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sobre as ideias para a saúde no programa do XXV governo constitucional

A publicação do programa do  XXV Governo Constitucional vem trazer, como é usual, as linhas de pensamento de atuação do Ministério da Saúde para os próximos tempos. Também como é usual, o texto tem uma parte de auto-propaganda (seja para elogiar quando é um governo de continuidade partidária, seja para criticar quando há referência a governos de outros partidos). Não há ganho em comentar essa parte, pelo que é melhor concentrar a atenção em apenas aspectos de conteúdo programático. Aliás, o programa de governo apresenta metas que não são verdadeiramente metas em muitos casos, e onde seria útil ter uma calendarização (nem que fosse o mês e o ano em que espera serem alcançadas).

Como é reconhecido, continua-se num contexto global de mudança organizacional incompleta no Serviço Nacional de Saúde (SNS) – há falta de um fio condutor assumido e conhecido de forma que possa servir de orientação, independentemente de quem estiver à frente do Ministério da Saúde. A organização em Unidades Locais de Saúde, a criação da Direção-Executiva do SNS, a extinção das Administrações Regionais de Saúde, em sucessivas legislaturas que foram interrompidas, geraram uma “salada organizativa” na gestão de topo do SNS que é necessário clarificar, e que será um dos trabalhos do atual Ministério da Saúde, seja por decisão clara, seja por omissão, em que se verá na prática como as diferentes instituições se “articulam” (termos que permite ambiguidades quanto à responsabilidade de decisão e atuação).

As ideias, metas, medidas, ambições ganham em ser agrupadas por temas, pois várias delas estão claramente interligadas, e um tratamento conjunto é provavelmente mais útil.

Contexto macro:

A nível da governação global do sector da saúde, há a intenção de proceder à revisão da Lei de Bases da Saúde, e de criar uma Lei de Meios para o SNS. Não é claro o que constará em cada uma destas iniciativas, e se o tempo que demorará a negociar na Assembleia da República justificará as alterações que se conseguirá introduzir. No caso da Lei de Bases da Saúde, deverá ser identificado o que não se consegue fazer com a atual versão. O meu ceticismo sobre a utilidade da revisão decorre das décadas que a anterior lei de bases esteve em vigor, conseguindo enquadrar diferentes visões dos sucessivos governos, e de ter demorado vários anos a aprovar uma nova lei, sem que depois se visse em que contribuiu para uma melhor capacidade do sistema de saúde satisfazer as necessidades da população portuguesa.

A Lei de Meios para o SNS é uma ideia que no passado tinha sido apresentada (ver aqui), e que pretende dar previsibilidade ao orçamento do Serviço Nacional de Saúde. A sua utilidade prática irá depender da capacidade do SNS deixar de ter o problema dos pagamentos em atraso que tem sido recorrente, resultando em atribuição regular de verbas extraordinárias no final do ano. Sem resolver esse problema, não há forma de uma lei de meios do SNS conseguir ter um papel útil. A lei de meios se não previr mecanismos pelos quais se resolva situações de despesa acima do previsto não terá efeitos práticos. Na altura em que a proposta surgiu, a noção de o problema principal ser suborçamentação (atribuição de verbas que se sabia serem insuficientes para o movimento assistencial do SNS previsível para o ano) justificava pensar-se que uma lei de meios conseguiria resolver esse problema. Contudo, com os sucessivos reforços dos orçamentos iniciais do SNS nos últimos anos, e mesmo a eliminação dos pagamentos em atraso no final do ano (o que sucedeu por duas vezes nos últimos dez anos), não conseguiram evitar que a despesa continuasse a aumentar e a gerar pagamentos em atraso (sendo a atividade hospitalar o principal motor desse aumento). Assim, a lei de meios poderá ser um instrumento útil se conjugada com outros instrumentos (ou contendo ela própria os instrumentos) para fechar o ciclo de pagamentos em atraso – verbas extraordinárias. De outro modo, só irá adicionar mais um elemento à “salada organizacional” do SNS. 

Ainda neste contexto macro coloca-se o Plano de Emergência e Transformação da Saúde. Ao final de um ano, e atendendo ao que foi o primeiro relatório de avaliação de progresso, faz sentido uma sua revisão, sem drama (não verifiquei se já existe um segundo relatório publicamente disponível).

No campo da saúde oral (acesso a dentistas, de uma forma simples), é referido um “novo programa nacional de saúde oral”, que nas medidas é desenvolvido como o alargamento do cheque dentista, e com alargamento para próteses a beneficiários do complemento solidário para idosos. Aqui, com ou sem digitalização, é claramente ficar aquém do que é desejável e do que é possível. É desanimador ver apenas uma filosofia de “cheques”, em lugar de construção de uma rede de saúde oral. É hoje claro que as tentativas do SNS desenvolver as suas capacidades na área da saúde oral têm ficado muito aquém do que deveriam. É também claro que existe uma capacidade privada que tem sido usada por camadas da população com rendimentos para o efeito, e que as famílias de menores rendimentos têm menor acesso a cuidados de saúde oral do que deveriam. Neste campo, tenho uma declaração de interesses a fazer: em 2016 procurei refletir como aproveitar a capacidade privada existente para criar melhor acesso no contexto do SNS (ver aqui, Cuidados de Saúde Oral – Universalização), em 2024 apoiei uma proposta de fazer uma experiência piloto para se ter uma abordagem mais orgânica, mais integrada, com base em capacidade de resolução do setor privado, mas também referenciação de situações e monitorização por parte do SNS (ver aqui, Saúde Oral Universal: há 45 anos à espera…). Também colaborei em ideias de como procurar identificar de forma simples, e com poucos custos, situações mais criticas e estabelecimento de prioridades em jovens (ver aqui, Low-cost and scalable machine learning model for identifying children and adolescents with poor oral health using survey data: An empirical study in Portugal, Susana Lavado et al.). Assentar a solução para um problema de acesso, que leva também a problemas de cobertura financeira e necessidades não satisfeitas, na ideia de cheques dentista será insuficiente, como tem sido até aqui. E mais uma vez, não será o investimento em equipamentos e consultórios com verbas do PRR que irão resolver esta situação (até porque a taxa de execução não tem sido propriamente animadora).  

Gestão do Serviço Nacional de Saúde

Um dos elementos centrais que é apontado pelo Ministério da Saúde é a “necessidade de rever o modelo de gestão de recursos humanos na saúde”, preocupação completamente justificada, mesmo que no último ano tenha ocorrido uma certa pacificação nas relações laborais dentro do SNS (fruto das medidas que levaram a aumentos remuneratórios efetivos). O desenvolvimento desta ideia surge na secção dedicada às medidas, onde se tem como componente central a criação de um “plano de motivação dos profissionais”. É certamente desejável uma forma diferente do SNS se relacionar com os profissionais de saúde que nele trabalham, e de uma forma geral o que é apresentado é desejável. Contudo, há ainda necessidade de percorrer algum caminho de pensamento antes de ter concluído, aprovado e implementado esse plano. 

É de saudar a abertura a falar com as Ordens Profissionais e associações representativas (oficialmente), que será uma condição necessária mas não suficiente. É importante ouvir também profissionais de saúde que não tenham funções de representação (ou melhor, que se representam apenas a si próprios), de diferentes gerações e experiências.

Parece-me que a construção deste plano tem uma perspetiva de longo prazo, pelo que deve ser com o consenso suficiente para ser realmente estruturante, deixando margens de flexibilidade para ajustar transformações sobre as quais ainda não há hoje um bom entendimento da sua extensão (em particular, em que medida as aplicações de inteligência artificial generativa poderão vir a alterar as funções e as competências exigidas às diferenças profissões de saúde, e se até virão a surgir novas profissões de saúde ligadas a esses desenvolvimentos tecnológicos).

Contudo, não se fala, nas medidas, em ideias concretas para a reorganização da forma de trabalho, que será relevante, com maior ou menos papel da inteligência artificial. Fala-se em “construir novos modelos de organização do trabalho”,  e é possível ser desde já mais concreto. 

Aqui, deixo a sugestão de ensaiar duas experiências piloto: a) a semana de 4 dias (que pode ser libertar 1 dia em cada 10, ou outra formulação) e b) USF tipo “outra letra”, adaptada a zonas de dispersão geográfica da população, usando metodologias de avaliação que envolvam um grupo de comparação onde não há alteração, para se perceber as vantagens e as desvantagens de novos modelos de organização. Central a qualquer um dos tipos de experiência é as ideias de reorganização deverem surgir da reflexão dos profissionais de saúde envolvidos sobre as formas de melhorar o que fazem. A propósito da semana de 4 dias, antes de qualquer reação imediata, sugiro a leitura dos trabalhos e relatórios de Pedro Gomes e Rita Fontinha, na realidade portuguesa. De uma forma simples, a ideia central é reorganizar a forma de trabalhar , ganhando eficiência e remunerando esses ganhos de eficiência com tempo livre. Não é uma questão de comprimir o mesmo horário de trabalho em menos dias. É uma questão de fazer melhor, e deixar que a remuneração possa ser paga em tempo, o que ajuda ao objetivo cada vez mais mencionado de equilibrar vida profissional e vida pessoal. (nota “nerd” – de um ponto de vista de análise económica é atuar sobre a restrição que possa ser mais importante, dando à pessoa / trabalhador / profissional um conjunto de escolhas mais amplo – se preferir usar o tempo livre ganho para obter mais rendimento, poderá fazê-lo, mas não é obrigado a fazê-lo). 

É expressa uma preocupação com os sistemas de informação, perfeitamente justificada e que deverá dar lugar a uma ação decidida (e não são as verbas do PRR que irão resolver essas fragilidades).  Aqui cabe também a criação de um modelo de gestão de dados em saúde (o que faz sentido), e suponho que envolva a participação no espaço europeu de dados em saúde, e abranja quer o setor público quer o setor privado, na totalidade do sistema de saúde português. Claro que este modelo de gestão não pode ser pensado de forma separada do registo eletrónico de saúde único (mais uma velha aspiração para o sistema de saúde português). E será que estas tarefas serão feitas por uma anunciada Agência Digital da Saúde/Agência Nacional Digital na Saúde (estão presentes os dois termos, suponho que sejam a mesma entidade, será uma evolução da SPMS, aparentemente, ou é algo completamente novo? A preocupação com a “salada organizacional” volta a surgir). O que surge nas metas é de alguma forma completado pelas medidas. No entanto, sinto falta de dois elementos centrais: uma estratégia para a inteligência artificial na saúde, e a referência à União Europeia. Não é possível pensar em transformação digital na saúde sem pensar em termos europeus, seja pelo desenvolvimento de tecnologia, seja pelo estabelecimento de standards técnicos, seja pela participação no espaço europeu de dados em saúde (para gestão do sistema de saúde e para investigação), seja pela segurança e condições de uso dos dados gerados pela digitalização em saúde. 

Encontra-se uma referência quanto ao uso de um sistema de contabilidade de custos, que tem um roteiro definido, que implica um compromisso de topo, das várias organizações do Ministério da Saúde (ACSS, SPMS e DE-SNS), no entanto apenas a ACSS parece realmente comprometida. No ano passado, definiram-se várias recomendações (disponíveis aqui). O primeiro passo será garantir que estas recomendações (ou outras que as substituam) são cumpridas. Ou num próximo programa de governo haverá novamente esta preocupação (que já tem duas décadas de intenção, pelo menos, e nem mesmo no período da troika se conseguiu avançar de forma significativa). Agora pretende-se que esteja aplicado em todos os hospitais (suponho que queiram dizer Unidades Locais de Saúde, pois não fará sentido ter um sistema da contabilidade de custos no hospital e não ter ou ter outro diferente nas unidades de cuidados de saúde primários da mesma Unidade Local de Saúde.

