Momentos económicos… e não só

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Inovação como um direito dos Portugueses (2)

O primeiro capítulo apresenta o “diagnóstico do contexto atual”.

Depois da referência à esperança de vida em Portugal como sendo um bom resultado face à despesa, a parte seguinte tem como porta de entrada “os medicamentos inovadores são cruciais para a melhoria contínua dos resultados em saúde”, que tem como referência os vários estudos realizados por Frank Lichtenberg. E é importante perceber o que esses estudos transmitem e quais os ganhos de longevidade que se estão a falar.

E embora seja natural que os medicamentos continuem a ter um papel importante nos sistemas de saúde, há outros desafios tão ou mais importantes, nomeadamente na componente organizacional, que envolvem muito menos dinheiro e podem ter resultados igualmente significativos no aumento da longevidade. E claramente os ganhos de longevidade que hoje se conseguem estão alicerçados numa base importante que permitiu a longevidade chegar ao ponto em que os problemas oncológicos são cada vez mais uma regularidade.

Insistir que a manutenção e aumento da longevidade é sobretudo uma questão de gastar mais ou menos em medicamentos é desviar a atenção do que deve ser uma abordagem mais ampla – por exemplo, se o esforço for no sentido de uma população mais saudável e com maior capacidade de gestão da sua saúde e da sua doença, poderá não ser preciso gastar tanto em medicamentos. É certo que o relatório da BCG menciona esses aspectos dizendo “fatores como a prevenção primária e secundária, assim como o acesso a cuidados multidisciplinares, são também essenciais na melhoria dos cuidados e resultados em saúde”, mas não lhes dá o mesmo destaque em termos de mensagem.

Curiosamente, surgiu recentemente investigação que aponta para que a própria inovação em medicamentos poderá não estar a ter a orientação óptima do ponto de vista social. Directamente da American Economic Review (umas das 3 revistas mais prestigiadas no meio académico de economia):

“Do Firms Underinvest in Long-Term Research? Evidence from Cancer Clinical Trials
Eric Budish, Benjamin N. Roin and Heidi Williams
We investigate whether private research investments are distorted away from long-term projects. Our theoretical model highlights two potential sources of this distortion: short-termism and the fixed patent term. Our empirical context is cancer research, where clinical trials—and hence, project durations—are shorter for late-stage cancer treatments relative to early-stage treatments or cancer prevention. Using newly constructed data, we document several sources of evidence that together show private research investments are distorted away from long-term projects. The value of life-years at stake appears large. We analyze three potential policy responses: surrogate (non-mortality) clinical-trial endpoints, targeted R&D subsidies, and patent design. (JEL D92, G31, I1 1, L65, O31, O34)
Full-Text Access | Supplementary Materials

O relatório BCG apresenta depois uma evolução da despesa com medicamentos, em termos comparados com parte dos países da União Europeia (UE18), e ao longo do tempo. O meu problema com comparações de despesa, em geral e também por isso com estas, está em que menor despesa por ter preços mais baixos tem uma relevância completamente diferente de ter menor despesa por reduzir o consumo. Preços mais baixos permitem obter o mesmo resultado com menor despesa, libertando recursos para outros fins. Facilmente, noutro contexto se teria a discussão de maior eficiência em vez de uma preocupação latente com gastar menos. Ou seja, olhar apenas para a despesa não transmite grande informação. Não vou aqui repetir argumentos de outros posts sobre este tipo de comparações.


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Inovação como um direito dos Portugueses (1)

Maio e Junho foram sido meses férteis na produção de documentos sobre o sistema de saúde e sobre o Serviço Nacional de Saúde. Também a BCG – Boston Consulting Group contribuiu para esta oferta de reflexões com um trabalho que tem como título “Inovação como um direito dos Portugueses” e como subtítulo “Perspetivas sobre o acesso à inovação farmacológica em Portugal e recomendações estratégicas para garantir a sua existência”. Apesar do titulo genérico o que se vai tratar neste documento é (mais uma vez) a questão de “como pagar a inovação com medicamentos”, acrescentando a mais uma série de iniciativas com o mesmo objectivo.

