Não estava a contar voltar ao tema da lei de bases da saúde. Como as última semanas foram “animadas” nesta discussão, com revelação de documentos (privados?), duas cartas abertas, uma delas do primeiro-ministro, pressão por noticias mediáticas a incidir sobre os hospitais PPP, acaba por ser necessário voltar ao tema.
Mais do que expressar outra vez a minha opinião sobre a exclusão, ou não, das PPP do sistema de saúde, por via legal, importa olhar com cuidado para argumentos que têm sido apresentados.
Tomemos em primeiro lugar o argumento, invocado por várias vezes, de que um hospital PPP só faz o que está contratado, Um exemplo desse argumento: “os hospitais PPP prestam exclusivamente os cuidados de saúde que estão estabelecidos no seu contrato e os hospitais de gestão pública estão obrigados à cobertura universal e geral” (Ana Jorge, Expresso, 4 de maio de 2019); “Os estabelecimentos com gestão pública estão obrigados à cobertura universal e geral, enquanto os estabelecimentos com gestão privada só estão obrigados à cobertura contratual” (carta ao secretário-geral do PS, 30 de abril de 2019, Jornal Público).
Esta posição, ou argumento conforme se queira chamar, é, pelo menos, incompleto. Induz em erro, pelo que é preciso ser claro no que está dito e na sua relação com a realidade.
Os hospitais PPP são hospitais do SNS. Não há qualquer dúvida quanto a essa característica (significa por isso que a cobertura da população que dão é a cobertura que o Serviço Nacional de Saúde lhes definiu e para usar o termo “cobertura” como equivalente de serviços prestados, à semelhança das frases acima atadas).
Ou seja, o que se critica nas afirmações é a escolha que o SNS fez do que colocou no contrato com a entidade privada de cada PPP. A forma como é referido induz a pensar que é um problema de cobertura criada pelo parceiro privado quando na verdade, a existir problema, terá sido originado pelo parceiro público.
Mas usar aqui o termo “cobertura” é incorrecto. Este termo remete para a responsabilidade de uma entidade em assegurar o acesso a cuidados de saúde por parte da população. Ora, essa responsabilidade é, e não deixa de o ser nas PPP, do Serviço Nacional de Saúde.
O Serviço Nacional de Saúde é que decidiu que a forma operacional de garantir essa cobertura seria, nalguns casos, por serviços prestados por hospitais públicos com gestão privada (as PPP).
Noutros casos, é garantida por hospitais de gestão pública. Noutros ainda, o Serviço Nacional de Saúde contrata outros prestadores, do sector privado (entidades com ou sem fins lucrativos).
A transferência da responsabilidade da cobertura é o que tecnicamente se designa por “opting out” . Não é uma opção que se possa confundir com o que são parcerias público-privadas. Não é o que está em causa nesta discussão.
Dirão que esta distinção técnica não é relevante. O que importa é que os hospitais de gestão pública do SNS fazem muito mais que os hospitais com a gestão privada. Mas também essa comparação não é adequada: O Serviço Nacional de Saúde estabelece um “contrato” diferente com a gestão pública dos hospitais. Implicitamente, e para corresponder ao espirito da afirmação “cobertura geral e universal”, o que se quer dizer é que os hospitais de gestão pública podem gastar o que quiserem que o dinheiro aparecerá sempre.
Se assim não for, e se os hospitais públicos tivessem que respeitar escrupulosamente o orçamento que o serviço Nacional de Saúde lhes atribui, deixariam de atender a população algures no Outono de cada ano, num razoável número deles.
O contrato equivalente de uma PPP não é difícil de estabelecer segundo o espirito dessa cobertura geral e universal: bastava que o contrato PPP dissesse que a gestão do hospital do SNS nesse regime não teria limitações na sua actividade, bastando apresentar a “conta” da despesa realizada no final do ano.
Este contrato aberto para uma PPP não daria bom resultado, tal como não dá na gestão pública dos hospitais do SNS quando se gera o sentimento de que toda e qualquer despesa será paga, mais cedo ou mais tarde. O sempre presente problema dos pagamentos em atraso pelos hospitais de gestão pública é disso testemunho (ainda que aqui também haja uma boa dose de orçamento insuficiente).
O que se critica na gestão PPP é uma das suas vantagens: garantia para o Serviço Nacional de Saúde de só pagar aquilo que contratar. É aceitável que se diga que não se quer a opção das PPP apenas porque não se gosta da gestão por privados. Usar o argumento da “cobertura” é simplesmente errado e leva uma percepção distorcida da situação.