É mantida a intenção de lançar novas Parcerias Público-Privadas (PPP). Creio que será a continuação do processo já iniciado, pelo que remeto para textos anteriores com os meus comentários sobre o que se vai sabendo. 

É anunciada uma unidade de combate à fraude no SNS. É bom que exista, e que use todas as ferramentas de dados atualmente disponíveis. A sua existência será um fator dissuasor da fraude. Aliás, creio que no passado já existiu. 

Em termos de mecanismos de pagamento a prestadores de cuidados de saúde do SNS, é dito “transformar o financiamento em saúde com base no modelo de saúde baseada no valor (“value-based healthcare”).” Ora, aqui será importante perceber em que prazo se pretende concretizar, e sobretudo saber como serão respondidas duas questões centrais: a) como será medido o “valor” de forma que seja apropriada para fazer parte de um mecanismo de pagamento; b) o que será feito com as unidades de saúde que não produzam “valor” suficiente para que os pagamentos recebidos sejam suficientes para cobrir os seus custos? Se recebem verbas adicionais, pagar de acordo com o valor ou de acordo com a despesa tida será exatamente a mesma coisa (do mesmo modo que o atual modelo de pagamento por orçamento global é subvertido pelos reforços extraordinários de verbas. Claro que esta intenção tem de ser pensada em conjunto com a Lei de Meios da Saúde que é anunciada noutro ponto do programa do governo.  Ao mesmo tempo pretende-se voltar a reorganizar o SNS em sistemas locais de saúde, “com a participação de entidades públicas, privadas e sociais” (sociais são entidades privadas sem fins lucrativos, isto é, são entidades que também precisam de ver assegurada a sua sobrevivência financeira, pagas por verbas públicas sempre que prestarem serviços ao setor público, não são entidades que tragam verbas para o funcionamento do setor público). Ou seja, vão-se estabelecer novas regras de pagamento e ao mesmo tempo aumentar o número de entidades com essas novas regras (mecanismos de pagamento) vão ser aplicadas? Não deixa de ser um programa ambicioso, embora a tradição portuguesa neste campo sugira que não será concretizado. 

Promover a saúde e a prevenção da doença

Neste campo, a intenção de envolver o sistema educativo (pressuponho que público e privado), as Misericórdias e as IPSS, as farmácias comunitárias é desejável. A necessidade de coordenação de muitas entidades diferentes, que podem contribuir de formas distintas e complementares, deverá receber atenção especial. Será desejável que haja um organismo que tenha esta responsabilidade, e os poderes executivos para a concretizar. Desejavelmente, deverá ser uma entidade já existente (não adicionemos mais coisas à “salada organizacional” atual). Tem é de ser claro. Provavelmente a melhor escolha será a Direção-Geral de Saúde, desde que dotada do poder de decisão necessário (e não ficar apenas mencionada a propósito dos comportamentos aditivos associados aos jogos de azar, que são uma preocupação crescente).

Cuidados de saúde primários

Há o reafirmar do princípio geralmente reconhecido, incluindo na esmagadora maioria do espectro partidário presente na Assembleia ad República, de “valorização da Medicina Geral e Familiar”, que se traduz no objetivo de conseguir aumentar a cobertura por médico de família atribuído da população residente. Para efeito, a intenção é adaptar as Unidades de Saúde Familiar (USF) modelo B , lançar as USF modelo C e o regime de convenções. Aqui, concordo com a intenção de ter diferentes modelos de USF B consoante as necessidades da região onde estão, tenho incerteza quando às USF C, na medida em que dependerá do contrato que venha a ser estabelecido, e tenho dúvidas quanto ao regime de convenções (que me parece mais orientado para ter mais “produção” de consultas e melhores estatísticas dessa natureza do que contribuir para um seguimento de longo prazo). Há sempre uma tensão inerente a satisfazer necessidades de atendimento permanente para uma procura excedentária face à procura no curto prazo versus ter um sistema de seguimento de longo prazo. A pressão para apresentar resultados pode facilmente levar a soluções que são menos interessantes a médio e longo prazo. 

Importante será ver como se permite o ajustamento das USF B às condições locais. Se vão ser definidas as regras centralmente de forma ad-hoc (fazendo lembrar as “ìndias de gabinete” de uma música de Rui Veloso) ou se os profissionais de saúde dessas regiões serão ouvidos sobre a melhor forma de se organizarem, por forma a garantir o papel assistencial que lhes é pedido. Esta preocupação sobre o processo surge também das medidas (que supostamente deverão permitir atingir as metas), que falam em desenho de indicadores ajustáveis aos territórios de baixa densidade e mais carenciados (desenhados por quem? com que discussão? Em regime de “sociedade secreta” como tem sido frequente?). Aqui, estou convencido que será útil ouvir sugestões de quem trabalha nesses territórios. Não é preciso abdicar da capacidade de decidir para se ouvir. Quem decide tem de observar o equilíbrio global do Serviço Nacional de Saúde e do sistema de saúde, pelo que é natural que não siga todas as sugestões que possam ser apresentadas. Mas não ouvir é perder oportunidade de encontrar ideias novas e apropriadas a essas zonas. Não é ouvir com propósito de “envolvimento”, é ouvir com propósito de aprender.

Nas medidas, são referidas as USF tipo C para as zonas de baixa cobertura de médico de família. Não sei se fará especial sentido, sobretudo quando as primeiras USF tipo C ainda não estão a funcionar. Compreendo que haja a intenção de encontrar uma solução para estas zonas. Receio, contudo, que os fundamentos económicos sejam difíceis de satisfazer, pelo menos na ausência de informação adicional. Explicando o porquê deste receio (que alguém poderá mostrar que é infundado). Às USF tipo C, como mini-PPP que parecem ser – terão um contrato associado, não será uma mera aquisição de serviços – terão uma exigência de ganho financeiro (menor despesa) face ao que seria feito pelo SNS diretamente. Se ao mesmo tempo as zonas com baixa cobertura de médico de família tiverem características que as levem a ter problemas de economias de escala (por exemplo, se coincidirem com zonas de elevada dispersão geográfica da população eventualmente envelhecida, requerendo mais cuidados domiciliários, ou mais tempo de atendimento), então dificilmente haverá capacidade de cumprir o papel desejado. Não é totalmente claro que haja vantagem em ser USF tipo C face a USF tipo B, sem conhecer melhor as causas da própria falta de cobertura. Tentar as USF tipo C mas estar preparado para usar USF tipo B (modificadas, eventualmente) deverá estar presente na ação pública (sem encarar como fracasso não conseguir aliciar a criação de USF tipo C).

No restante, medidas que potenciem e facilitem a participação de outros profissionais de saúde, no contexto de intervenções multidisciplinares, são bem-vindas.

Cuidados hospitalares

Retoma-se a habitual preocupação com o cumprimento dos Tempos Máximos de Resposta Garantidos para consultas e cirurgias, embora não seja explicitado como se concretizará (é mais um objectivo que não tem sido alcançado de forma sistemática nos últimos 20). Embora seja dito “em todos os Hospitais portugueses”, suponho que se estejam a referir aos hospitais do SNS; se assim não for, e a intenção ser mesmo abranger todos os hospitais no sistema de saúde português, será interessante como se produzirá a monitorização de todos os tempos de espera nos hospitais que não são do SNS. 

Nas medidas a proposta de “criação de programas específicos (…) em modelo próprio”, o que acarreta o risco de fragmentação de modelos. Antes de avançar com uma multiplicidade de modelos, será melhor perceber primeiro o que impede o modelo atual de funcionar, e desbloquear barreiras. As diferenças principais em não cumprir os TMRG são entre especialidades (situações similares entre hospitais/ULS e muito diferentes entre especialidades) ou são entre hospitais/ULS (situações muito diferentes entre hospitais e muito similares entre especialidades dentro do mesmo hospital/ULS)? Sem uma documentação precisa do problema concreto, é difícil perceber se multiplicar modelos é a melhor opção, e sobretudo gostava de a ver comparada com outras opções possíveis que sejam identificadas.  De alguma forma, ganhar esse conhecimento e decidir com base no que se venha a saber parece estar subjacente a duas das outras medidas (promover auditoria regional e nacional aos TMRG de cirurgia, promoção de incentivos à cirurgia de ambulatório), ou pelo menos não vejo que haja vantagem em serem vistos de forma separada.

Como medida é apresentado um “novo Sistema Nacional de Acesso a Consultas e Cirurgias”. Aqui o elemento central será perceber como vão ser estabelecidos os incentivos (enquadramento das decisões dos vários agentes envolvidos), que cultura a longo prazo irá induzir, e que mecanismos de monitorização vão estar presentes. Não é claro, à partida, que solução se pretende encontrar que não esteja de alguma forma já presente no SNS (se não for uma questão de abordagem, será uma questão de processos? É apenas adicionar MCDT?). Será para acompanhar.

Na área dos cuidados urgentes e emergentes, é mencionada a criação de “urgências regionais”, uma necessidade face aos recursos humanos disponíveis, por um lado, e uma questão de eficiência global, mesmo que por qualquer motivo inesperado passasse a existir um volume de recursos humanos suficientes. Só estranho que relacionado com esta resposta a uma necessidade não se fale na avaliação (e eventual expansão, se a avaliação for positiva) da experiência das equipas dedicadas nas urgências hospitalares, e na avaliação (e eventual ajustamento ou afinamento) do programa “ligue antes salve vidas”. Como nas medidas surge “implementar incentivos para profissionais que realizem serviço de urgência”, avaliar o que está em curso pode ajudar a perceber o melhor caminho (se o programa “ligue antes salve vidas” reduzir muito a procura de urgências será preciso esses incentivos? As equipas dedicadas às urgências incluem esses incentivos ou é ainda adicional a essas equipas dedicadas?)

Na organização dos hospitais (dentro das Unidades Locais de Saúde), é referida a intenção de desenvolver novos modelos de “Centros de Responsabilidade Integrada” (creio que serão Centro de Responsabilidade Integrados (CRI), são centros de responsabilidade que estão integrados nos hospitais que estão integrados nas ULS, e não responsabilidade integrada que é agregada em centros). Aqui, mais uma vez, será bom que se faça uma aprendizagem da sua aplicação dos últimos anos, até usando o conhecimento que tenha sido gerado ou que possa ser gerado com contributo da associação nacional dos CRI (CCRIA – Associação). 

Cuidados Continuados e Cuidados Paliativos

São tratados de forma conjunta (numa das “metas”), embora provavelmente precisem de ações de natureza distinta. Creio que será fácil estabelecer acordo sobre a necessidade de desenvolver estas áreas, face ao envelhecimento da população. De uma forma mais geral, será adequado que se tomem decisões sobre que respostas são necessárias, como se interligam com outras respostas que envolvem cuidados sociais, a cargo da Segurança Social e nalguns casos com vantagem em ter envolvimento das autarquias. Há questões dos tipos de cuidados e de apoio necessários, da melhor forma de os providenciar, e da flexibilidade que terão – além de cuidados continuados e cuidados paliativos, há certamente necessidades de apoio domiciliário, que evoluem de acordo com a evolução cognitiva e de mobilidade das pessoas. A questão central é como apoiar as pessoas de forma que possam envelhecer com qualidade de vida nas suas casas, respeitando sempre que possível as suas preferências (que não serão as mesmas para todas as pessoas, e que provavelmente serão diferentes de qualquer solução única que um sistema de saúde e/ou de segurança social queira definir a partir de gabinetes). O processo e as soluções encontradas não são apenas para definir parceiros no setor privado (com e sem fins lucrativos) ou no setor público. Saber o que é necessário, para quem necessário, e como evolui para uma mesma pessoa no tempo é um desafio organizacional grande (e de certo modo contra a cultura tradicional portuguesa de decisão centralizada única). 

