensual a necessidade dessas carreiras serem pensadas com elementos que vão além da mera componente salarial, tendo sido falado pelo BE a importância da atualização científica e de outros elementos não remuneratórios (tradução minha: necessidade de fazer com que os profissionais de saúde se sintam bem e acarinhados por trabalharem para o SNS, o que remete para a qualidade de gestão). A CDU introduziu nesta linha o tema de combate à precariedade em funções que correspondam a necessidades permanentes (aqui mais uma vez, acaba por se remeter para a qualidade da gestão e para as condições que a gestão das instituições tenha, além do aspecto central de não ter precariedade não poder ser carta branca para receber remuneração sem prestação correspondente, há que pensar nos contratos de trabalho não só como fonte de rendimento para o trabalhador mas como asseguram que os cuidados de saúde são prestados com regularidade, em tempo certo e com qualidade à população). A dedicação exclusiva também surgiu como parte desta discussão. Aqui, remeto para o comentário à proposta de estatututos do SNS que foi apresentada em Outubro de 2021, e onde discuti esta ideia de exclusividade.

6: Importância de todos os residentes em Portugal terem acesso a um médico ou uma equipa de família (médico, enfermeiro, outros profissionais). Foi também um tema de convergência.

Comentário: Além de “passar culpas” de este ser um objetivo sempre presente e nunca atingido, não houve uma verdadeira solução que tenha sido apresentada. Quando se foi nesse caminho, remeteu-se para o aspecto anterior (das carreiras profissionais e das condições a elas associadas, como solução igualmente para este problema). Sendo este o primeiro problema a ser resolvido de forma permanente, a principal fragilidade que se nota na discussão é falta de conhecimento e informação sobre o que se passa – onde estão as principais falhas de cobertura de médico/equipa de família? São sempre nas mesmas zonas (e quais são essas zonas)? Tem havido concursos que nem sempre preenchem todas as vagas, porquê? Que análise existe dos motivos de ficarem concursos semi-desertos? E depois dos concursos preencherem vagas, há depois saídas, algumas por aposentação (não deveriam ter sido previstas e planeadas as substituições, atendendo aos tempos burocráticos dos concursos), outras com outros motivos (sabe o SNS porque razão cada saída ocorre? Se sim, muda alguma coisa nos concursos e nas condições de trabalho para que não ocorram?). Aqui há mais perguntas que respostas, e se não esperava que os partidos tivessem as respostas todas, pelo menos teria gostado de ouvir que perguntas querem fazer para que possam apresentar soluções permanentes.

7: Importância dos factores sociais para a saúde das pessoas – PAN, PS, PSD

“A pobreza é um problema que gera doença” foi reconhecido como algo a que é preciso dar atenção. A redução das desigualdades económicas como forma de melhorar as condições de saúde da população.

8: Promoção da saúde e prevenção da doença – Livre, PSD

Este é aquele tema que ninguém consegue ser contra. A dificuldade não está na ideia, está na concretização, e pelo menos nesta sessão não foi avançada qualquer proposta concreta que alcance um resultado que seja desejado (qual?). A ver se nas propostas dos partidos há alguma concretização mais. 

9: As acusações de “teimosias ideológicas” passaram também pela sessão, sem diferenças face ao habitual que mereçam grande referência. Apenas como excepção a afirmação do Livre de ser um mito a superioridade da gestão privada face à gestão pública. Totalmente de acordo. E daqui não se pode concluir que seja a gestão publico a ter superioridade sobre a gestão privada (conclusão que já não foi retirada na sessão). Mais do que a natureza pública ou privada da gestão é as condições, o enquadramento e a responsabilização inerente a essa gestão. Em termos técnicos, o central são os incentivos económicos dados a essa gestão. Se disser “gaste o que quiser que eu depois pago”, vou ter sempre despesa desnecessária quer seja gestão privada quer seja gestão pública.