O sumário executivo é muito feliz como trata as principais mensagens [comentários meus]:

  • Portugal tem um dos sistemas de saúde, a nível mundial, com melhor relação entre os resultados e a despesa em saúde
  • Os medicamentos inovadores são cruciais para a melhoria contínua dos resultados em saúde
  • A crise financeira e económica motivou um ajustamento sem precedentes na despesa em saúde especialmente a relacionada com medicamentos.
  • A redução da despesa em saúde foi acompanhada por uma redução e atraso no acesso a medicamentos novos e inovadores
  • o acesso à inovação oncológica está a ser especialmente afetado pelo atrasos na comparticipação e pelo subfinanciamento da área terapêutica dado o seu impacto [suponho que orçamental]
  • Os resultados de saúde em oncologia podem estar a começar a distanciar-se da Europa [é um risco e um receio, mas depende muito da contribuição real que os novos medicamentos trazem]
  • 7 linhas de atuação para garantir um maior acesso à inovação e à melhoria dos resultados em saúde:
    • aumentar a dedicação total de recursos à saúde e à inovação farmacológica, permitindo o acesso dos doentes à melhor terapêutica disponível;
    • cumprir prazos previstos para aprovação e reembolso de medicamentos e definir prazos para a efetiva disponibilização ao público para melhorar o acesso efetivo às terapias inovadoras
    • uniformizar práticas clínicas e de acesso, através da vinculação e reforço do formulário nacional e as normas de orientação clínica e respetiva revisão contínua à luz da evolução tecnológica, de forma a garantir a equidade de acesso regional e cumprimento das melhores práticas clínicas
    • adotar sistemas que promovam a eficiência de preços, estabelecendo relações de maior compromisso e diálogo com a indústria farmacêutica para garantir a transição do atual modelo de preço fixo para um modelo de maior partilha do risco (isto é, baseado em ganhos mensuráveis de saúde)
    • alterar o modelo de financiamento dos hospitais públicos, incentivando a melhoria dos resultados em saúde através de modelos de capitação orientados para resultados e orçamentos plurianuais da área terapêutica
    • criar rede de centros de referência e respetivos centros afiliados em áreas terapêuticas especificas, estimulando a especialização e a qualidade dos resultados, assim como uma gestão integrada dos sistemas de saúde
    • medir e divulgar os resultados em saúde para acelerar a sua melhoria contínua.

Deste resumo do sumário executivo, vale a pena assinalar que tem várias ideias boas, algumas omissões e um par de aspetos que parecendo consensuais devem obrigar a maior reflexão.

O primeiro grande comentário é no entanto que nos situamos apenas no campo do medicamento, e com particular destaque para a oncologia e o mercado hospitalar. Não se diz muito sobre uma visão para o sistema de saúde e sua evolução. E o campo do medicamento não pode ser isolado do restante sistema de saúde. Os próximos posts farão uma análise mais detalhada dos argumentos que sustentam estas conclusões.


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OCDE: relatório sobre a qualidade no sistema de saúde português (12)

O capítulo 4 tem como tema “qualidade e eficiência” e toma uma abordagem mais macro. O aspecto central focado na abertura do capítulo é a manutenção de um compromisso com a qualidade mesmo em tempos de austeridade. Outro ponto forte deste período em Portugal identificado pela OCDE é um “progresso real numa maior integração dos cuidados prestados”, associado com a rede de cuidados continuados.

Em termos de resposta, o destaque vai para a redução da despesa com medicamentos e para o aumento da despesa em prevenção.

Na análise das grandes rubricas de despesa em saúde, é dito que Portugal gasta um “valor relativamente modesto” (em 2011) em comparação internacional com internamentos hospitalares, o que de alguma forma parece mitigar a preocupação com o excessivo hospitalocentrismo do sistema de saúde, e que foi focado nos capítulos anteriores.

Há nesta discussão um elemento que me parece falha da OCDE, uma vez que refere um aumento dos tempos para intervenção cirúrgica, com referência a um texto de 2013, mas na verdade desde a constituição do SIGIC que a tendência tem sido de redução dos tempos de espera, com um ou outro “soluço” pontual.

A análise de despesa por grandes rubricas tem sempre o risco de alguma visão de “silo”, e o texto da OCDE não escapa a esse risco, pois não olha para efeitos cruzados, que podem surgir de várias direcções. Por exemplo, ao ter-se menos internamentos, ou menor demora média nos internamentos que ocorrem, é possível que haja despesa em medicamentos que dantes era feita em ambiente hospitalar e que agora passar para ambulatório. Logo, tem-se aumento da despesa com medicamentos. Também se pode ter efeitos na direcção contrário, doentes que fazem terapêutica com medicamentos podem evitar agudização da sua condição clínica e com isso evitar internamentos e despesa hospitalar futura. Havendo este tipo de substituibilidades, o conhecimento do ponto da “função de produção” em que está é essencial para evitar “mentalidades de silo”, que se podem traduzir em implicações erradas.

