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Guião da reforma do Estado (4)

3 comentários

Na secção 1.4 é discutida a carga fiscal em relação à despesa pública. A principal ideia retomada é a de descida do IRC para promover investimento e emprego.

Há aqui três aspectos centrais que têm de ser muito mais claros.

Primeiro, o papel da descida do IRC – sem mais informação sobre como é que se estimam os efeitos anunciados, pode mesmo ser contrária aos objectivos anunciados, de um ponto de vista de eficiência de funcionamento da economia e não apenas de redistribuição dentro da sociedade. Voltarei provavelmente a este tema mais tarde, e já o foquei num post anterior (aqui): “sobre a alteração do IRC será extremamente útil e de esclarecimento para todos que o Governo publique um conjunto de quadros simples indicando, por classe de dimensão de volume de negócios, quais os benefícios retirados, e por sector de actividade. É que se em abstracto a ideia considerada boa é a de dar recursos para investimento às empresas, deve-se saber quais as empresas que mais beneficiam potencialmente, por classe de dimensão da empresa e por sector de actividade. Gostaria de confirmar que beneficiam mais as pequenas e médias empresas em sectores que produzem bens transaccionáveis, as mais sensíveis a não terem acesso a fundos para o seu desenvolvimento, do que as grandes empresas em sectores de bens não transaccionáveis e protegidos.”

Segundo aspecto, há uma discussão sobre carga fiscal e valores médios de tributação enquanto para avaliar os efeitos de distorção sobre a economia interessa sobretudo os valores marginais de imposto. A análise deverá ter uma componente relativa aos efeitos de eficiência, e não apenas referente aos efeitos de distribuição.  Um exemplo muito simples, com tributação sobre salários: suponha-se um vencimento mensal de 1000 euros. Comparem-se duas estruturas de tributação: uma tem uma taxa única de 24%, qualquer que seja o nível de rendimento. Origina uma receita fiscal de 240€. Uma outra estrutura fiscal, tem uma taxa de 0% na parte do salário até 600 euros, e uma taxa de 80% na parte do salário acima de 600 euros. A receita fiscal obtida é de 240€. Ou seja, ambas as opções dão a mesma receita média, logo a mesma carga fiscal média mas vão gerar distorções distintas. Suponhamos que a esta pessoa é proposto um aumento de trabalho remunerado a 100€ mais por mês – no primeiro caso, receberá líquidos 76€ pelo trabalho adicional, no segundo caso receberá 20€ – o interesse em aceitar esse trabalho adicional é muito menor no segundo caso.

Terceiro aspecto, é dito que é pertinente reduzir a carga fiscal para acentuar o crescimento económico, mas não é dito qual o mecanismo económico pelo qual se espera que esse efeito apareça, e sem o conhecer não é possível dizer se apenas baixar carga fiscal terá algum efeito – o que nos remete de algum modo para o segundo aspecto apresentado anteriormente, que taxas provocam que distorções? Sem esse conhecimento, é fácil ter resultados inesperados. Retomando o exemplo acima, aumentar a zona de isenção (de 600 para 750 euros, digamos) e aumentar a taxa de imposto na zona não isenta para manter a receita fiscal constante, levaria a taxa marginal para perto dos 100% (96% mais exactamente), pelo que não seria feito qualquer esforço individual para fazer crescer o produto em 100€ de remuneração dado que apenas 4€ ficariam para o agente que desenvolveu esse esforço adicional.

 

Autor: Pedro Pita Barros, professor na Nova SBE

Professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa.

3 thoughts on “Guião da reforma do Estado (4)

  1. A maioria das pessoas, na qual me incluo, não tem os conhecimentos necessários para analisar a política fiscal de um governo, limitando-se por isso à análise da parte dessa política que directamente as afecta. Todavia, é óbvio que há áreas da atividade económica que se encontram em zonas de penumbra sobre as quais a fiscalidade é benigna enquanto outras estão sujeitas a um autêntico confisco.
    Por isso, parece-me que quaisquer que sejam as medidas avulsas que o governo tome nesta matéria beneficiarão somente aqueles que directamente são abrangidas por essas medidas e terão impacto muito reduzido no comportamento global da economia. Ou seja, a redução da taxa do IRC só aumentará os lucros das empresas e não terá efeitos no emprego, assim como a redução do IVA na restauração não iria reflectir-se na redução dos preços praticados.

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  2. Recebido via facebook:
    “Porque é que uma medida que levanta tantas dúvidas como a descida do IRC é aceite pacificamente e não é discutida na comunicação social? Por exemplo, alguém é capaz de me dizer qual é o impacto nas receitas fiscais da descida de 2 pp. na taxa?”

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  3. A repercussão das medidas fiscais nas decisões dos agentes económicos é algo que devia ser mais conhecido, e apresentado no momento de adopção de alterações.

    Sobre porque é que a descida de IRC não é discutida, não sei a resposta, mas uma hipótese a explorar é a capacidade dos beneficiários dessas medidas circularem de forma convincente as vantagens, mesmo que não demonstrem as relações causais que invocam – quanto do lucro acrescido por menor tributação é realmente investido em termos produtivos, e com que retorno? e sobretudo, se não houvesse essa redução da tributação que investimento seria realizado? Uma medida destas não deveria ser adoptada sem se saber quantitativamente quem beneficia, em primeiro lugar, e em segundo lugar qual o efeito causal sobre o investimento e o emprego que se pode esperar. De outro modo, poderá ser apenas redistribuir a forma de financiamento do Estado via impostos.

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