Encontro duas secções nas medidas que são prometedoras, embora o risco de equívocos e de falta de clareza seja grande em qualquer delas. Há o mérito de as explicitar. Há que ter o trabalho de as concretizar de forma coerente e útil para o sistema de saúde (e para o SNS). Essas duas áreas são a “Inovação na Saúde” e “Aumentar a eficiência na Saúde”.  Como é notório, tenho como formação de base economia, pelo que é natural o apelo destas duas áreas.

No caso da inovação na saúde, falta uma ambição de atuar no contexto internacional, procurar inserir cada vez mais a investigação feita em Portugal num ecossistema europeu de inovação, aproveitando o que venha a ser feito no âmbito do Relatório Draghi e da recente proposta da Critical Medicines Act. Focar em modelos de financiamento em Portugal dificilmente conseguirá dar esse papel à investigação.

No campo da eficiência, há uma necessidade grande de clarificação de conceitos, para que depois se possa passar a ações consequentes. Desde logo, é importante fazer a distinção entre três níveis de ineficiência que podem, e devem, ser tratados dentro desta ideia de aumentar a eficiência na (produção de cuidados de) Saúde. É preciso separar o que é redução de desperdício, o que é reorganização das atividades e o que é deixar de fazer atividades e intervenções com pouco (ou mesmo sem) valor terapêutico e de custo elevado. Para cada um destes tipos de ineficiência deverá ter-se mecanismos de atuação. Alguns desses mecanismos podem ter efeitos em todos estes tipos de ineficiência. A maior autonomia dos hospitais (na verdade, das ULS) é um desses mecanismos, mas deverá ser acompanhada de maior responsabilidade, no sentido de accountability. E provavelmente fará sentido ir dando progressiva autonomia às ULS que tenham melhor desempenho. A entidade do Ministério da Saúde que aprova e/ou monitoriza estes investimentos deverá definir a metodologia de cálculo, e fazer a sua aplicação regular (por exemplo, num relatório anual a ser disponibilizado na internet, e que na sua ausência leve a algum custo para quem gere a entidade com esta responsabilidade – talvez perder dias de férias, ou perder parte de um ordenado mensal?). 

A discussão do papel das compras públicas, por seu lado, não pode ser desligada da Critical Medicines Act e da proposta de utilização do critério da proposta economicamente mais vantajosa (MEAT, no acrónimo em língua inglesa).

Relativamente às auditorias de gestão, deverão existir dois tipos de auditoria: auditorias regulares, decididas aleatoriamente (e não apenas auditar as ULS que têm os processos mais organizados e que por isso serão mais fáceis de auditar) e auditorias de emergência de gestão (o que são e qual a racionalidade por detrás desta proposta, está descrito aqui – spoiler, é um policy paper da SEDES em que participei com a Catarina Delaunay). 

De uma forma geral, há um comentário sobre questões de eficiência e uso de incentivos. Incentivos tem como lógica influenciar o comportamento de agentes económicos. E podemos distinguir entre incentivos para participação numa relação económica e incentivos destinados a influenciar comportamentos que não são observados diretamente, mas cujos resultados são observáveis mesmo que de forma imperfeita. Os incentivos de participação têm de ser permanentes, enquanto os incentivos associados a resultados são condicionais a esses resultados. A importância da distinção é o primeiro tipo de incentivos passar a fazer parte da remuneração habitual dos profissionais de saúde, podendo tal não suceder no segundo caso.

Quando se fala de incentivos para a localização de profissionais de saúde em determinadas áreas, está-se a falar de pagar de forma permanente melhor. É apenas condicional a observar-se a existência de um contrato de trabalho. 

Incentivos associados à indicadores de qualidade ou de satisfação do utente baseiam-se em que um maior esforço (melhor desempenho) do profissional de saúde se traduz em melhores indicadores, mas pode haver erro – situações em que esforço feito, por simples azar, não se materializou em melhoria do estado de saúde das pessoas tratadas, ou situações em que mesmo com pouco esforço ocorre, por outros motivos fortuitos, uma melhoria do estado de saúde das pessoas tratadas. A remuneração associada com estes indicadores irá então flutuar por vários motivos.  A forma de pensar e depois de atribuir incentivos é por isso distinta. Por exemplo, para atrair profissionais de saúde a zonas mais remotas, provavelmente é necessário mais incentivos do primeiro tipo, mas para melhorar a eficiência de funcionamento das unidades de saúde será mais relevante a utilização de incentivos do segundo tipo. 

Sobre o desenvolvimento de mecanismos de acompanhamento e avaliação de investimentos, deverá ser feito e até deixo a sugestão de se passar a calcular a taxa de retorno social dos investimentos. A DE-SNS, por exemplo, poderá ter este papel.

Há muitas outras intervenções em áreas específicas, que não foco para não ficar com um texto mais longo que o próprio programa do Governo,

Por fim, uma nota de curiosidade: apesar de o programa do Governo falar várias vezes em valor em saúde, quando quer falar de resultados volta à (habitual) descrição de aumento de atividade (cirurgias, consultas hospitalares, consultas nos cuidados de saúde primários, etc). Pelo menos, seria de adicionar o que foi realizado em termos de ganhos de saúde. Se não for fácil, significa também que as intenções de gerir em termos de ganhos de saúde irá ter também dificuldade de perceber. 

Além da saúde, outras áreas focadas no programa do governo merecem um comentário breve, e além do programa do governo, outros eventos / ideias / discussões na área da saúde merecem um comentário breve. Fica para textos num futuro próximo.


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Observatório da dívida dos hospitais EPE, segundo a execução orçamental (nº 82, janeiro de 2025)

Em dezembro de 2024 tornou-se conhecido o valor da habitual transferência extraordinária para as entidades do SNS (agora as Unidades Locais de Saúde, anteriormente os hospitais EPE) regularizarem as dívidas vencidas (que incluem os pagamentos em atraso, ou seja 90 dias de atraso adicionais aos 90 dias que definem o que é a dívida vencida). 

O valor de cerca de 975 milhões de euros aproxima-se, em larga medida, do valor esperado da dívida vencida até ao final do ano (os números finais de 2024 ainda não se encontram no domínio público), sendo superior ao valor dos pagamentos em atraso conhecidos. Em novembro de 2024, o último valor conhecido à data de escrita, os pagamentos em atraso tiveram uma magnitude de 554,5 milhões de euros, com um ritmo médio mensal de crescimento de cerca de 55 milhões de euros (embora em aceleração).

Será de esperar que em janeiro de 2025 o valor dos pagamentos em atraso seja residual, uma vez que a transferência realizada deverá permitir eliminar quer o stock de pagamentos em atraso quer o fluxo provável adicional a partir da dívida vencida (que se não for paga passará a pagamentos em atraso).

Deste ponto de vista, a transferência definida em dezembro de 2024 tem o potencial de (quase) “zerar” os pagamentos em atraso.

Em contraponto a esta visão positiva do efeito, imediato, há a tradição de transferências passadas, de elevada magnitude, não terem conseguido, nos últimos 13 anos (desde que há dados fiáveis e regulares), resolver o problema. Em anos recentes, os pagamentos em atraso no final do ano, após a transferência extraordinária, aproximaram-se de zero, e os orçamentos iniciais do SNS tiveram reforços generosos das verbas iniciais.

Mesmo no ano de 2024, o ritmo de crescimento dos pagamentos em atraso foi em média de 55 milhões de euros por mês, sem efeito aparente resultante da mudança de Governo ou de mudança da Direção-Executiva do SNS (sensivelmente pouco mais de um mês depois da entrada em vigor do novo Governo). 

Assim, embora o Governo tenha criado condições que surgem adequadas para acabar com o problema dos pagamentos em atraso, é natural que permaneça alguma dúvida sobre se tal será o caso. Apesar de só no futuro se vir a conhecer o resultado deste esforço, também aparenta ser razoável esperar que futuras decisões sobre continuação, ou até substituição antecipada, de equipas de gestão das ULS possa vir a estar ligada à evolução dos respetivos pagamentos em atraso, como indicador da respetiva capacidade de gestão, num quadro inicial de orçamento “adequado” e baixo volume de dívida vencida e de pagamento em atraso, um renovar do problema dos pagamentos em atraso numa ULS terá de ser muito claramente explicado. O facto de se “limpar” dívidas passadas deverá permitir um pagamento atempado regular, o que se deverá materializar em preços mais baixos de fornecedores (que deixaram de precisar de incluir no preço o custo financeiro de receber as verbas devidas com grande atraso).

Neste contexto, é de esperar que em 2025 haja algures no Ministério da Saúde ou no SNS uma equipa com a missão de acompanhar a gestão financeira das ULS (seja na Direção-Executiva do SNS, seja na Secretaria de Estado da Gestão da Saúde, ou mesmo com ambas, com alguma redundância, que poderá ser útil nesta fase).

As duas figuras seguintes ilustram o ciclo de crescimento dos pagamentos em atraso, seguido de regularizações extraordinárias, seguidas de novo crescimento. A segunda figura contém as estimativas de crescimento médio mensal, com um valor de 55 milhões de euros na última fase de tendência, que é similar os meses anteriores à pandemia.


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a propósito de “oportunismo de saúde”

Foi recentemente aprovada uma alteração às regras de acesso de migrantes aos serviços de saúde do SNS (noticia aqui, por exemplo). A discussão que tem estado à volta do tema tem sido desordenada e desorganizada, em parte por falta de informação, em parte por falta de sistematização, revelada pela má utilização de conceitos. Se propositadamente ou se por ignorância, não sei.

Há três pontos centrais a clarificar : a) de que problema se fala? b) que informação há sobre esse problema em Portugal? c) que exemplos de outros países nos podem ajudar? Só depois de responder a estas perguntas é razoável colocar opções de medidas (incluindo não fazer nada) para definição de objetivos pretendidos, discussão e decisão.

a) de que problema se fala?

Aparentemente, pelo discurso público mais sonoro, a preocupação será com a utilização abusiva do Serviço Nacional de Saúde por estrangeiros. Coloco estrangeiros propositadamente. Pretende-se evitar que pessoas de outros países, de nacionalidade que não é a portuguesa, venham ao Serviço Nacional de Saúde aproveitar serviços gratuitos de elevado custo, por vezes com grande elaboração e preparação dessa visita.

Se é esse o problema, é muito diferente da utilização do Serviço Nacional de Saúde por residentes que não tenham nacionalidade portuguesa, estejam em situação legal ou não, por turistas que por motivos acidentais necessitam de recorrer a cuidados de saúde, ou por “turistas de saúde”. Por “turismo de saúde” deve-se entender uma atividade organizada, e paga ao sistema de saúde, de pessoas de um país recorrerem a prestadores de cuidados de saúde noutro país. Para uma clarificação do conceito veja-se como introdução este texto de Neil Lunt, este livro sobre o tema, as iniciativas do Health Cluster Portugal para fazer de Portugal um destino de turismo de saúde (com financiamento de programas comunitários), e até no Serviço Nacional de Saúde se procurou estar ativo (notícia com mais de uma década, relativa a um hospital grande de Portugal). Nenhuma destas últimas três situações é, de acordo com o que me parece estar na discussão público, o alvo das medidas propostas.