Um dado particularmente interessante, embora não seja claro como foram obtidos os valores, é a repartição do esforço de poupança dos últimos anos: 35% das poupanças entre 2010 e 2014 surgiram na despesa com medicamentos, 33% nos contratos com os hospitais EPE (suponho que grande parte desta poupança esteja associada com as medidas de redução salarial que também afectaram os profissionais de saúde nos EPE, e por isso passível de reversão no curto prazo), salários e recursos humanos (17%) (suponho que excluem os hospitais EPE porque a respectiva verba estará nos contratos) e meios de diagnóstico (9%) (que suponho integrem os contratos com os prestadores privados que prestam serviços ao Serviço Nacional de Saúde).

Sobre as pressões para despesa, há sempre a necessidade de reafirmar um aspecto que continua a ser mal usado em muitas intervenções “contrary to what is often stated, pure demographics and income are projected to play only a minor role in the increase of public health and long-term care expenditures”.

Em termos de actuações para controlar a despesa em saúde, é dado algum destaque aos instrumentos que aumentem a capacidade do Serviço Nacional de Saúde em obter preços mais baixos nos produtos que adquire e na forma como é gerida a procura desses produtos a partir das decisões clínicas. A utilização das tecnologias de informação é aqui ponto central para criar processos de decisão e escolha melhores.

No restante, retomam nas suas implicações para a despesa vários dos aspectos focados anteriormente. É curioso que apresentam neste capítulo algumas preocupações que deveriam estar também presentes nas análises de capítulos anteriores. Um exemplo é relativa às experiências de pagamento por desempenho: “although internacional evidence on pay-for-performance in primary care is perhaps somewhat equivocal to date it makes sense to pay for quality and outcomes, rather than activity”. Ou seja, a evidência não é conclusiva, por isso vamos por aquilo que para nós faz sentido ! mas se não aparece nos dados convém perceber porquê, pois pode estar a ter lugar uma força de sentido contrário que não foi devidamente identificada. Pelo menos uma monitorização apertada, contínua em tempo real tanto quanto possível, será necessária para acompanhar experiências desta natureza.

Apresentam também sugestões para um diferente papel das Administrações Regionais de Saúde, colocando-as mais perto dos cidadãos, e menos como duplicadoras de funções de planeamento e gestão da oferta de serviços. A utilização do exemplo italiano não é totalmente clara para mim. Pareceu-me que a OCDE está a propor que em Portugal se faça de forma descentralizada algo que em Itália está centralizado num país que é maior que Portugal e que é apresentado como boa prática de relevância internacional.


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OCDE: relatório sobre a qualidade no sistema de saúde português (11)

O capítulo 3 é dedicado à qualidade dos cuidados de saúde nos hospitais.

Também nos hospitais são destacados os bons resultados, mas…

De qualquer modo, a conclusão sobre o período de austeridade é elogioso para a capacidade do Governo em equilibrar as diferentes exigências que se colocavam, uma vez que os indicadores de desempenho não mostram um colapso do Serviço Nacional de Saúde.

Na parte dos serviços hospitalares, há o reconhecimento da oferta privada e da oferta pública de serviços. No caso do Serviço Nacional de Saúde, há uma referência ao modelo de pagamento, embora seja de adicionar que os reforços orçamentais para regularização de dívidas tendem a minar o que é o sistema de incentivos introduzido por pagamentos prospectivos. De notar que nem todo o pagamento prospectivo no SNS é relacionado com a actividade – o sistema de capitação utilizado nas Unidades Locais de Saúde é exemplo disso.

Um dos destaques deste capítulo é a redução do número de camas e de hospitais ao longo do tempo. Não é claro aqui qual o papel que é atribuído à criação de centros hospitalares, que reduzem formalmente o número de entidades mas sem fecho das instalações geograficamente dispersas. Por outro lado, o número de camas cada vez define menos o que um hospital pode e deve fazer. É altura de investir na definição e cálculo de um indicador de capacidade de intervenção do hospital mais adequado. Não se pode querer ao mesmo tempo dizer que o número de camas é o melhor indicador da dimensão do hospital e querer um aumento das actividades de ambulatório reduzindo os internamentos.

Outro destaque, que também teve lugar no sumário, é a elevada demora média dos episódios de internamento. Aqui, repetindo o que referi a propósito do sumário, não vejo que o argumento seja completo: se tivermos um sistema de saúde que leva a poucos internamentos hospitalares e apenas dos casos mais complicados, é natural menor actividade hospitalar com tempos de internamento mais longos. Se os cuidados de saúde primários conseguirem tratar de casos que não chegam aos hospitais, estes terão menos actividade mas a que lá chega vai exigir em média tempos de internamento mais prolongados.

