Há um mês, ocorreu a apresentação, por parte de um grupo de reflexão, de “Princípios Orientadores para uma Lei de Bases da Saúde“, que traz mais uma contribuição para a discussão.
Numa visão rápida desses princípios propostos, a maior parte deles será consensual (julgo). Por exemplo, não haverá provavelmente grande discordância com “O sistema de saúde deve ser centrado no cidadão, e nas suas necessidades de saúde” (principio I). A sua operacionalização é que poderá lugar a diferentes opções.
O segundo princípio fala na maior participação dos cidadãos e representantes dos doentes. Aqui a pergunta que me surge é porquê? porque têm melhor informação? que é informação é necessária que não pode ser obtida de outra forma? que enviezamentos potenciais podem daqui resultar? haverá aqui a necessidade de um equilibrio entre maior informação sobre preferências dos cidadãos / doentes e ter em conta aspectos de custos de oportunidade nas decisões a tomar? e porquê “nomeadamente” na introdução da inovação?
O terceiro principio propõe dar mais atenção à educação para a saúde e à prevenção da doença. É também ele um principio pacífico, que reflete a evolução do pensamento global sobre o papel de um sistema de saúde. Mas será preciso depois saber a extensão da “educação” que se pretende dar – se é para criar conhecimento sobre o qual os cidadãos possam decidir, ou se é para informar os cidadãos de qual é a “decisão correta” que devem tomar?
O quarto princípio reporta a proposta de criação de uma lei de meios para o Serviço Nacional de Saúde. Esta proposta parece ter duas componentes. Por um lado, a criação de algum tipo de “Orçamento do SNS” que explique as opções tomadas quanto à utilização de fundos. É algo que haverá, concordo, vantagem em ter. Mas por outro lado, não é claro que mais se ganha, como é que a lei de meios contribui para a racionalidade da despesa, e para a prossecução dos fins do Serviço Nacional de Saúde, respeitando as disponibilidades de fundos do sector público. Pretende dar apenas um quadro mais estável através da programação plurianual de receitas, que é retomada no principio seguinte, onde se fala em orçamentos plurianuais?
Neste quinto princípio, há que ter em atenção dois aspectos. Ter orçamentos plurianuais não garante, por si só, que deixe de haver subfinanciamento crónico do Serviço Nacional de Saúde (será ainda de esperar que no desenvolvimento futuro das fundamentações desta proposta de princípios orientadores seja apresentada uma estimativa desse subfinanciamento – a diferença entre o financiamento atual e o que seria suficiente para garantir a mesma atividade assistencial). O invocar o envelhecimento da população é insistir num problema que não é de orçamento – apesar de popular, a visão de que o envelhecimento da população é um elemento de grande crescimento das despesas do SNS não é correta. A regularidade encontrada na literatura de economia da saúde é que o envelhecimento da população contribui para o crescimento das despesas, mas de uma forma muito menor que outros fatores, estando à cabeça a introdução de inovação.
O sexto princípio propõe que o sistema de saúde aproveite a prestação e gestão de serviços de saúde independente da sua natureza pública, privada ou social. Neste ponto difere de outras propostas de revisão da lei de bases da saúde que têm surgido na discussão pública. A este respeito, é importante clarificar que o sistema de saúde tem dois lados distintos: a parte de proteção (financeira) da população (seguro, em termos técnicos) e a parte de prestação de cuidados de saúde. Um mecanismo de proteção público como o Serviço Nacional de Saúde (seguro público, com verbas baseadas em impostos gerais, logo em solidariedade no financiamento via impostos) é compatível com diferentes configurações da prestação, em termos da natureza desses prestadores. Convém perceber as vantagens e desvantagens de cada tipo de prestador, em cada contexto. A prestação de cuidados de saúde é um instrumento e não um fim em si mesmo, sendo por isso razoável que se procure não limitar à partida os diferentes formatos que possa ter. Este será um principio que terá diferenças entre grupos de proponentes de revisão da lei de bases da saúde.
O sétimo principio vem falar explicitamente da complementaridade entre sector público, por um lado, e sector privado e sector soclal, por outro lado, na prestação de cuidados de saúde. Não me parece que o termo “complementaridade” venha dizer muito, pois não parece fácil definir de uma forma global as fronteiras de intervenção na prestação segundo a natureza do prestador. Mais relevante será o enquadramento para as atividades do prestador. Ser privado não é automaticamente sinónimo de eficiência, tal como ser prestador público também não o é. Ser prestador público não significa dar automaticamente mais atenção às necessidades dos cidadaõs do que ser prestador privado, se o primeiro estiver voltado para os objectivos dos profissionais de saúde e o segundo tiver como elemento central para ser escolhido pelos cidadãos satisfazer as necessidades destes. Este é um campo onde a procura de verdades absolutas quanto ao domínio de um tipo de prestador sobre outro não se joga na natureza pública, privada ou social, e sim no quadro de funcionamento que é adoptado.