É então preciso focar a atenção no “uso abusivo”, o que se chamar de “oportunismo de saúde” (uma vez que a expressão “turismo de saúde” significa algo completamente diferente).

b) que evidência existe sobre “oportunismo de saúde”?

As informações sobre utilização dos serviços de saúde por residentes de outras nacionalidades, qualquer que seja o seu estatuto legal em Portugal (propositado, ou por falta de capacidade dos serviços públicos portugueses de o regularizarem) não respondem a essa pergunta. Até porque o “oportunismo de saúde” poderá ser feito de forma completamente legal à luz das regras existentes (o célebre caso de acesso a medicamentos de preço muito elevado não é uma situação de um residente não nacional em situação irregular…). O que é preciso conhecer é que situações de tratamento de custo muito elevado, associadas com pessoas não residentes em Portugal, e correspondendo a casos programados (e não fortuitos, de acidente), existem. A informação de atendimentos em serviços de urgência do Serviço Nacional de Saúde (como parece ser o caso da informação que está a ser recolhida, a atender a esta noticia) é irrelevante para essa caracterização. Mais relevante será saber o valor do tratamento de problemas crónicos de custo elevado, ou programados (como eventualmente partos), associados com não residentes em Portugal e que vão continuar a ser não residentes.

A falta de clareza sobre o problema que se quer discutir faz com que se usem os dados (eventualmente) disponíveis, e não a informação que é relevante para o problema. É uma versão da célebre anedota sobre procurar as chaves onde há luz e não onde foram perdidas (versão banda desenhada, para mais informação basta usar o google com “streetlight effect”).

Conclusão a retirar: sem clareza quanto ao que se identifica como problema vai-se estar a procurar informação que não é relevante, e com isso distorce-se a discussão e até se muda o problema (significa que provavelmente a “solução” não será adequada para o verdadeiro problema, e terá apenas efeitos negativos sobre quem não se pretendia atingir).

c) O que sabemos sobre restrições no acesso a cuidados de saúde por parte de residentes não nacionais, em situação irregular, aqueles a que presumivelmente se quer cobrar o uso do Serviço Nacional de Saúde?

Este tipo de medida foi introduzido em 2012 em Espanha (Real Decreto-ley 16/2012), excluindo migrantes não documentados do acesso a cuidados de saúde, e a decisão foi posteriormente revogada.

Uma análise desta medida, realizada por L. Peralta-Gallego, J. Gené-Badia, P. Gallo, em Effects of undocumented immigrants exclusion from health care coverage in Spain, Health Policy, 122 (2018) 1155–1160, está disponível aqui. Outra análise realizada em Barcelona revelou que os migrantes não documentados , por falta de acesso a serviços de saúde, tiveram menos uso de cuidados de saúde primários mas mais situações de doença contagiosa (ver aqui: Lancet Planetary Health), o que sugere a importância de manter o acesso a todos os residentes, mesmo que sejam migrantes sem documentação. Uma análise sobre os efeitos decorrentes desta medida na saúde dos migrantes indica que houve um aumento importante da mortalidade entre estes migrantes não documentados (A. Juanmarti Mestres, G. López Casasnovas, J. Vall Castelló, 2021, The deadly effects of losing health insurance, European Economic Review, 131, ver aqui). Há também informação sobre um maior uso dos serviços de urgência por falta de acesso a outros serviços.

A política foi alterada em 2018, seis anos depois, alargando a cobertura do serviço nacional de saúde espanhol a todos os residentes, incluindo migrantes sem documentação (ver Real Decreto-Ley 7/2018, e aqui). Atualmente, os migrantes sem documentos têm direito aos mesmos benefícios que os residentes depois de estarem em Espanha durante 90 dias ou através de um relatório dos serviços sociais. Ou seja, o apelo imediato que a medida teve em 2012 não sobreviveu a um escrutínio mais amplo da sociedade espanhola, embora tenha levado 6 anos a ser revertida.

Para informação sobre a situação em vários países europeus, sugiro uma consulta aqui (UHC Watch – WHO Barcelona Office for Health Systems Financing).

Daqui resulta que há o risco de se adoptarem medidas que não resolvem o problema que aparentemente se diz querer resolver, e que terão efeitos negativos sobre quem não se pretende atingir. Ou seja, é uma medida sem ou com muito poucos benefícios (face ao objetivo pretendido) mas com custos (que podem ser elevados) que não estão a ser tidos em conta.

Será interessante saber se as medidas propostas sobrevivem a uma avaliação prévia de impacto legislativo (sugiro a leitura de um documento da Assembleia da República, elaborado em 2024, avaliação prévia de impacto legislativo pelo Parlamento, das Metodologias de Avaliação de Impacto Normativo do Ministério da Justiça sobre produção legislativa, dos Guias de Avaliação de Impacto Legislativo para se ter uma ideia do que se deve fazer, elaborados PlanAPP, um departamento público de apoio à definição de políticas públicas, e o manual de Carlos Blanco de Morais, Guia de Avaliação de Impacto Normativo).

Chegando aqui a pergunta natural é que soluções alternativas devem ser colocadas como opção de resolução do problema. Para isso, é preciso primeiro conhecer as características reais do problema que se quer resolver. Até porque as declarações públicas de “indignação” com abuso por parte de alguns não residentes não coincidem com as pessoas a quem as medidas propostas se destinam, pelo menos de acordo com o que tem sido relatado (algo que já foi notado, ver aqui).

Se estivermos a falar de partos de pessoas não residentes, e que depois sairão do país, é natural que se procure uma solução diferente de pessoas que procuram residir em Portugal ou terem a nacionalidade portuguesa para usufruirem de medicamentos de muito elevado custo. Sem ter a informação sobre a preocupação base, a discussão utilizando outros dados será certamente distorcida, as decisões tomadas provavelmente erradas. Por exemplo, pedir comprovativos de residência a migrantes em situação irregular, que os terão de apresentar posteriormente se tratados por um problema urgente, não resolve a primeira situação (vai-se conseguir impedir a saída do país de mulheres que tenham vindo ter filhos no SNS, como se refere que sucede?) nem a segunda situação (para tratamentos continuados de muito elevado custo, valerá a pena a despesa e o tempo de ser residente ou nacional, com situação regularizada). Apenas se cairá na situação que houve em Espanha durante 6 anos (ver acima).


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sobre o programa “Ligue antes, salve vidas”

Nos últimos tempos têm surgido várias notícias e informações sobre estratégias a adotar pelas unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para o maior período de pressão sobre as urgências hospitalares que está associado usualmente ao Inverno. As duas grandes linhas de atuação são, tanto quanto se depreende da comunicação recente do SNS, a referenciação para consultas nos cuidados de saúde primários (o alargamento do projeto “ligue antes, salve vidas”, iniciado no segundo semestre de 2023 na zona de Póvoa de Varzim/Vila do Conde) e os centros de atendimento clínico (trazendo capacidade do sector privado para responder à procura dirigida ao SNS, que se traduz em tempos de espera muito elevados sempre que há falta de capacidade significativa nas unidades públicas.
A existência de quase um ano de experiência do projeto “ligue antes, salve vidas”, com a obrigação de telefonar para o SNS, em Póvoa de Varzim/Vila do Conde, e a recente disponibilização de informação estatística sobre a atividade da urgência hospitalar (até ao mês de setembro de 2024) permite uma primeira visão dos resultados.
Os quatro meses de atividade do Centro de Atendimento Clínico de Lisboa, para o qual surgiu informação na imprensa, ainda não estão refletidos na informação disponível para a utilização da urgência do Hospital de Santa Maria (presumivelmente o principal beneficiário da abertura deste Centro de Atendimento Clínico).
O projeto “ligue antes, salve vidas” em Vila do Conde/Póvoa do Varzim teve uma fase inicial de informação à população (de maio a dezembro de 2023), e a fase atual iniciou-se em janeiro de 2024. Nesta segunda fase, a regra é só serem atendidos em serviço de urgência hospitalar os casos que forem previamente triados pelo serviço telefónico SNS24, que se espera remeta os casos mais simples para os cuidados de saúde primários, com agendamento direto de consultas no próprio dia ou no dia seguinte. A chamada para o SNS24 tem de ser feita, mesmo que o seja a partir de um telefone fisicamente colocado perto do serviço de urgência hospitalar.
A medida de sucesso do projeto não é a existência de referenciação nos episódios de urgência, dado que essa vai existir sempre e por isso, por definição, aumenta face ao que sucedia anteriormente. O efeito que interessa conhecer é sobre o número de urgências atendidas por comparação com o que sucederia na ausência do projeto (o que é uma situação que não se observa diretamente).
Para procurar perceber os efeitos presentes, é útil comparar a evolução do número de episódios de urgência, na urgência hospitalar da ULS PVVC face ao seu passado, mas também face à evolução de outras unidades hospitalares, para captar efeito comuns e que possam tornar menos claro se o que se observou é resultado do projeto ou de outras medidas gerais, ou de uma tendência que viesse de meses e anos anteriores. No caso da urgência da Póvoa de Varzim/Vila do Conde o ponto de comparação mais natural é com a urgência hospitalar de Barcelos (pela dimensão, pela semelhança da população servida em termos da sua demografia e pela proximidade de evolução que houve antes do início do projeto). E felizmente, durante os nove meses de dados disponíveis, a unidade hospitalar de Barcelos não estava inserida no projeto.
O primeiro gráfico ilustra a evolução das urgências hospitalares nas duas unidades, usando a informação publicamente disponível. As linhas verticais representam os momentos chave: o início da informação sobre o projeto “ligue antes, salve vidas” na zona da urgência hospitalar de Póvoa do Varzim/Vila do Conde; e o momento de referenciação obrigatória.
O segundo gráfico tem a evolução da diferença entre urgências hospitalares da unidade de PVVC e da unidade de Barcelos.


Na análise visual (que é confirmada por análise estatística) resultam duas conclusões: a) a persuasão a menor utilização dos serviços de urgência através de comunicação na primeira fase do “ligue antes, salve vidas” não surtiu qualquer efeito; b) a obrigação da referenciação tem como resultado, ao fim de sensivelmente 4 meses, uma redução no número de urgências de cerca de 10%, já tendo em consideração uma evolução geral que teria lugar de qualquer modo (que é capturada pela diferença para a urgência hospitalar de Barcelos).
Antes de classificar como sucesso o projeto “ligue antes, salve vidas” (na zona de Póvoa de Varzim/Vila do Conde) é importante completar esta informação com outros elementos:
a) houve um desvio da procura de urgências para outras unidades hospitalares? No caso na zona geográfica da Póvoa de Varzim/Vila do Conde, o desvio de procura mais natural é para a urgência de Matosinhos. Os dados disponíveis não têm indícios desse desvio de procura;
b) houve o atendimento dessas pessoas nos cuidados de saúde primários, de forma satisfatória? Esta informação não está publicamente disponível, mas certamente a ACSS ou a Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde terão acesso a essa informação.
c) qual o grau de aceitação da população? (é natural que haja primeiro um aumento da insatisfação, mas será um efeito permanente ou dilui-se com o tempo).
Esta é a informação que a DE-SNS deveria recolher e analisar (e eventualmente
Se há um ano atrás, a informação pública sobre o projeto indicava ausência de qualquer efeito, a mudança de estratégia de “convencimento da população” para “obrigação da população” em usar a linha SNS24 terá tido os resultados pretendidos (pode-se discutir se a magnitude de redução de idas às urgências é a desejada, ou a esperada, ou a aproriada, ou não, mas de momento o efeito de redução da utilização da urgência é claro).