No campo da prestação de cuidados e qualidade, é apontada a diferença entre os hospitais PPP e os outros hospitais do Serviço Nacional de Saúde, ressaltando a existência de indicadores de desempenho e qualidade diferentes para os dois grupos, e penalização em caso de incumprimento no caso dos hospitais em PPP. Aqui é preciso ainda adicionar que os contratos estabelecidos em PPP também dão incentivos mais fortes à procura de eficiência, incluindo a credibilidade de não dar mais dinheiro em caso de maus resultados financeiros (e que nos hospitais do SNS que não estão em PPP se traduz em atrasos de pagamento, nomeadamente à indústria farmacêutica, e mais tarde regularização de dívidas).

Importante também a evolução dos sistemas de pagamento aos hospitais, embora seja difícil estabelecer qual é a combinação óptima de pagamento por actividade e pagamento por doente, ou por capitação de população coberta.

Quanto à reforma hospitalar, há sobretudo uma ressonância das posições oficiais do Ministério da Saúde, não tendo ocorrido verdadeiramente uma análise dos efeitos produzidos ou do que é ou deve ser uma reforma hospitalar. Talvez porque a própria OCDE não tem grande pensamento sobre isso nem indicadores definidos, passa com alguma rapidez pelo tema.

Sobre processos de qualidade, há um enfoque nos processos de acreditação, embora não seja claro o que a OCDE acha que mudou de facto na gestão dos hospitais e na qualidade dos cuidados que presta pela existência dos processos de acreditação.

Nas questões de segurança do doente apresenta um quadro de comparação, com Portugal em 2011 e 2014, face aos Estados Unidos, Espanha e Reino Unido. Portugal não é um caso atípico, mas piorou na maioria das dimensões analisadas. A fonte é “Information provided by Portuguese authorities”, o que não permite ir fazer uma apreciação da forma como são obtidos os scores, como são definidas as dimensões, e qual é, ou deve ser, o ponto de comparação. Nestes aspectos de segurança do doente, uma conclusão é que não se sabe com exactidão os resultados que várias iniciativas tiveram, mas vai-se continuar. Seria relevante saber quais as iniciativas que foram mais eficazes.

Sobre indicadores de desempenho hospitalar, fala-se no que é disponibilizado no site da ACSS, que tem tido soluços vários na sua actualização, e na duplicação de esforços na medição dos aspectos de qualidade (ACSS, DGS e SINAS/ERS). Embora haja essa duplicação, não a vejo necessariamente como um aspecto negativo, pelo menos até que haja uma rotina de produção e análise dessa informação. No presente momento, esses esforços até serão mais complementares do que meras duplicações.

Como preocupações expressas encontram-se as “ineficiências em alguns processos clínicos”, o que significa que há um papel importante a ter no funcionamento interno dos hospitais.

Uma afirmação interessante é “apesar dos esforços para reduzir a dependência dos hospitais através da redução da oferta de serviços hospitalares, os progressos têm sido lentos na passagem de cuidados não agudos do ambiente hospitalar para outros níveis menos consumidores de recursos” (tradução livre minha). Ora, se é uma questão das preferências dos cidadãos em procurarem o hospital, então o problema central é encontrar alternativas que as pessoas prefiram à utilização do hospital.

No campo das sugestões, encontra-se: aumentar a ligação entre as receitas do hospital e a qualidade dos cuidados que presta; ter um novo modelo para as urgências hospitalares; avaliar o impacto das reformas em curso no sector hospitalar; expansão de outros tipos de cuidados reduzindo a actividade hospitalar; estabelecer mecanismos para criar dinâmica de melhoria contínua; papel das auditorias e necessidade de dar informação de retorno às instituições. Mas o relatório indica pouco sobre o que fazer com hospitais de baixo desempenho (fechar? Retirar valências? Transformar em quê e como?).

Há uma secção dedicada à revisão do sistema de incentivos ligados ao desempenho hospitalar, dando a motivação para essa preocupação. Ou seja, pensar em sistemas de incentivos que tenham maior efeito. Mas é necessário que esses sistemas tenham credibilidade. Como controlar o risco moral de gestão menos boa resultar em mais orçamento (porque precisam para não prejudicar a população)? Primeiro é preciso conhecer um pouco mais do que é esta realidade dos pagamentos de acordo com o desempenho. Vale a olhar e documentar melhor a experiência do SIGIC (que reduziu de forma relevante os tempos de espera para cirurgia) e as experiências internacionais que vão sendo feitas.

Nas que são mencionadas no relatório da OCDE não é dito, para qualquer dessas experiências, qual a percentagem do orçamento ou das receitas do hospital que é obtida com estes mecanismos.