10: Outros temas foram mencionados, embora não detalhados, e que por terem sido focados vários deles na ronda final de intervenções, não é possível perceber desta sessão qual a posição dos vários partidos sobre esses temas. Incluíram aspetos mais operacionais por vezes (por exemplo, rever o rácio de capitação de utentes por médico de família – PAN, medidas de liberalização de entrada na prestação (de alguns serviços) – Iniciativa Liberal) e aspectos de natureza organizativa mais estratégica (criação das Unidades de Saúde Familiar tipo C – Iniciativa Liberal, papel das farmácias – Iniciativa Liberal, papel da hospitalização domiciliária – PAN, preparação do SNS para as situações de “COVID-19 longa” – Livre, “Uma só saúde”/One health, ou seja pensar de forma integrada a saúde humana, animal e o ambiente – PAN, saúde mental – Iniciativa Liberal, saúde em todas as políticas – Livre, aposta na digitalização – Livre, envelhecimento ativo – PSD, cuidados paliativos – PSD, cuidadores informais – PSD, regular e fiscalizar terapêuticas não convencionais – BE). 

O passo seguinte é agora analisar o que se encontra proposto pelos vários partidos. Fica para os próximos dias.

E tenham a liberdade de adicionar outras análises do debate, ou de comentar, ou de dar a visão que tenham sobre os vários temas da saúde, incluídos ou não nesta sessão.

Nota final: se me enganei na posição ou afirmação de algum dos intervenientes, não foi propositadamente, e farei a respetiva correção, se justificada. 


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sugestão de leitura

para quem quiser ver a opinião de economistas da saúde sobre os programas eleitorais (no que diz respeito à área da saúde) apresentados às eleições legislativas, numa iniciativa da Associação Portuguesa de Economia da Saúde, ler aqui.


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Observatório mensal da dívida dos hospitais EPE, segundo a execução orçamental (nº 72 – Janeiro 2022)

Ano Novo, tempo de retomar o tema dos pagamentos em atraso dos hospitais EPE, tanto mais que houve o reforço extraordinário habitual de fim de ano (desta vez de 630 milhões de euros) para os hospitais. Com os dados referentes a Novembro de 2021 (publicados em Dezembro de 2021), a principal noticia é o crescimento acelerado dos pagamentos em atraso, provavelmente já em antecipação das anunciadas verbas adicionais (aliás, à semelhança do que tem sucedido em ciclos anteriores). As dinâmicas tradicionais são mantidas mais uma vez, e logo que seja transferidas as verbas para os hospitais, a divida em atraso vai cair, para depois retomar o seu crescimento (é a melhor previsão possível, com base na experiência passada e na ausência que qualquer mecanismo claro que venha a evitar essa tradição). Mais preocupante é o crescimento dos últimos 4 meses, descontadas as transferências extraordinárias – que como referido várias vezes alteram o stock mas não mudam a dinâmica do fluxo -, ser ao ritmo de 92 milhões de euros por mês, ou mesmo se fosse o ritmo mais lento de 2020-2021, ainda assim seria de 64 milhões de euros por mês. Isto significa que muito provavelmente 2022 será similar aos outros anos. Em Julho ou Agosto vai-se estar novamente a falar em falta de verbas e de reforço extraordinário, mesmo que seja poucos meses após aprovação do novo orçamento do estado.

Neste momento de campanha eleitoral, uma pergunta clara para procurar a resposta nos programas eleitorais de todos os partidos (ou nas intervenções, entrevistas, respostas a perguntas dos responsáveis partidários), é como pretendem resolver este problema recorrente, que terá também consequências (que ainda não vi medidas) sobre a capacidade assistencial dos hospitais, e sobre a saúde das pessoas?

As respostas podem ser várias, incluindo pague-se tudo o que os hospitais pedirem, no questions asked, mesmo que isso signifique mais impostos (ou redução de outra despesa, ou…).

Tenho curiosidade de saber se algum partido terá capacidade (técnica) de apresentar uma proposta credível e capacidade (política) para eventualmente ver essa proposta aplicada (qualquer que seja o Governo que venha a sair das eleições do final deste mês).

E quem tiver ideias e/ou sugestões, pode usar a caixa de comentários 🙂

Bom Ano de 2022 !


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“Virar a página” em 2022 (?)

mensagem de Ano Novo do Presidente da República tem ficado marcado na discussão pública pelo termo “virar a página”, sendo que a mensagem foi feita num tom suficientemente geral para que todos possam encontrar com que concordar. 

Ouvindo (ou relendo) a mensagem, tem mais significado o termo “muito mais a fazer”. E há várias áreas onde se pode aplicar essa ideia. 

Na minha leitura do que nos espera em 2022, tenho menos optimismo que Marcelo Rebelo de Sousa, sobretudo porque “menos pandemia” não é algo consigamos escolher. E o “virar a página” na tensão pandemia – economia em que andamos desde março de 2020 não pode ser anunciado, embora possa e deva ser preparado. Só que a preparação não pode partir do princípio de que se vai “virar a página” no sentido de apagar tudo o que nos condicionou nos últimos (quase) dois anos. 

