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Sustentabilidade financeira dos sistemas de saúde (4)

Retomando o documento da OCDE sobre sustentabilidade de sistemas de saúde, a secção 2 do primeiro capítulo discute o aspecto crucial de qual a definição de sustentabilidade orçamental dos sistemas de saúde.

O ponto de partida é a definição geral de sustentabilidade orçamental, que a OCDE toma como sendo a capacidade de um governo manter as financias públicas numa posição credível e com capacidade de pagamento no longo prazo. Ou seja, é uma definição baseada na lógica de criação de dívida excessiva para as gerações futuras. Não há assim um número mágico de défice público a ser alcançado ou um limite absoluto de dívida pública a não ser ultrapassado, o que gera natural ambiguidade na interpretação (e em particular, dado que se baseia numa lógica de futuro de longo prazo, abre espaço para diferentes previsões sobre crescimentos futuros de receitas e despesas levarem a diferentes posições sobre a sustentabilidade das contas públicas, aspecto que tem sido claro na discussão política geral).

Além da definição da OCDE, o documento refere também as definições de sustentabilidade da Comissão Europeia (de 2014) e a definição do Fundo Monetário Internacional (de 2007).

A definição de sustentabilidade orçamental pela Comissão Europeia é (numa tradução livre) “a capacidade de continuar, agora e no futuro, as politicas actuais (sem alterações nos serviços públicos e na tributação) sem levar a que a dívida pública cresça de forma continua em relação ao PIB”.

A definição do Fundo Monetário Internacional é “um conjunto de políticas é sustentável se a entidade (governo) é esperada continuar a pagar o seu serviço da dívida sem uma correcção futura irrealisticamente forte para equilibrar receitas e despesas”.

Note-se que nenhuma destas definições é especifica às despesas em saúde e à sustentabilidade orçamental dos sistemas de saúde que recebem dinheiro das contas públicas.

Relativamente ao sector da saúde, surge de seguida uma afirmação importante pelas implicações de perspectiva que tem (e que corresponde ao que tenho argumentado várias vezes): “relativamente ao sector da saúde, a sustentabilidade orçamental é provavelmente melhor vista como sendo uma restrição que precisa de ser respeitada do que um objectivo em si mesmo.” Ou seja, há objectivos do sistema de saúde que nos esforços para serem atingidos deverão ter em conta as restrições das contas públicas em lugar de tornar o corte de custos o objectivo em si mesmo.

Voltando às definições de sustentabilidade orçamental, e olhando para o modelo de organização utilizado em Portugal, o Serviço Nacional de Saúde, a sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde não pode ser desligada da sustentabilidade orçamental como um todo das contas públicas, e é nesse espaço global das contas públicas que deve ser colocada.

Esta visão que decorre das definições de sustentabilidade orçamental estava já presente na definição que em 2006 se adoptou em Portugal pela Comissão para a Sustentabilidade Financeira do Serviço Nacional de Saúde: “Existe sustentabilidade do financiamento do Serviço Nacional de Saúde se o crescimento das transferências do Orçamento do Estado para o SNS não agravar o saldo das Administrações Públicas de uma forma permanente, face ao valor de referência, mantendo-se a evolução previsível das restantes componentes do saldo.”

Esta é uma definição complicada na escrita mas que corresponde em grande medida à preocupação de considerar a despesa em saúde num contexto global de despesas públicas, permitindo que estas despesas públicas em saúde cresçam desde que o crescimento das restantes despesas públicas tenha uma evolução que compense (crescendo menos ou até diminuindo em termos relativos). Focar do défice gerado (“saldo das Administrações Públicas”) e no longo prazo (“de uma forma permanente”) traduzem de outra forma o efeito sobre a dívida pública.

Estas definições de sustentabilidade orçamental implicam um problema: o que sucede quando são as restantes componentes da despesa pública que geram uma situação de insustentabilidade das contas públicas.

O documento da OCDE reconhece estas implicações da interdependência entre diferentes tipos de despesa pública quando refere que a “sustentabilidade orçamental não exclui automaticamente aumentos da despesa pública em saúde (…) numa perspectiva de crescimento pode ser preferível que a saúde substitua formas menos eficientes de despesa pública”. Claro que é preciso demonstrar que a despesa pública em saúde é mais eficiente que outro tipo de despesa, e não se pode acriticamente aceitar que toda a despesa pública em saúde tem efeitos positivos em termos de crescimento ou de melhoria da saúde da população, mas o aspecto principal é reforçar a ideia de que a sustentabilidade orçamental não implica um objectivo de despesa pública em saúde definido como rácio do PIB ou como estabilidade desse rácio actual.