O oitavo principio fala na “efectivação do direito à saúde”, que é uma forma usual, mas na realidade pouco exacta de referir o que o Estado consegue assegurar, o acesso a cuidados de saúde, e não a saúde propriamente dita.
O nono principio toca em três elementos chave de evolução do sistama de saúde: envelhecimento saudável, acompanhamento e tratamento da doença crónica, e doença mental. O grande traço comum a estes três desafios é que exigem uma organização diferente do sistema de saúde, e do Serviço Nacional de Saúde. Exige menos standardização e maior adaptação das intervenções do sistema de saúde às diferenças, incluindo diferenças de preferências, entre cidadãos/doentes. É uma linha de desenvolvimento que naturalmente se cruza com muitos dos outros principios.
Sendo muitos dos subscritores destes princípios orientadores pessoas com longo trajeto no campo da saúde, em vários domínios, é de esperar que ao longo do processo de discussão à volta da lei de bases da saúde, surjam as propostas concretas e sua justificação (argumentativa ou baseada em dados reais). É um contributo bem vindo.
10 \10\+00:00 Junho \10\+00:00 2018 às 22:25
E o principio da liberdade de escolha do prestador não deveria constituir uma trave mestra de todo o sistema de saúde?
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13 \13\+00:00 Junho \13\+00:00 2018 às 12:05
Não necessariamente – a liberdade de escolha com proteção de seguro que “isola”/protege das consequências financeiras das decisões não resulta em escolhas eficientes. A liberdade de escolha pressupõe também que haja clareza quanto às consequências, desta vez para os prestadores, dessas escolhas – quem não for escolhido, fecha actividade? A liberdade de escolha precisa de ser feita em condições apropriadas.
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15 \15\+00:00 Junho \15\+00:00 2018 às 11:08
Apenas relativamente ao primeiro e segundo principio:
O que é isto do “centrado no cidadão”?, é ter pessoas que supostamente sabem o que o cidadão quer e decidem por ele? Sem entrar em grandes considerandos porque este espaço não se destina a tal. Quantas das pessoas que analisam problemas de acesso aos serviços já passaram por esses problemas? Quantos já estiveram 10horas numa sala de espera de urgência? Claro que não é preciso passar pelo mesmo para estudar as questões e isto parece aquelas justificações das conversas da paragem do autocarro, mas quando se ouve em conferências recentes, associações de defesa dos utentes dizer que as coisas tem que melhorar porque os utentes vão para os centros de saúde às 08:00h?? Apenas se pode constatar que tal interveniente nunca teve necessidade de um centro de saúde. Os utentes ainda na maioria dos casos vão às 5 ou 6 horas, ou como agora acontece para evitar este facto, pode-se marcar em qualquer horário sendo que a consulta irá ser realizada 1 mês depois (na melhor das hipóteses), ou seja em 1 mês muita coisa pode acontecer. O que é estar no centro? E para quê? O utente tem que ficar tão satisfeito com o tratamento, como o médico ou o enfermeiro com o seu desempenho e com o seu trabalho, o utente nunca estará no centro se quem presta o serviço não estiver em condições para o fazer correctamente. Já agora e que tal centrado na gestão?(visão económica), que é o que os serviços privados fazem (sim, eles dizem que não, mas se assim não fosse qual era a razão da sua existência?), e não é menos correcto dizer neste caso o centro está na gestão, e não é uma crítica é apenas uma opção de fornecimento de um bem/serviço. Isto da teoria “utentocêntrica”, duvido que seja o mais correcto.
Relativamente ao segundo princípio nem vou entrar em critérios de economia da saúde porque existe quem esteja a anos-luz do meu conhecimento, apenas realço a questão da prestação de um bem/serviço que o doente não tem oportunidade de escolher, e não vou para a parte técnica, ou seja cá vai mais um exemplo: porque é que nos hospitais públicos (alguns) e no caso do internamento, os doentes não tem a possibilidade de escolher se querem exames de endoscopia com sedação? Vai sem sedação porque é mais barato e mais nada, isto faz sentido? O doente não escolhe o remédio ou o exame, mas pode escolher se quer ter dores ou não, e isso ele sabe, é uma escolha que ele pode fazer em consciência, aquela coisa do “é só um dorzinha não custa nada”, todos sabemos que é um abuso médico, de quem fornece um serviço sem hipótese de o “comprador” do serviço se poder pronunciar. Parece-me que é aqui que a participação e integração pode começar.
Os outros principios também têm muito que se lhes diga….
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