A principal característica da nossa vida económica e social durante o ano de 2022 será, provavelmente, a incerteza. Com múltiplas faces. Pelo menos oito:

  1. Incerteza quanto à evolução da pandemia – não conseguimos controlar o surgimento de novas variantes, que podem ser mais transmissíveis e mais letais no futuro. É certo que temos mais capacidade de lidar com a pandemia: temos vacinas, que podem ser ajustadas com rapidez, temos melhor conhecimento sobre que tratamentos usar, e teremos brevemente disponíveis medicamentos, com eficácia crescente. Mas não deixará de haver incerteza quanto ao surgimento de novas variantes, sobretudo quando há ainda, a nível global, uma baixa taxa de vacinação.
  2. Incerteza quanto aos efeitos que o plano de recuperação e resiliência irá ter na economia portuguesa e sobre a dinâmica empresarial. Em particular, interessa que os fundos usados consigam resultar em maior produtividade global das atividades económicas, públicas e privadas. A maior produtividade é essencial para que se consigam melhorar os níveis de vida, em geral, da população que vive em Portugal. Implica que não só aumente a produtividade nas empresas e no sector público, como se tenha possibilidade de expandir sectores que tenham maior capacidade de crescimento da produtividade, com passagem de trabalhadores de umas áreas para outras. Os apoios públicos para suporte das empresas (e dos rendimentos das famílias) durante o tempo da pandemia abrandou, ou parou mesmo, a renovação habitual de empresas na economia (todos os anos nascem e desaparecem empresas, cria-se e destrói-se emprego). Esse abrandar de renovação em 2020 e 2021 pode traduzir-se em 2022 num resolver de situações acumuladas, sendo fácil que surja a tentação política de travar essa renovação habitual. 
  3. Incerteza quanto ao ambiente económico internacional – sendo a sua melhoria essencial para a recuperação duradoura das exportações. A recuperação económica dos nossos principais parceiros económicos será um dos “motores” para a recuperação económica nacional.
  4. Incerteza quanto à estabilidade governativa em Portugal – com eleições logo no início do ano de 2022, só ao fim de alguns meses se tornará claro qual o caminho macroeconómico que será adotado (sobretudo se não houver maioria absoluta de um partido, e o orçamento do estado continuar no formato de “venda de feira” de medidas de política económica).
  5. Incerteza quanto à mobilidade internacional de pessoas – sendo Portugal um país que teve uma parte importante da sua criação de riqueza nas últimas décadas ligada ao turismo, o retomar da circulação internacional de pessoas será um elemento facilitador da recuperação económica nacional. Mas também podemos incluir aqui a importância dessa circulação internacional para a “exportação de serviços de educação” no ensino superior, que vinha a crescer antes da pandemia.
  6. Incerteza quanto aos modelos de trabalho presencial e à distância (e todas as suas combinações que foram experimentadas durante os tempos de pandemia). Há incerteza sobre que combinação de trabalho presencial e teletrabalho vão surgir e estabilizar-se em resultado da aprendizagem realizada durante a pandemia.
  7. Incerteza quanto ao funcionamento do ano escolar, sendo que estamos no terceiro ano escolar desestabilizado pela pandemia. É necessário saber o que fazer para não interromper a escola presencial.
  8. Incerteza quanto à evolução da inflação, e por arrasto a evolução das taxas de juro nominais, mais cedo ou mais tarde. Num país como Portugal, em que há uma elevada dívida pública mas também uma elevada dívida privada (empresarial e das famílias, estas últimas na aquisição de habitação própria), a incerteza sobre as taxas de juro é relevante. 

Lidar com estas incertezas será o grande desafio do próximo ano, que terá de ser respondido de forma individual e de forma coletiva (pelos decisores públicos). Lidar com estas incertezas significa ter capacidade de decidir bem, individualmente e coletivamente, de forma a conseguir apoiar a saúde, apoiar quem esteja economicamente mais vulnerável na população, e fomentar as condições para o aumento da produtividade (nas empresas e na administração pública). Se em condições normais o equilíbrio entre estes dois últimos aspetos não é simples, incluir o elemento da saúde (pandemia) só adiciona complexidade. Daí que “virar a página” não seja propriamente “esperar que o tempo trate do assunto”.