Exemplos de alguma informação pública sobre o projecto “ligue antes, salve vidas”

Documento da Direção-Executiva

Expansão do projeto – DE-SNS

ULS Braga – YouTube

anuncio inicial, junho 2023

(fazendo google do termo “”ligue antes, salve vidas” encontram-se muitas noticias e relatos)


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Depoimentos à Comissão Técnica Independente de estudo das unidades locais de saúde de cariz universitário

Depoimentos à Comissão Técnica Independente de estudo das unidades locais de saúde de cariz universitário

Julian Perelman (Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa)

Pedro Pita Barros (Nova School of Business and Economics, Universidade Nova de Lisboa)

07 de novembro de 2024

O presente documento apresenta os principais contributos para discussão apresentados em audiência solicitada pela Comissão Técnica Independente (CTI), instituída pelo Despacho n.º 10677/2024, com o objetivo de estudar as unidades locais de saúde de cariz universitário (ULSU) e a sua relação com o ensino médico, a formação e a investigação, de Julian Perelman (audiência realizada em 05 de novembro de 2024) e Pedro Pita Barros (audiência realizada em 06 de novembro de 2024).

Termos de referência da CTI:

a) Avaliar o modelo atual de funcionamento das ULSU, identificando os desafios estratégicos e o potencial de desenvolvimento, nomeadamente em contexto de articulação com os centros académicos clínicos;

b) Analisar a articulação entre as ULSU, as instituições de ensino superior e de investigação e os diferentes agentes e entidades de prestação de cuidados de saúde, com especial enfoque nos cuidados de saúde especializados de proximidade;

c) Propor modelos e estratégias de articulação sinérgicas das suas diferentes dimensões ao nível do ensino, da formação e da investigação nas ULSU, bem como a sua integração e articulação no quadro das redes de referenciação local, regional e nacional do Serviço Nacional de Saúde;

d) Identificar as melhores práticas nacionais e internacionais que possam ser adaptadas ao contexto e realidade das ULSU.

Posições comuns dos autores:

  1. O principal objetivo das ULSU é melhorar a integração dos cuidados, combinando serviços primários e hospitalares dentro de uma estrutura unificada.
  2. Existem problemas na definição das verbas disponibilizadas às ULS, assim como no modelo de governação, marcado pela falta de autonomia e responsabilização. Estes problemas aplicam-se às ULSU, em que as verbas se têm revelado insuficientes. Há a necessidade de uma revisão sistemática do modelo de financiamento e de governação das ULS.
  3. Há o reconhecimento de desafios específicos associados com o financiamento por capitação das ULSU, dado que estas têm, em geral, casos mais complexos e recebem doentes oriundos de áreas geográficas cobertas por outras ULS. Uma possibilidade é uma abordagem “Money follows the patient”, que obriga a uma definição de preços internos ao SNS. Deverá existir um valor de capitação ajustada para a complexidade, idade e patologia do doente. Modelos de ajustamento apenas baseados no diagnóstico, que não considerem a complexidade dos tratamentos, poderão ser insuficientes.
  4. Há o reconhecimento de as ULSU terem um papel crucial na educação médica (formação) e na investigação científica, sendo adequado ter orçamentos dedicados e afetação específica de tempo para as atividades de investigação.
  5. No caso da ULSU, um desafio específico decorre dos tratamentos inovadores de elevado custo. A participação das ULSU nas negociações de preços de medicamentos inovadores a serem introduzidos no SNS é vista favoravelmente. É vista desfavoravelmente a criação de um orçamento específico para a inovação (ou fundo dedicado a pagar a inovação).
  6. As ULSU, devido à sua relação próxima com universidades e estrutura mais complexa, exigem um modelo de governação distinto que inclua quadros específicos de representação e tomada de decisão dentro da ULSU. Esta perspetiva realça a necessidade de uma governação personalizada que tenha em conta as funções educativas e de investigação exclusivas das ULSU.

Considerações de Julian Perelman:

  1. O objetivo declarado da constituição das ULS é a maior integração de cuidados. Não há razão para que este não seja também objetivo das ULS Universitárias (ULS-U).
  2. A problemática central, apresentada publicamente, é a inadequação do orçamento. Esta inadequação não é específica às ULS-U, é referida por todas as ULS (e anteriormente pelos CH), e prende-se com desafios antigos de sub-orçamentação crónica, falta de autonomia e desresponsabilização das administrações. Estes temas devem ser tratados de forma genérica, para todas as ULS, com modelos mais adequados de orçamentação e governação.
  3. Uma questão específica é o pagamento maioritariamente baseado na capitação, inadequado para ULS-U que recebem utentes de fora da sua área de abrangência. Este problema, embora se coloque de forma mais aguda para as ULS-U, que oferecem cuidados mais complexos, pode também ser vivenciado por todas as ULS. Uma solução deveria ser “money follows the patient”, condição imprescindível para implementar melhor e credibilizar a liberdade de escolha. A ULS de origem financia a ULS de destino, como incentivo para as de origem manter os doentes e compensação para as de destino. A capitação deverá no entanto manter-se como fonte principal de financiamento.
  4. O ajustamento ao risco do pagamento per capita deverá ser adequado, tendo em conta não apenas a idade, sexo e patologia, mas também o nível de complexidade dos casos. Os ACG, que consta estarem a ser utilizados, poderão ser completados com dados dos GDH, que capturam melhor a complexidade.
  5. As funções de docência e formação dos especialistas das ULS-U são contempladas através do seu estatuto nas universidades (como docentes convidados, principalmente). No entanto, não existe orçamento para investigação clínica independente. Seria proveitoso existir um orçamento dedicado, por parte da FCT (ou AICIB) para promover esta investigação, e incentivos para a realizar através de libertação de tempo para investigação.
  6. A questão dos tratamentos inovadores de preços extremamente elevados pode ser contemplada de várias formas. Em primeiro lugar, ao contrário do que é referido, existe previsibilidade da entrada de novos fármacos (horizon scanning, aprovações pela EMA, entrada do pedido de financiamento no Infarmed), pelo que é possível estabelecer orçamentos adaptados com base em estimativas da despesa associada à entrada prevista dos novos tratamentos. Em segundo lugar, as ULS-U deveriam apoiar o Infarmed no processo de negociação com a indústria farmacêutica. Não é aceitável que quem paga os tratamentos não seja envolvido na negociação dos preços. Será uma forma de serem envolvidos numa problemática que lhes diz respeito, ganhar awareness quanto aos desafios da inovação, e poderem contribuir diretamente para a sua própria sustentabilidade e a sustentabilidade do SNS. Em terceiro lugar, deverá ser reforçado o processo de normas de orientação clínicas, redigidas imediatamente após a aprovação de financiamento, e a monitorização do seu cumprimento. Finalmente, não é desejável existir um orçamento separado para a inovação gerido centralmente, que desresponsabilizaria as ULS-U, contribuindo para um aumento desnecessário da despesa.

