Hesitei muito sobre se deveria escrever a propósito das declarações de António Borges. Primeiro, porque as sensações imediatas são mais emoções que razão; segundo, porque entretanto toda (ou quase toda) a gente decidiu falar e emitir a sua opinião sobre o assunto. Passados alguns dias, talvez se consiga olhar para o que foi dito com mais calma.
Sobre a dimensão política das afirmações, não me pronuncio. Aliás, essa dimensão foi já suficientemente explorada, tal como a dimensão de estratégia de comunicação. Só achei estranho que nenhum comentador tivesse pedido para ver os exames do curso que António Borges dá, só para tirar as dúvidas do que é suposto os seus alunos saberem.
Interessa-me olhar para a dimensão económica subjacente, até porque como bem notou Marcelo Rebelo de Sousa vai de encontro ao que o próprio primeiro-ministro disse, embora de forma menos agressiva, e que revela (?) o pensamento económico que lhe possa estar subjacente.
Em termos de teoria económica, na representação mais simples de uma economia, em situações de concorrência, a produtividade dos trabalhadores (na última unidade produzida) é o elemento determinante do salário real. Ou, outra forma de o dizer, o valor da produtividade iguala o salário. Se a produtividade aumenta menos do que os salários nominais e os preços dos produtos vendidos não acompanham, cria-se um desfazamento que em termos económicos mais cedo ou mais tarde tem de ser corrigido – ou a empresa desaparece, ou baixa salários, ou aumenta produtividade, admitindo que em termos de preços a empresa tem que acompanhar a concorrência (especialmente verdade no caso das empresas exportadoras, que para a mesma qualidade de produto, em geral, não podem praticar preços muito mais elevados que a sua concorrência).
Do ponto de vista das empresas, o salário relevante neste contexto é o salário acrescido de todas contribuições envolvidas, que é por isso diferente do salário liquido recebido pelos trabalhadores (em que para além das contribuições pagas directamente pelo empregador, ainda têm que pagar a sua parte da contribuição para a segurança social e ver retido a componente de imposto sobre o rendimento).
Uma das implicações mais antigas da teoria económica é que esta diferença entre salário liquido e salário bruto é inibidora de contratações que seriam mutuamente vantajosas para trabalhador e empresa. Uma das distorções no mercado de trabalho, destruidora de emprego, é esta diferença. No caso da medida proposta pelo primeiro-ministro, e defendida por António Borges, esta distorção aumentava, pelo que não pode ser este o motivo de defesa da medida. Também não foi este o argumento invocado contra a proposta por quem se mostrou contra. Note-se que uma descida da TSU do empregador, financiada de outra forma, levaria a uma redução desta distorção. O aumento só surge porque a contribuição do trabalhador aumenta mais do que a redução da contribuição do empregador. O argumento contra esta distorção é o de que actualmente não é por ter salário maior ou menor que as pessoas aceitam um novo emprego ou manter o que já têm. Na actual conjuntura, até pode ser verdade, mas medidas desta natureza para promover o emprego não se espera que tenham resultados a três meses, por isso o prazo relevante de discussão é mesmo o médio prazo, onde a distorção se fará sentir.
Sendo assim, é necessário procurar outras explicações.
Do lado de António Borges, e juntando com declarações de outros defensores da proposta apresentada, as principais vantagens da medida eram a) baixar salários de forma generalizada; b) permitir um aliviar de tesouraria às empresas, substituindo-se esta medida à actuação do sector bancário no proporcionar de liquidez às empresas com maiores dificuldades nesse campo.
Sobre a importância de baixar salários dedicarei outro texto, mas é de notar que nada impedia que os salários fossem aumentados aos trabalhadores pelas empresas que estivessem em condições de o fazer, e que até o poderiam fazer aumentando apenas aqueles trabalhadores que considerassem merecedores, e nos restantes “aceitariam” a imposição de decréscimo salarial. Neste sentido, surge até como uma medida de flexibilidade salarial, e não apenas de decréscimo salarial. Os empregadores poderiam gerir da forma que considerassem adequada a folga gerada pela redução da TSU a seu cargo, mesmo que em termos totais viesse a ocorrer uma maior distorção.
O elemento aparentemente não previsto neste argumento é a reacção emocional e de justiça percepcionada face à medida que faz passar directamente dinheiro do bolso dos trabalhadores, em que já sofreram aumentos de impostos e nalguns casos reduções salariais impostas pelas empresas, em pequenas e médias empresas, para os empregadores, que poderão aplicar essa transferência a salvar a empresa ou simplesmente aumentar os seus rendimentos próprios.
Mas também falhou perceber melhor o lado das empresas.
Do lado dos empregadores, a principal motivação da reacção adversa esteve associada com a motivação dos trabalhadores face a esta medida e as consequências que a mesma pudesse ter. Este argumento não está presente na descrição teórica simples que apresentei inicialmente. O desenvolvimento desse tipo de argumentação está contudo presente na teoria económica, na chamada teoria dos salários de eficiência (o leitor interessado pode ver aqui um resumo e uma visão crítica aqui, mas também existem outros motivos para os empregadores não quererem baixar salários, que em geral estão associados com a ideia de relação de longo prazo com trabalhadores como forma de motivação e promoção da produtividade; um tratamento dos vários motivos pode ser visto aqui). A resistência dos empregadores a baixar salários não resulta apenas e unicamente de aspectos redistributivos, ou sequer de “visões marxistas” da economia. Este aspecto é crucial para perceber a divergência de opiniões entre uma proposta que se julgava “amiga” das empresas e a resposta destas.
A julgar pelas reacções observadas, o factor de perturbação dentro das empresas criado pela redução salarial associada com a proposta apresentada pelo primeiro-ministro teve mais peso que o alivio financeiro proporcionado pela medida. Esse diferente peso também revela que os empregadores dão maior peso ao longo prazo, em que essa perturbação laboral terá mais consequências para a empresa, do que dão ao curto prazo (ou ao futuro imediato), em que certamente o alivio financeiro seria bem vindo.
Não sendo eu especialista no mercado de trabalho, é desejável que outros refinem aspectos da análise acima (mas também não quis escrever um paper científico!), pois há outras características do mercado de trabalho que podem ter relevância, como os processos de negociação salarial, contratação colectiva, etc.
De qualquer modo, é bom saber que os alunos do primeiro ano de António Borges são capazes de articular modelos de determinação salarial complexos com situações de falta de liquidez das empresas em contexto de recessão.