E na medida em que a despesa pública em saúde é avaliada no contexto de toda a despesa pública terá inevitavelmente uma componente de escolha política envolvida.

Resumindo, a noção de sustentabilidade orçamental tem que ser vista no total das contas públicas, e a necessidade de assegurar a sustentabilidade orçamental implica restrições sobre a despesa pública em saúde. A maior ou menor pressão dessas restrições decorrem do que são as outras despesas públicas e do que são as opções políticas (entre diferentes tipos de despesa pública).

 

(continua)


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para discussão, no diário económico

Solidariedade e pagamentos na saúde

Em período de aproximação às eleições legislativas, é útil recordar princípios e ideias que ajudem os eleitores a olhar para os programas partidários.

Tomemos a área da saúde e alguma atenção recente que houve para com os pagamentos diretos feitos pelos doentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS). A existência de mecanismos solidários de proteção, como o SNS em Portugal, procura garantir que há acesso aos cuidados de saúde necessários em tempo útil e na medida adequada. Outros países adoptaram soluções diferentes mas Portugal não está de forma alguma isolado nesta escolha.

O elemento central desta proteção é a recolha solidária de contribuições, feita sobretudo por impostos em Portugal (e nos outros países com o modelo de serviço nacional de saúde). Significa esta opção que cidadãos com maior rendimento contribuem proporcionalmente mais e que o pagamento de contribuições desta forma leva também a uma redistribuição de recursos de quem está saudável para quem esteja doente. A natureza do financiamento solidário, contra a incerteza quanto a despesas futuras e inesperadas de saúde, não dá espaço para princípios, populares noutras áreas, como o utilizador-pagador.

Porque existem então pagamentos feitos pelo cidadão/doente quando recorre a serviços públicos de saúde, se é suposto serem pagos pelos impostos de todos? O motivo está na necessidade de evitar desperdício na utilização de serviços que têm de ser pagos, em que desperdício significa não contribuir para a melhorar a saúde. A denominação de taxas moderadoras usada em vários casos procura precisamente transmitir essa noção, de evitar usar serviços quando o benefício resultante é baixo e o custo é suportado por todos.

Deste princípio retira-se então que pagamentos feitos pelos doentes quando utilizam o SNS devem ter apenas lugar quando ajudem a “orientar” a utilização dos serviços de saúde. Quando não há escolha do cidadão, o pagamento que este tenha de fazer quando está doente, para ter acesso a um meio de diagnóstico ou a uma terapêutica, é unicamente uma penalização financeira da sua condição de doente, a acrescer à natural fragilidade que a situação em si já implica.

A natural tendência da discussão pública é para se centrar em aspectos como saber quantos portugueses não têm médico de família e em quantos anos se resolve esse problema. Contudo, convém não deixar de fora do debate os aspectos de arquitetura financeira e de pagamentos.

As taxas moderadoras e os outros pagamentos feitos pelos doentes no momento em que utilizam cuidados de saúde são um instrumento, não um fim ou um princípio em si mesmo. E como instrumento temos que atender ao seu objectivo, influenciar decisões. Se as decisões não são dos doentes, então o seu papel como instrumento é nulo. Por exemplo, quando se paga uma taxa moderadora num serviço de diagnóstico cuja decisão que originou o seu uso foi do médico, não há esse papel de orientação de utilização. Já na ida a uma urgência hospitalar, por iniciativa própria, sem haver primeiro um contacto com o centro de saúde ou com a Linha Saúde24, é natural que seja cobrada uma taxa moderadora (e mais elevada do que se a decisão for ir a uma consulta não programada no centro de saúde). Normalmente, contemplam-se os casos de restrição financeira que impeçam a utilização de serviços quando há necessidade com isenções de pagamento, dando assim a primazia ao aspecto de proteção solidária.

Sendo os valores destes pagamentos em Portugal dos mais elevados no contexto da OCDE, sobretudo com medicamentos (e apesar da forte baixa de preços observada nos últimos anos), o tempo de um novo Governo, qualquer que seja o vencedor das próximas eleições, dará uma oportunidade para se reverem as áreas e os valores que são praticados. Os princípios para essa revisão são, de um lado, a proteção solidária contra despesas de saúde inesperadas, e, por outro lado, o papel instrumental que possam ter nas decisões de utilização. Não será este aspecto que resolverá os problemas e desafios que se colocam ao Serviço Nacional de Saúde. No entanto, um sistema bem pensado destes pagamentos poderá ajudar a cumprir melhor os objectivos do Serviço Nacional de Saúde.