Considerações de Pedro Pita Barros

  1. Não disponho de informação estatística publicamente disponível suficiente para fornecer uma resposta baseada em evidência.
  2. As considerações apresentadas referem-se a análise estratégica.
  3. A criação de ULS, incluindo as ULSU, conjugam duas transformações simultâneas, ambas com efeitos relevantes: há uma integração vertical entre hospitais (universitários, no caso das ULSU) e há um financiamento definido por capitação (ajustada).
  4. A integração vertical de hospitais universitários com unidades de cuidados de saúde primários tem potenciais vantagens estratégicas: 1) coordenação / integração de cuidados, desde que se proceda a uma análise e redefinição de percursos clínicos e de fluxos de informação, reduzindo atrasos no tratamento e levando a uma melhor experiência do doente. 2) partilha de recursos, como equipamentos de diagnóstico e aproveitamento de economias de escala associadas com investimentos em tecnologias de informação e tarefas administrativas, melhor gestão de recursos, com coordenação e ligação entre os vários níveis de cuidados. Há eventuais vantagens de economias de escala em compras e em serviços partilhados; 3) partilha de riscos por agregação de unidades, e sua melhor gestão conjunta; 4) espaço de educação e oportunidades de investigação, incluindo investigação clinica nos cuidados de saúde primários, facilitada; 5) visão integrada das atividades de prevenção e de promoção da saúde, na medida em que a ULS internaliza os ganhos respetivos; 5) partilha de dados facilitada por decisões sobre sistemas de informação e métricas a utilizar para avaliação de desempenho e de saúde da população.
  5. A integração vertical de hospitais universitários com unidades de cuidados de saúde primários tem potenciais desvantagens estratégicas: 1) juntar hospitais universitários e cuidados de saúde primários numa única entidade administrativa pode conduzir a um aumento da complexidade administrativa e dos custos associados. Tal pode compensar os potenciais ganhos de eficiência. 2) Os hospitais universitários têm frequentemente custos operacionais mais elevados devido a atividades de investigação e formação. Quando se integra um hospital universitário com cuidados de saúde primários, a estrutura de custos pode mudar, potencialmente levando a despesas globais mais elevadas a serem distribuídas por todo o sistema; 3) maior complexidade de gestão – diferenças na cultura organizacional, prioridades e modelos operacionais entre hospitais universitários e unidades de cuidados de saúde primários podem levar a ineficiências. Os hospitais universitários normalmente têm missões acadêmicas e de investigação que podem não se alinhar com as missões mais focadas na comunidade dos cuidados de saúde primários. 4) A integração vertical pode levar à padronização dos protocolos que guiam os percursos clínicos para agilizar as operações, o que pode ser inibidor de inovação organizacional? (mais difícil introduzir inovações em sistemas organizacionais mais complexos); 5) choque de prioridades, os hospitais universitários podem dar mais importância à investigação e à formação, o que poderia desviar recursos das necessidades de cuidados de saúde primários. 6) menor autonomia dos cuidados de saúde primários, que podem perder a sua independência e capacidade de tomar decisões que respondam especificamente às necessidades da comunidade local. As decisões tomadas ao nível do hospital universitário podem nem sempre estar alinhadas com o que é melhor para os cuidados de saúde primários. O modelo atual, com financiamento separado das USF, baseado em indicadores específicos, pode entrar em conflito com os incentivos ao nível da ULS, levando à um desalinhamento dos objetivos (problema comum à todas as ULS, não só ULSU).
  6. A segunda transformação fundamental é o pagamento por capitação. Pagar hospitais universitários por capitação tem várias desvantagens: 1) sendo os hospitais universitários de elevada complexidade e tendo eventuais custos de formação a serem incluídos, a capitação ajustada apenas de acordo com o risco da população servida poderá não ser compensador financeiramente (o que no Serviço Nacional de Saúde acarreta dívida, pagamentos em atraso e regularizações extraordinárias, com efeitos negativos na qualidade de gestão). A capitação, se o valor não for definido adequadamente, pode desencorajar o investimento em novas tecnologias ou procedimentos. Acresce que há a considerar que os hospitais universitários servem procuras de serviços de outras ULS, devendo ou a capitação ser ajustada ou serem usados preços internos ao SNS. 3) a capitação poderá não ser suficiente para as missões mais vastas dos hospitais universitários, como o ensino e a investigação. 4) maior dificuldade técnica no estabelecimento do valor da capitação. Embora os modelos de capitação geralmente incluam ajuste de risco, ajustar com precisão para a maior complexidade e gravidade dos casos que são tratados pelos hospitais universitários pode ser difícil. Um ajustamento inadequado dos riscos da população servida pode resultar em perdas financeiras e desafios operacionais.5) riscos de instabilidade financeira, pois a capitação exige que as ULS façam a gestão dentro de orçamentos fixos, o que pode ser particularmente arriscado para as ULS com hospitais universitários devido ao seu duplo foco em cuidados de elevada diferenciação e educação
  7. Por outro lado, existem vantagens estratégicas em termos de controle de custos, eficiência e qualidade assistencial: 1) o financiamento por capitação permite, em princípio, um orçamento mais previsível e estável, tanto para o Estado quanto para a ULS (embora esta maior segurança orçamental possa ser subvertida se a regra de capitação resultar de uma posição relativa face a um valor global de orçamento arbitrário, em vez de um valor absoluto de despesa adequado ao movimento assistencial para a população coberta). 2) incentivos à eficiência: o pagamento fixo per capita incentiva as ULS a controlar custos, evitando exames e procedimentos desnecessários. Tal pode conduzir a uma utilização mais eficiente dos recursos e a uma redução das despesas gerais com cuidados de saúde. 3) como o pagamento da capitação não está ligado ao número de serviços prestados, as ULSU têm um incentivo financeiro para investir em prevenção e estratégias de promoção da saúde. O financiamento por capitação fomenta uma abordagem de saúde da população, incentivando a considerar os resultados de saúde da população. 4) o financiamento por capitação desencoraja o uso excessivo de testes de diagnóstico, procedimentos e outros serviços que podem não ter valor terapêutico suficiente e assim reduzir as despesas de saúde desnecessárias. 5) o financiamento por capitação incentiva as ULSU a adotarem uma abordagem mais integrada e baseada em equipas multidisciplinares para o atendimento. Isto pode levar a uma melhor coordenação entre várias especialidades e serviços, melhorando os resultados dos doentes e a qualidade geral dos cuidados, enquanto está associada a menor despesa.6) os pagamentos por capitação dão às ULSU mais flexibilidade na forma como usam os seus recursos do que modelos de pagamento baseados em processos ou atividade. Tal pode incentivar a adoção de práticas assistenciais inovadoras, como serviços de telessaúde ou equipas multidisciplinares. 7) uma vez que o benefício financeiro sob capitação vem de manter a população saudável e não do volume de serviços prestados, as ULSU são incentivadas a dar mais atenção em alcançar melhores resultados de saúde e maior satisfação do paciente – a lógica dos cuidados de saúde baseados no valor (value-based health care).
  8. Optar por integrar verticalmente um hospital universitário com unidades de cuidados primários na mesma área de abrangência implica ponderar os potenciais benefícios face aos desafios e riscos.
  9. A integração vertical em ULSU, para resultar, deverá satisfazer várias condições: a) estrutura de governação clara – deverá ter um modelo de governação interno que inclua a representação tanto do hospital universitário quanto das unidades de cuidados de saúde primários, com mecanismos que mitiguem a tendência para a predominância da visão hospitalar. Deverá ser criada uma missão e uma visão partilhadas que integrem os objetivos académicos, de investigação, e clínicos do hospital universitário com os objetivos orientados para a comunidade das unidades de cuidados de saúde primários. 2) Deverá ser clara a divisão orçamental entre atividades hospitalares correntes, atividades de ensino e investigação, e atividades de cuidados de saúde primários, a fim de identificar, e corrigir,  desequilíbrios de recursos e assegurar que cada área de atividade recebe financiamento adequado (eventualmente de fonte diferente, no caso das atividades de ensino e investigação); 3) Deverá existir clareza quanto à forma de tratar o risco financeiro, no contexto de financiamento por capitação, das ULSU, nomeadamente o que sucede se a verba atribuída for insuficiente face à despesa efetiva da ULSU. 4) deverá ser preservada a integridade acadêmica e de investigação científica, sustentando um quadro global de apoio à inovação (na investigação produzida e no ensino ministrado). 5) Aplicação de programas de gestão da mudança e formação de pessoal para criar uma cultura unificada (juntando três culturas numa mesma entidade: académica, hospitalar e de cuidados de saúde primários).
  10. Da discussão realizada durante a audição, foi dado o exemplo de remunerações bastante assimétricas entre profissionais de saúde do meio hospitalar e do meio académico e profissionais de saúde nos cuidados de saúde primários como exacerbando choques de cultura organizacional entre os vários grupos. No caso das ULSU, a existência dos profissionais em meio académico é uma fonte adicional de tensão a necessitar de acompanhamento, bem como eventuais assimetrias crescentes dentro das diferentes unidades, e das ULSU versus ULS. Aqui, a medida de assimetria deverá calculada com base no valor médio mensal depositado na conta bancária de cada profissional de saúde. A medida mais simples será o rácio S90/S10, em que S90 é o valor do percentil 90% nos valores de remuneração e S10 é o valor do percentil 10% nos valores de remuneração. Apenas as instituições possuem a capacidade de cálculo deste indicador de assimetria.
  11. Na definição dos pagamentos por capitação ajustada, face ao receio que a capitação ajustada não refletir ainda todos os custos diferenciais justificáveis associados às ULSU, será de considerar a possibilidade de um fundo de compensação ex-post, com regras definidas de forma a manter incentivos à eficiência e desincentivo à seleção dos doentes com menores custos. Tanto ULSU como ULS deverão fazer parte deste fundo de compensação, em que unidades com uma composição de doentes menos complexos contribuem em termos líquidos e unidades com doentes mais complexos recebem, sendo as contribuições calibradas pela eficiência de cada ULS. Para uma descrição de regras de cálculo possíveis, sugere-se a consulta de Pedro Pita Barros, Cream-skimming, incentives for efficiency and payment system, Journal of Health Economics, Volume 22, Issue 3, 2003, pages 419-443. Um exemplo de aplicação a um sistema de saúde é a Cuenta de Alto Costo (https://cuentadealtocosto.org), criada na Colômbia.
  12. Quanto à questão (colocada) de existência de fundo especifico para medicamentos inovadores, a experiência internacional de fundos específicos, nomeadamente no Reino Unido, sugere que não é uma alternativa interessante aos procedimentos atualmente em vigor em Portugal, sendo que no caso nacional será de contemplar uma intervenção mais ativa das ULSU na definição de preços e acordos de entrada no mercado de novos medicamentos, em cooperação com o Infarmed.
  13. Quanto à questão (colocada na audiência) de ajustamento para custos definidos com informação deferida, não é um aspeto específico das ULSU, e poderá seguir mecanismos automáticos de correção posterior (já usados oficialmente noutros contextos de definição de pagamentos em sistemas regulados).
  14. Quanto à questão (colocada na audiência) de pagamentos adicionais dirigidos a aspetos específicos, definidos de forma ad-hoc, não deverão ser uma regularidade na definição do financiamento das ULSU (ou de qualquer ULS) pelos efeitos de incentivos, contrários à procura de eficiência, que criam.
  15. Quanto à questão (colocada na audiência) de como medir o benefício do ensino e da investigação científica, não é claro em que medida essa informação deverá fazer parte do sistema de financiamento, por um lado. Por outro lado, se garantir esse benefício for um objetivo, então deverá procurar-se a melhor forma de o alcançar, o que dispensa a sua medição exata em termos de comparação das alternativas. 
  16. Quanto à questão (colocada na audiência) de como financiar as atividades associadas à formação pré-graduada, graduada e investigação, estas deverão ser financiadas por fórmulas próprias, depois de uma adequada valorização. Não deverão ser valores incluídos na capitação associada com as necessidades de cuidados de saúde da população abrangida pela ULSU.
  17. Quanto à questão (colocada na audiência) da relevância de uma carreira integrada com profissionais dedicados quer ao trabalho assistencial quer ao trabalho académico, sem prejuízo de opinião baseada em estudo adicional, considero ser adequado procurar-se a solução que oferecer maior flexibilidade quer às ULSU quer às Universidades, através de acordos bilaterais que sejam estabelecidos em termos de emprego. A existência de reconhecimento de competências específicas associadas a esta carreira integrada deverá ser independente dos vínculos laborais.
  18. Quanto à questão (colocada na audiência) de concorrência (na escolha do cidadão) entre unidades do SNS financiadas por capitação e unidades do SNS financiadas por produção que servem a mesma população, numa primeira abordagem, é, a meu ver, tratável numa lógica de preços internos do SNS (“Money follows the patient”), embora mereça reflexão adicional antes de uma posição definitiva.
  19. Globalmente, as características adicionais de uma ULSU face a uma ULS estão ligadas aos dois aspetos de integração vertical e de financiamento por capitação. O financiamento por capitação é sobretudo um problema técnico de definição do valor adequado, não um problema conceptual.
  20. Se o SNS não tiver a capacidade técnica de realizar os cálculos apropriados, o financiamento por capitação pode funcionar contra a ideia de ULSU. Se o financiamento por capitação não for credível nas suas implicações financeiras, então será essencialmente irrelevante para a discussão entre haver ou não ULSU. A complexidade adicional da estrutura vertical com ensino universitário tem de ser contrastada com os benefícios de coordenação entre níveis de cuidados de saúde através de elementos organizacionais. 
  21. Se houver uma atenção adequada à gestão da mudança, à conciliação das diferentes culturas existentes, e ao equilíbrio entre hospital universitário e cuidados de saúde primários em termos de poder de decisão, a integração em ULSU poderá ser preferível a manter as entidades em separado.
  22. Numa lógica global do SNS, será preferível a manutenção das ULSU face à alternativa de fragmentação de modelos organizativos dentro do SNS, com mecanismos distintos de financiamento para cada tipo de unidade.


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Saúde mental e bem-estar: comentário ao Stada Health Report 2024

Tive a oportunidade de estar no painel “A saúde mental dos portugueses numa Europa digital”, na conferência de apresentação do Stada Health Report de 2024, onde a conversa andou pelos resultados do inquérito da Stada na parte reference à saúde mental. Como o tempo de conversa em painel é inevitavelmente curto, face a alguns resultados do inquérito decidi passar a escrito as impressões resultantes da preparação da sessão. 

1 O Stada Health Report 2024 e saúde mental 

Stada Health Report 2024 tem uma especial atenção, na parte referente a Portugal, às questões de saúde mental e o bem-estar dos portugueses. O documento apresentado introduz números e pontos de interesse diversos. 

Os números centrais, no que a esta parte diz respeito, são claros. Enquanto 63% dos portugueses classificam a sua saúde mental como boa ou muito boa, a solidão continua a ser um problema significativo, afetando 49% dos portugueses (ainda assim menos que os 52% dos europeus inquiridos no seu conjunto). As gerações mais jovens, apesar de estarem mais ligadas digitalmente, relatam níveis mais elevados de solidão, muitas vezes ligados ao tempo excessivo gasto nas redes sociais digitais. O relatório apela à conciliação entre a vida profissional e a vida privada, que contribui para a solidão e os desafios de saúde mental, particularmente entre os mais jovens.