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OCDE: relatório sobre a qualidade no sistema de saúde português (10)

O capítulo 2 do relatório é dedicado aos cuidados de saúde primários. Onde logo na introdução é reconhecida a liderança em termos internacionais – bons resultados, baseados num sistema abrangente de indicadores. O desafio é agora alargar o campo de intervenção dos cuidados de saúde primários. Há uma excelente descrição do que foi a evolução dos cuidados de saúde primários em Portugal desde a criação das USF – unidades de saúde familiar – terminando com a recomendação da sua expansão a todo o país, de forma administrativa se necessário, por contraponto à natureza voluntária, por proposta dos profissionais de saúde, que foi adoptada. Aqui, há um aspecto relevante que o relatório não aborda: em que medida a natureza voluntária da transição para o modelo USF foi determinante para o seu sucesso. Se foi, e a minha conjectura é essa, então a obrigação administrativa de mudança poderá produzir menores resultados do que se antecipa.

É igualmente feita referência ao modelo C das USF, modelo híbrido de gestão pública e gestão privada. Para este modelo, será necessário estabelecer de forma muito clara quais os mecanismos de regressar ao modelo anterior sem interromper serviços. É um aspecto a merecer muita e detalhada atenção. O risco de estabelecer modelos em que os benefícios são privados e os custos são públicos é sempre grande, sobretudo quando depois se invoca o interesse das populações para partilhar os custos de más decisões privadas. Não é um problema insolúvel, mas claramente tem que ser tratado antes e não quando surgir.

Ainda neste capítulo dedicado aos cuidados de saúde primários é focado o problema da distribuição dos recursos humanos. Como seria de esperar, o ponto central é o desafio dos “desertos médicos”, em zonas pouco populosas, geograficamente de acesso difícil, com uma população envelhecida. São mencionadas iniciativas de chegar a essa população, embora não haja uma discussão detalhada de qual a melhor forma de contacto (ou que formas podem ser ensaiadas e de que dependem). Por exemplo, há provavelmente um papel para a linha Saúde24, que está frequentemente ausente destas discussões.

A parte final do capítulo trata dos desafios aos cuidados de saúde primários, em particular a pressão que decorre do envelhecimento da população, que necessitará de um acompanhamento diferente, para controlar os riscos para a saúde. Apesar dos ganhos em termos de longevidade, há ainda muito a fazer em termos da qualidade de vida. Na discussão feita pela OCDE, falhou apenas a referência ao cidadão como parceiro decisor dentro do sistema de saúde. A pouca participação do cidadão foi referida no relatório a propósito de queixas, mas não ainda numa visão mais alargada. A prevenção que é advogada depende quer dos serviços de saúde quer das pessoas, e se estas forem parte do processo de decisão, não só se terá melhores resultados como se identificará melhor o que realmente é necessário fazer. Aliás, no campo da prevenção conhecem-se informações sobre o processo, mas muito pouco sobre os resultados (ter sucesso em prevenção é evitar, que depois não se observa, logo não se sabe se foi por prevenção ou devido a qualquer outro elemento).

Igualmente com espaço neste capítulo está a utilização das urgências, onde a proposta de resposta fornecida pela OCDE é a aumentar a resposta dos cuidados de saúde primários nos locais onde as pessoas estão habituadas a ir. Dão como exemplo a colocação, no Reino Unido, de médicos de clinica geral em serviços de urgência, e da importância de ter serviços com a capacidade de resolver os problemas imediatos e inesperados num único local. Infelizmente não dão mais sugestões, e é possível pensar em instrumentos de outro tipo. Por exemplo, pensar no mecanismo de pagamento que dê vantagem aos cuidados de saúde primários de evitar um recurso sistemático dos cidadãos à urgência hospitalar para situações que podem ser tratadas nos cuidados de saúde primários.

Em termos de recomendações que são feitas neste capítulo, a transformação em USF dos centros de saúde tradicionais, por imposição administrativa, é, aparentemente, a recomendação mais forte. A forma de o fazer deverá passar por anúncio de uma data futura dessa transformação e até lá fazer um acompanhamento com utilização do mesmo conjunto de indicadores para todas as entidades prestadoras de cuidados de saúde primários dentro do Serviço Nacional de Saúde. Aliás, essa utilização de um conjunto comum de indicadores deverá ser um passo a adoptar desde já, qualquer que seja o caminho seguinte de desenvolvimento.

No final, constato que não há uma referência a cuidadores informais ou a práticas de auto-gestão de condições crónicas do cidadão. Será a falha mais importante neste capítulo, sendo que tudo o resto está bastante interessante e útil.