Um segundo argumento é que se gastam perto de 500 milhões de euros por ano com PPP dos hospitais. Terminando a frase neste ponto, pode ficar a sensação de que esses 500 milhões de euros poderiam ser usados de outra forma no SNS. Uma vez mais, não dizer tudo induz em erro. Esses são milhões só poderiam ser usados de outro modo se estes hospitais encerrassem. Não creio que seja isso o que se pretende. Não encerrando os hospitais, o que é pago pelo contrato de uma PPP para a gestão de um hospital do SNS terá que ser transferido como orçamento para o mesmo hospital se este tiver gestão pública, Aliás, será interessante ver se no caso do Hospital de Braga, que irá deixar de ser uma PPP em breve, o orçamento atribuído pela SNS será igual ao que resultaria da continuação do contrato PPP por mais dois anos como pareceu ser, a dada altura, a intenção do SNS (Governo).
O terceiro argumento é o da maior ou menor eficiência da gestão privada dos hospitais do SNS face à gestão pública. Ora, na parte financeira, com os contratos PPP a serem cumpridos sem renegociações substanciais dos valores a pagar aos parceiros privados, será muito difícil argumentar que foram ruinosos como despesa para o SNS. Na parte de qualidade, a avaliação realizada no contexto do SINAS – sistema de avaliação de qualidade criado e gerido pela Entidade Reguladora da Saúde, colocam as PPP numa patamar de topo. Resta por isso atirar com casos mediáticos que denigram a imagem das PPP. Infelizmente, também se podem encontrar facilmente situações pontuais de mau funcionamento dos hospitais públicos, e não é por isso que se reclama que devam ser privatizados, no que seria uma reacção em espelho à que se tem procurado criar. Por exemplo, e numa busca rápida no google, a noticia “avarias diárias no hospital [de gestão pública] reduziram tempo de vida a doentes com cancro” não motivou o pedido de que fosse privatizado como solução (provavelmente, por ser público seria defendido que deveria receber mais dinheiro, enquanto se fosse uma noticia sobre um hospital privado se pediria o seu encerramento).
A comparação, internacional e em vários momentos do tempo, entre a gestão pública e a gestão privada não tem sido conclusiva sobre qual delas é dominante, no sentido de uma gestão pública ser sempre melhor ou ser sempre pior que uma gestão privada (há várias revisões de literatura que podem ser consultadas sobre este tema, para o leitor que estiver interessado). Para Portugal, quem quiser comparar indicadores de gestão PPP com outros hospitais públicos (de gestão pública), pode utilizar o site de benchmarking da ACSS (os hospitais PPP estão no grupo B).
O elemento fundamental não é a natureza da gestão, e sim o contexto em que essa gestão se desenvolve. E aqui sabemos um pouco mais, que certas regras permitem ou dão origem a melhor gestão, enquanto outras têm o efeito contrário. E essa complexidade transporta-se também para saber se a gestão das PPP é melhor ou pior que a gestão pública. Para ilustrar com um par de elementos que faz essa diferença. A gestão privada no âmbito de um contrato PPP permite definir claramente o que é pago e por quanto é pago. Em serviços que seja fácil estabelecer estes elementos, é provável que a PPP funcione bem, e que a possibilidade de o contrato não ser renovado se não houver desempenho adequado seja indutor de boa gestão. A gestão pública, se assente numa lógica de tudo o que se gasta é pago (pelo contribuinte) facilmente resulta em despesa e serviços prestados excessivos (no sentido em que não trazem sequer benefícios para os doentes ou para a população). Mas se estivermos a falar de serviços onde há grande incerteza sobre o que vão ser as terapêuticas necessárias e os custos que vão ter, então a rigidez do contrato PPP, vantajosa noutras circunstâncias, torna-se uma dificuldade. Na ocorrência de situações não antecipadas, a gestão pública terá vantagem de flexibilidade sobre a gestão privada no contexto PPP (e não é por acaso que os principais diferentes entre gestão privada da PPP e a entidade pública contratante ocorram em aspectos não antecipados). Esta discussão não é nova, aliás. Se recuarmos 10 anos (menos um mês), um relatório de 2009 discutia essas vantagens e desvantagens.
Resumindo, os argumentos que pretendem a proibição das PPP no sector da saúde não me parecem razoáveis. E, como já referi noutros posts, permitir a possibilidade das PPP não obriga a que todos os hospitais (ou uma sua maioria) sejam geridos nesse regime (não será desejável, é necessário que Serviço Nacional de Saúde mantenha capacidade de gestão hospitalar própria).
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