Estes resultados são plausíveis pela metodologia usada, pelo que contribuem para o nosso conhecimento sobre a saúde mental e o bem-estar, que passaram a receber muito mais atenção depois do choque da Covid-19. A situação já existia, em grande medida, e simplesmente não recebia grande atenção. O relatório Stada 2024 gera mais perguntas, e sugere que retomemos discussões recentes, na procura de soluções para problemas que surgem como quantitativamente relevantes.

Um paradoxo nos números?

Serão os portugueses uns “solitários felizes”, como quase se pode inferir do titulo “A geração mais nova aparenta ser a mais feliz, mas com um maior sentimento de solidão”, ou há algo mais para explorar? Para saber mais, será interessante olhar para as respostas, e ver se os mais felizes indicam mais ou menos solidão.

A mesma ideia de cruzamento de respostas dará certamente indicações importantes quando se confrontar os motivos de solidão com a idade. A minha conjetura é a perda recente de conjuge, familiar ou amigo ser importante na geração mais velha, e o trabalho a partir de casa ser relevante sobre para as pessoas em idade activa e as mais jovens dentro destas. Também é fácil prever que as soluções para a solidão variam consoante o motivo subjacente. 

Por que discutir a saúde mental e o bem-estar?

Portugal, à semelhança de muitos outros países europeus, está a assistir a uma mudança na forma como a saúde mental é percecionada e gerida. De acordo com o STADA Health Report para Portugal, 63% dos inquiridos portugueses consideram a sua saúde mental boa ou muito boa, um valor que reflete uma sensação moderada de bem-estar mental na população e 62% referiu sentir-se feliz. Apesar dos valores serem muito parecidos, bem-estar e saúde mental são conceitos diferentes, e traduzem realidads distintas ainda que relacionadas.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde mental como um estado de bem-estar que permite às pessoas lidar com o stress, trabalhar produtivamente e contribuir para a comunidade. Não é a simples ausência de doença.

O bem-estar mental refere-se a um estado positivo de saúde emocional, psicológica e social, caracterizado por um sentimento de felicidade, resiliência, equilibrio emocional e capacidade de lidar eficazmente com os desafios da vida. Engloba emoções positivas, um senso de propósito e a capacidade de se envolver em relacionamentos e atividades gratificantes.

A preocupação com a saúde mental acaba por frequentemente  centrar-se no diagnóstico e tratamento de doenças ou distúrbios mentais. Tende a concentrar-se na doença mental, visando prevenir, gerir ou tratar. O bem-estar mental é um conceito mais amplo e positivo. Inclui medidas preventivas, fomentando a resiliência e promovendo o desenvolvimento emocional e psicológico. Enquanto a saúde mental se concentra no tratamento, o bem-estar mental envolve a criação de um estado contínuo de felicidade e satisfação com a vida. O relatório STADA acaba por focar em aspectos de bem-estar mental, como aspectos de nutrição e exercício fisico, e menos na saúde mental/doença mental.

Dado o crescente foco no equilíbrio entre vida profissional e pessoal e na prevenção do burnout, a promoção do bem-estar mental alinha-se bem com estes objetivos, promovendo uma força de trabalho mais saudável e produtiva. 

Em resumo, o STADA Health Report oferece uma imagem do bem-estar na população a necessitar de clarificação, com maior exploração dos dados recolhidos, onde muitos se envolvem em comportamentos saudáveis e relatam felicidade, mas questões como solidão e burnout prejudicam o bem-estar mental mais amplo. Isto sugere que, embora a população esteja consciente e valorize a saúde pessoal, existem desafios subjacentes que precisam de ser abordados para melhorar o bem-estar geral.

A falta de motivação e de tempo foram as principais razões apontadas pelos portugueses para negligenciarem o seu bem-estar. Ainda assim, há 89% dos portugueses inquiridos que revelam dedicar-se a exercício físico e a manter uma alimentação saudável para cuidar da saúde.

Revela-se uma vez mais a necessidade de encontrar um melhor equilíbrio entre a vida profissional e pessoal. A pressão no trabalho foi citada por muitos como um fator que contribui para a solidão.

A solidão inesperada

Um dos números chave do relatório indica que, 63% dos inquiridos portugueses classificaram a sua saúde mental como boa ou muito boa, mas a solidão continua a ser um problema significativo. Portugal, tal como o resto da Europa, tem um problema com a solidão, com as gerações mais jovens a sentirem-se mais solitárias, apesar dos níveis de felicidade mais elevados. Como referido antes, estes dois elementos poderão refletir uma polarização grande no nível de bem-estar, com causas diferentes. Ainda assim, os valores elevados sugerem uma necessidade de confirmação no futuro. 

Redes sociais: o mundo digital não substitui o mundo fisico

A era digital, caracterizada pela presença online constante, redefiniu as interações sociais. Ao mesmo tempo que permite a conectividade, também pode alienar indivíduos, particularmente as gerações mais jovens, que relatam níveis mais elevados de solidão, apesar de serem mais ativos digitalmente. Em Portugal, a geração mais jovem parece ser particularmente vulnerável, com muitos a sentirem que o tempo excessivo passado nas redes sociais contribui para a sua solidão. Este resultado em si parece a confirmação de impressões que se vão tendo, e precisamente por isso será interessante que o inquérito explore um pouco mais em detalhe, e até em comparação com outros países. Será resultado de um pequeno número de respostas mais fortes, ou uma variação média global?

O local de trabalho e o papel das organizações

A saúde mental no local de trabalho deve ser abordada como uma questão organizacional, e não apenas individual, e na perspectiva mais ampla de bem-estar. Ou seja, há a necessidade de as diversas entidades que têm trabalhadores, incluindo naturalmente as empresas, abordarem proativamente os riscos no ambiente de trabalho para o bem-estar e para a saúde mental. 

O relatório EXPH[1], de 2021, de salienta que as condições do local de trabalho têm um impacto direto na saúde mental dos trabalhadores, e a saúde mental deve ser integrada nas políticas de saúde e segurança no trabalho. Embora o relatório foque nos trabalhadores de unidades de saúde, os princípios apresentados são, na verdade, mais gerais. Ao colocar-se a saúde mental e o bem-estar como uma questão organizacional, a opinião expressa pelo painel EXPH implica mudanças significativas na forma de dar resposta aos desafios da saúde e bem-estar mentais, incluindo um maior envolvimento da liderança das organizações e das políticas no local de trabalho para a promoção um ambiente propício ao bem-estar mental. 

Esta mudança de perspectiva exige que as organizações avaliem e melhorem fatores como a carga de trabalho imposta, cultura do local de trabalho, e sistemas de apoio aos trabalhadores. Ao criar ambientes que apoiam o bem-estar mental, as organizações, por promoverem uma força de trabalho mais saudável e produtiva, acabam por recolher benefícios económicos significativos, como menor rotação de trabalhadores, menos baixas médicas e melhor desempenho.

Várias propostas do Relatório EXPH podem ser aplicadas no contexto do Relatório STADA Saúde, particularmente no que diz respeito à saúde mental e ao bem-estar mental no local de trabalho e à conciliação entre a vida profissional e a vida familiar. 

O relatório STADA alinha-se com as preocupações e propostas surgidas em diversos relatórios da Comissão Europeia, nomeadamente no esforço para se conseguirem ambientes de trabalho amigos do bem-estar mental. No ambiente de trabalho, as organizações podem definir e aplicar políticas para reduzir as elevadas cargas de trabalho e permitir uma maior flexibilidade nos horários para mitigar o stress e melhorar o bem-estar mental.

Os resultados reforçam ainda a necessidade de programas de formação, até junto de dirigentes, que aumentem a sensibilização para o bem-estar mental e para a saúde mental no local de trabalho. Ao treinar gestores e funcionários no reconhecimento precoce de problemas de bem-estar mental e de saúde mental, as organizações podem apoiar melhor seus trabalhadores, reduzir o estigma em torno da saúde mental e incentivar a intervenção precoce.

Cuidados metodológicos na leitura dos resultados do inquérito

Neste tipo de inquéritos, é preciso ter em atenção que a interpretação feita por quem responde das perguntas pode levar a uma avaliação relativa face às expectativas (o que quem responde esperava/gostava que fosse a realidade). Não temos qualquer informação sobre o ponto de referência.

A solidão auto-reportada na resposta à pergunta feita no inquérito poderá ser diferente das medidas de solidão construidas com base em experiências (também auto-reportadas) das pessoas em várias dimensões, o que poderá influenciar comparações com outros estudos.

Certamente que outras pessoas terão outras observações, e potenciais explicações para os resultados. Ao debater estes resultados vai-se construindo um conhecimento comum, útil para perceber a realidade em dimensões menos conhecidas em geral, e para definir que mais precisamos de saber nestas áreas.


[1] Expert Panel on effective ways of investing in Health (EXPH), Supporting mental health

of health workforce and other essential workers, 2021, https://health.ec.europa.eu/document/download/d8878481-11d9-46fe-b46d-ae3b1eae5513_en


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Da semana passada: Learning by doing com o ChatGPT

Em dois artigos recentes, Luis Aguiar-Conraria (Learning by doing, Expresso, 20 de setembro de 2024) e Paulo Trigo Pereira (Ensaios escritos pelo ChatGPT, Observador, 22 de setembro de 2024) falaram sobre o uso de instrumento de inteligência artificial (IA) por parte dos alunos no ensino superior. Ambos falam do ChatGPT, e existem outras ferramentas de IA que podem ser usadas (há uma que vai gerando parágrafo a parágrafo o texto de um trabalho científico que se queira fazer, por exemplo; outra, ajuda a encontrar referências bibliográficas ligadas a um tema que se escolha ou uma referência que se dê inicialmente; outra ainda, ajuda a sumariar textos científicos fornecidos em formato pdf, com mais precisão do que o ChatGPT). E estou certo que muitas mais vão surgir.

Quer para o Luís Aguiar-Conraria quer para o Paulo Trigo Pereira, a questão não é se os alunos vão usar estas ferramentas – vão, e já usam; e sim como as devemos usar no ensino (universitário, no caso). Tenho total concordância com essa posição, é inevitável que sejam usadas, e em versões sucessivamente mais sofisticadas. O verdadeiro desafio é descobrir como as usar da melhor forma no processo de ensino.

E para isso, experimentar, como ambos referem, é o elemento central, sendo que será muito cedo ainda para sabermos o que será a estabilização na utilização destas ferramentas (como foi no passado o uso da calculadora, do computador e da calculadora científica). 

Tal como em muitos avanços tecnológicos nas mais diversas áreas vamos ter três grandes tipos de mudança:

1) haverá tarefas que serão mais facilmente e mais precisamente feitas por estas ferramentas – não valerá a pena pedir aos alunos que vão ler textos completos nas revistas e livros das bibliotecas universitárias. Esses recursos vão passar a estar disponíveis de outra forma. Não dispensará de ler a fundo os textos que venham a ser cruciais para compreender uma matéria, mas muitos outros serão abreviados. Ganha-se tempo e conveniência.

2) haverá tarefas que passarão a ser realizadas de outra forma – a elaboração de trabalhos passará a ser feita de forma diferente, e como tal a forma de ajudar os alunos nesse processo e depois os avaliar também terá de ser diferente. Provavelmente, dando menor peso ao que vem escrito e mais atenção à discussão que os alunos façam. O que poderá trazer uma evolução curiosa de regresso à oralidade com presença física em vez de leitura de documentos escritos.

