as discussões sobre os transportes em Lisboa, que ganharam algum destaque na semana passada, merecem uma reflexão adicional sobre o rumo do debate, qualquer que seja o resultado final. Há vários aspectos a serem desenvolvidos (não cabe tudo num único texto), mas aqui fica como pontapé inicial para a discussão:
Transportes e obrigações de serviço público
07/11/2011 | 00:32 | Dinheiro Vivo
A semana que passou teve como ponto alto o novo plano de transportes para Lisboa, e a que entra assistirá ao início das greves no sector dos transportes. Começa agora verdadeiramente a prova de fogo ao Governo sobre a capacidade de reestruturar o sector público, incluindo as grandes empresas públicas.
Neste processo, há alguns aspectos essenciais a reter no acompanhamento da discussão, e das soluções que venham a ser apresentadas.
Em primeiro lugar, há que definir se existem “obrigações de serviço público” que se deseja serem cumpridas do ponto de vista da Sociedade. “Obrigações de serviço público” no caso dos transportes referem-se essencialmente a linhas de comboio ou metro e a carreiras de autocarros que se pretende que existam mesmo que acarretem prejuízos operacionais (na margem). Por exemplo, linhas de autocarro que sirvam zonas menos favorecidas.
Na ausência dessas obrigações de serviço público, a solução deverá passar pela privatização pura e simples das empresas. Repare-se que dizer que não existem “obrigações de serviço público” no sentido que aqui lhes dei (e outras definições podem ser usadas) significa que o funcionamento de empresas privadas (apenas sujeitas a licenciamento adequado da sua actividade) será suficiente para assegurar simultaneamente a densidade de rede de transporte aceitável do ponto de vista social e a viabilidade financeira da empresa de transportes. Se uma empresa pública é financeiramente inviável nessas condições, deverá procurar-se perceber se há de alguma forma privilégios excepcionais aos trabalhadores dessas empresas que lhes permitem arrecadar excedentes económicos face aos restantes trabalhadores do sector.
Assim, um passo a dar é a definição do que são obrigações de serviço público.
Para esta definição é essencial conhecer quais as linhas e carreiras que são rentáveis e as que não. Mas importa que esta análise de rentabilidade seja feita com cuidado. As empresas de transportes têm como uma das suas características o terem um elevado custo fixo (o material circulante) e um custo marginal (por viagem efectuada) relativamente pequeno. Se o custo fixo for mesmo fixo e até “afundado” (por exemplo, se não tiver mercado secundário onde o equipamento possa ser vendido), uma avaliação de rentabilidade baseada no custo médio poderá ser facilmente enganadora. Se uma linha ou carreira não é rentável apenas porque lhe é imputada uma parte do custo fixo existente, então se essa linha ou carreira for encerrada, o custo fixo que lhe estava atribuído será distribuído a outra linha ou carreira. Que poderá então deixar de ser rentável, e por aí fora. A análise deverá ser cuidadosamente feita em termos de contribuição para a margem e não apenas em termos médios, após imputação de custos fixos.
Uma metodologia adequada e correctamente aplicada é crucial para definir que linhas deverão ser consideradas como não requerendo “obrigações de serviço público”.
Se no caso, extremo, de a operação ser rentável em condições normais de funcionamento privado, a discussão deverá ser então de privatização ou não. Mas se não for rentável, deverá existir um julgamento social sobre a importância ou não de manter linhas e carreiras abertas. Admitindo que alguns casos têm uma importância social suficiente para se aceitar que tenham uma contribuição para a margem operacional negativa, terá que se estabelecer um valor a ser pago por essa “obrigação de serviço público.”
A decisão seguinte será se o pagamento desse valor ocorre por via de transferências compensatórias por parte de alguma entidade ou por via de subsidiação cruzada (aceitando preços mais elevados em toda a rede de transporte para cobrir esse custo). No segundo caso, será mais fácil defender que se mantenha uma empresa pública de transportes do que no primeiro caso. Em qualquer situação, a definição de “obrigações de serviço público” deverá ser origem exterior à empresa, por exemplo, a autarquia.
Admitindo que se chega à conclusão de que se pretenda manter uma empresa pública de transportes para prossecução de objectivos sociais não rentáveis, então a transição da actual configuração de empresas para a nova deverá ser pensada.
Uma alternativa a uma fusão, ou corte e costura, de empresas seria o encerramento de todas, assumindo o Estado no que lhe couber as dívidas das empresas, e abrindo nova(s) empresa(s) com o perímetro de actuação desejado e livre de um passado de responsabilidades financeiras (que nem sempre terá sido escolha das empresas). Há que pelo menos saber se esta solução é melhor ou pior que a fusão de empresas com diferentes culturas e hábitos.
Cada um dos aspectos acima poderá, e deverá, ser adequadamente elaborado. Só enunciar estes princípios de actuação para uma decisão económica adequada ilustra bem que a discussão não se pode centrar em saber se as linhas ou carreiras são rentáveis ou não. Se se decidir que essa é a única discussão relevante, o resultado final só pode ser um, a privatização.
Com as informações fornecidas na semana passada sobre a intervenção na área de transportes da Grande Lisboa está lançado o início do debate. Façamos com que seja direccionado para uma correcta decisão económica.
7 \07\+00:00 Novembro \07\+00:00 2011 às 13:51
Que os trabalhadores das empresas de transportes ganhavam mais até agora, ganhavam e isso é parte do problema a corrigir. Mas julgo que a análise a fazer não deverá ser apenas extensiva (i.e., quantos nódulos deve a rede de transportes ter) mas também intensiva (i.e., assegurar que o material circulante não circula a transportar ar em vez de transportar pessoas). Aqui, talvez fosse de pensar que algum do material circulante pudesse transportar mercadorias e não apenas pessoas. Será esta ideia tão far out como parece? Quanto à inevitabilidade e superioridade da privatização convém não esquecer que a exploração privada sofrerá de problemas de skimming (desnatamento?) que são comuns a outros sectores como a saúde e a educação, em que apenas as rotas mais rentáveis são servidas. A meu ver, a obrigação de serviço público deve ser vista à luz dos objectivos de desenvolvimento social e económico que o executivo pretende para as regiões servidas pelos transportes. Dou como exemplo o serviço da Carris junto ao ISCSP no Alto da Ajuda: tudo indica que deixará de ter um serviço de transportes depois das 20h00, quando o ISCSP tem inúmeros alunos em pós-laboral que, assim sendo, terão de sair antes das oito da noite, quando as suas aulas terminam às 22h30.
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7 \07\+00:00 Novembro \07\+00:00 2011 às 14:23
Olá Pedro,
Precisamente se houver problemas de cream-skimming é porque então temos objectivos para as outras que caiem dentro da ideia de obrigação de serviço público. Convém então ser claro quais são essas obrigações e quanto se está disposto a pagar por elas.
Há mais exemplos na zona de Lisboa como o que apontas, e não apenas com alunos. Bairros onde a maior parte das pessoas que usa o transporte público é trabalhador com rendimento baixo e que na ausência desse transporte fica sem forma de chegar a casa (num tempo razoável e sem gastar dinheiro em táxis).
Os ajustamentos na margem intensiva dou de barato que têm de ser realizados, embora curiosamente no contexto actual de austeridade seria um bom momento para criar hábitos de circulação diferentes na população, com maior utilização dos transportes públicos e menos do transporte individual. Aliás, seria interessante conhecer como tem evoluído as receitas da EMEL e dos parques cobertos de Lisboa.
Abraço
Pedro
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