3) será possível pedir e realizar trabalhos com estas ferramentas que não era possível pedir antes. Por exemplo, em termos de análises estatísticas, a utilização destas ferramentas como “mentores” e “construtores de código” pode acelerar o seu uso e sofisticação. A sua utilização para garantir que todos os elementos essenciais são cobertos nos trabalhos. Reparo que não estou ainda a ter imaginação suficiente para o que possa ser feito de totalmente de novo neste campo. Haverá certamente ideias novas, associadas até a novas competências, que irão emergir. 

Assim, embora a nossa atenção ainda esteja muito centrada no que vai ser substituído nos processos atuais – e nas avaliações dos elementos habituais, como trabalhos e exames, a parte mais interessante será o que muda. O exemplo de discussão em aula, dado pelo Paulo Trigo Pereira, à volta duma primeira consulta junto do ChatGPT de um conceito é um bom início. Há outras possibilidades: em lugar de dar mais bibliografia para ser lida sobre um tópico, dar dois ou três possibilidades de perguntas a fazer ao ChatGPT (ou outra ferramenta desse tipo), e a partir das respostas os alunos podem partir para a exploração individual, em formato de diálogo. Claro que nalgum momento terá de haver um confronto do resultado desse diálogo com o conhecimento consolidado. Estou certo de que até isso levará a que apareçam ferramentas que o fazem.

Das experiências que tenho feito, a conclusão é simples: de momento, estas ferramentas são mais úteis no processo criativo, incluindo no feedback a dar aos alunos, do que na substituição dos mecanismos de avaliação, como correção de exames ou trabalhos. Até se poderá conseguir usá-las de forma a reduzir o tempo e o trabalho associado com a classificação dos alunos. Só que não será a utilização mais interessante das potencialidades da IA. 

Escrever sobre IA não pode terminar sem se perguntar ao próprio ChatGPT onde poderá ser útil no ensino. Deixo aqui os tópicos sugeridos: AI-Powered Personalized Learning Platforms, Automated Grading Systems, AI-Driven Peer Review and Collaboration Tools, Intelligent Tutoring Systems, AI-Powered Classroom Management, Natural Language Processing (NLP) for Real-Time Feedback, Virtual Classrooms with AI-Enhanced Discussion, AI for Accessibility, Predictive Analytics for Student Success, Gamified Learning with AI, AI-Driven Simulations and Virtual Labs, Lifelong Learning and Upskilling, AI in Curriculum Design.

Repararam certamente que os coloquei em inglês. Fi-lo por uma razão simples, estas ferramentas são muito melhores em inglês do que em português (algo que o Paulo Trigo Pereira também referiu), o que poderá colocar em vantagem quem se sentir mais à vontade a trabalhar em inglês (ou nas línguas em que haja maior “material de treino” para a IA). Também as diferenças entre homens e mulheres no mercado de trabalho poderão ser influenciadas pelas diferenças de utilização destas ferramentes que possam ter. Deixo como sugestão de leitura, este texto, de João Pedro Pereira, sugerido pela Céu Mateus, pelo que tem de implicações para a forma como se desenvolve e promove o seu uso no ensino.

Do conhecimento passado sobre novas tecnologias, sabemos que há sempre um período inicial de muitas direções tentadas. Nem todas terão sucesso. Não conseguimos é em geral perceber à partida quais serão as melhores. Estamos nessa fase de levantar poeira.A pergunta a que vamos ter necessariamente de responder é: Como podemos aproveitar essas ferramentas para melhorar o ensino, sendo a própria noção de ensino poderá mudar? 


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Lançamento do Nova SBE Institute of Public Policy e duas perguntas

DoI: trabalho na Nova SBE. Este post não é publicidade institucional.

Decorreu na passada sexta-feira, 20 de setembro, o lançamento do Nova SBE Public Policy Institute. Quem quiser saber mais detalhes pode consultar o link.

Na sessão de lançamento, houve duas perguntas que me foram dirigidas e às quais não houve tempo de dar resposta. Conforme prometido, venho dar aqui as respostas curtas (qualquer das perguntas merece uma resposta mais longa e detalhada):

  1. Is there any major incentive misalignment in the Portuguese healthcare system?
  2. Can Public Policy foster economic growth via exports of Healthcare, CRO, Biopharma and Med Tech?

Para a primeira pergunta, Is there any major incentive misalignment in the Portuguese healthcare system?, a resposta é sim, existem vários problemas de desalinhamento de incentivos. E é possível dar exemplos desde elementos micro até elementos macro. Para dar dois destaques, um de natureza mais micro e outro de natureza mais macro, escolho, na parte micro, os incentivos internos às Unidades Locais de Saúde, na ligação entre cuidados de saúde primários e hospitais. Na parte macro, o desalinhamento de incentivos mais relevante está em as Unidades Locais de Saúde (tal como os hospitais antes delas) terem em geral mais preocupação com o que a “tutela” do que com a satisfação dos utentes (ainda que a retórica oficial diga o contrário, a prática é suficientemente clara). Há muitos outros exemplos, seja no sector público, seja no privado (com ou sem fins lucrativos), seja na ligação entre os dois.

para a segunda pergunta, “Can Public Policy foster economic growth via exports of Healthcare, CRO, Biopharma and Med Tech?”. Também aqui a resposta é sim, mas não as políticas públicas na área da saúde. São as políticas públicas da área da economia, o que dantes se chamava política industrial, que deverão ter essa missão. Não faz, a meu ver, muito sentido distorcer o funcionamento do sistema de saúde, em particular o SNS, para promover o desenvolvimento de empresas. Adicionalmente, a dimensão do sistema de saúde português dificilmente será suficiente para o desenvolvimento sustentado de empresas. A dimensão nacional é demasiado pequena para garantir essa sustentabilidade de negócios. Dito isto, há possibilidades mutuamente vantajosas de usar o sistema de saúde português, SNS incluído, para encontrar oportunidades de inovação, e de testar soluções, envolvendo as unidades de saúde, as empresas, e as universidades e centros de investigação. Para dar uma resposta mais completa recorro a um post com mais de três anos (de 21.07.2021), onde detalho um pouco mais como penso que se poderia atuar neste sentido:

“A sugestão é pensar na relação das entidades do SNS com os seus fornecedores de um modo que ajude à identificação de oportunidades de inovação, que começando localmente possam, algumas pelo menos, alcançar escala internacional. Tal poderá suceder na prestação direta de serviços à população, mas será muito mais provável que ocorra na criação ou aperfeiçoamento de bens e serviços utilizados por prestadores de cuidados de saúde (públicos ou privados). Por exemplo, um hospital ao identificar uma necessidade específica tem de ter disponíveis os mecanismos formais e de apoio que lhe permitam estabelecer uma relação com um ecossistema de inovação de base local ou próxima (universidades/centros de investigação) para encontrar uma solução para o problema encontrado. O desenvolvimento, inicialmente na esfera local, dessa solução poderá depois, através de instrumentos de política industrial, receber as condições necessárias para ganhar escala e operar no mercado internacional (vender a outros prestadores, públicos ou privados, de outros países essa mesma solução).  

O principal contributo do Serviço Nacional de Saúde está na identificação e eventual exploração de oportunidades de inovação e não no fornecimento de escala de longo prazo (que é limitada pela dimensão do país) ou na criação de “mercado protegido” (que seria prejudicial ser for uma estratégia seguida por todos os países). 

Partindo deste princípio genérico, o passo seguinte é a definição de medidas concretas que permitam às entidades do SNS ter este papel. Sem preocupação de exaustividade, sugerem-se para discussão as seguintes propostas: 

Usar os processos de contratação pública (e privada) para desenvolver inovação. A natureza particular dos bens e serviços de saúde criam barreiras específicas, entre elas a informação sobre as necessidades que possam ser inspiradoras de inovação e a estabilidade de decisões de aquisição (para permitir o tempo de realizar a inovação). Os processos de contratação e aquisição de bens e serviços deverão ser conhecidos, regulares (estabilidade no tempo) e serem claros nas dimensões de inovação que permitem (não serem apenas determinados pelo preço mais baixo). A existência de plataformas de diálogo local sobre a evolução das necessidades sentidas pelos prestadores de cuidados de saúde e sobre as capacidades existentes nas empresas e nos centros de inovação será um elemento facilitador importante. A definição dos termos de contratação ou de aquisição de bens e serviços deverá ter em conta estes diálogos, sem criarem mercados protegidos. As parcerias para a inovação entre prestadores de cuidados de saúde do SNS, empresas e universidades/centros de investigação poderá ser facilitada pela disponibilização de minutas de contratos tipo de parceria que reduzam os custos da sua elaboração (estes contratos tipo devem ser facilmente monitorizáveis e procederem a uma divisão dos ganhos de inovação que ocorram, não sendo obrigatória a sua utilização). Mais ainda, a utilização das compras públicas poderá ser utilizada para fomentar inovação sustentável do ponto de vista ambiental, alinhando assim com mais do que um dos objetivos definidos no Regulamento do Mecanismo de Recuperação e Resiliência.

Criação de apoio à formação de profissionais de saúde em investigação e desenvolvimento, tecnologia, evolução digital e empreendedorismo, na ótica de fornecer os conhecimentos necessários para a identificação de oportunidades, por um lado, e para uma adequada gestão das relações de parceria, por outro lado. Idealmente, deverá utilizar-se uma entidade existente para organizar esta iniciativa, sendo avaliada pelos resultados produzidos em termos de parcerias de inovação realizadas a três anos envolvendo profissionais que tenham participado nestas ações. 

Promoção de exercício anual de “horizon scanning” e elaboração de cenários a médio e longo prazo (prospetiva) para a prestação de cuidados de saúde a nível global, divulgados dentro do sistema de saúde português, como serviço público de informação sobre a qual ideias possam ser desenvolvidas. Por exemplo, um primeiro exercício poderá ser sobre o papel da inteligência artificial na prestação futura de cuidados de saúde (promessas, becos-sem-saída, áreas desconhecidas, etc.). 

Definir mecanismos que facilitem a inovação para aplicações na área da saúde por parte de sectores tradicionais da economia portuguesa (por exemplo, mobiliário). 

Criar formas de divulgação e programas de apoio que vençam barreiras iniciais para levar a que inovações desenvolvidas no âmbito da saúde possam ter aplicações noutras áreas.  

Colocando a inovação no centro da relação do SNS com a atividade empresarial torna-se relevante conhecer como atualmente se caracterizam os vários potenciais intervenientes. Em particular, saber como as diferentes entidades do SNS pensam, se é que pensam, nas suas necessidades que requeiram elementos de inovação; saber como as universidades, centros de investigação, centros de incubação de novas empresas e empresas encaram estas relações; saber como as entidades públicas de apoio à inovação olham para a adequação dos instrumentos que disponibilizam, etc.

No que respeita à capacidade das unidades do SNS terem este papel adicional à sua atividade assistencial, é necessário ter em mente que não há nem investigação nem inovação sem um corpo clínico altamente diferenciado e motivado. É necessário um programa de retenção e atração destes profissionais, pela possibilidade de meios e tempo para investigar e inovar. Como instrumento complementar aos investimentos que sejam realizados, é essencial criar os enquadramentos (legais e funcionais) para esta investigação tenha lugar. Sugere-se a criação de mecanismos que permitam sequências de carreiras profissionais com períodos passados em universidades e em unidades de saúde, sem que haja necessidade do profissional de saúde ter que permanentemente negociar com cada um dos lados (universidade e/ou unidade de saúde) a sua situação.”