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sobre a entrevista da Ministra da Saúde (de 30 de janeiro 2019)

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Na semana passada, circulou na vertigem do viral nas redes sociais uma afirmação da Ministra da Saúde, dita na entrevista que deu no dia 30 de Janeiro de 2019. Como estive fora, só quando a entrevista foi disponibilizada (ver aqui), tive possibilidade de ouvir na totalidade.

Embora compreenda o atractivo do destaque dado nas redes sociais à afirmação que se tornou viral (“enterrar os mortos e tratar dos vivos”), depois de vista e ouvida toda a entrevista, é mais um caso de empolamento de uma frase, e acabou por ocultar vários outros pontos relevantes na entrevista.

Vou destacar alguns (de interesse pessoal, há quem provavelmente queira destacar outros):

  • greve dos enfermeiros – não se adiantou muito, significando que ainda se está em discussão, não registei argumentos ou ideias novas, e tudo (ou quase tudo) deve ser visto no contexto de um processo de negociação. Não seria de esperar grandes revelações, ou novas posições, que serão transmitidas em primeiro lugar nas negociações (pressuponho). Uma dúvida que tenho neste momento é se as posições de parte a parte não se entrincheiraram já de forma a tornar muito difícil chegar a acordo.
  • Ainda a lei de bases da saúde e a questão do sector privado ser concorrencial com o sector público. Há a este respeito dois equívocos que têm estado presentes em toda a discussão. Primeiro, o sector privado (com ou sem fins lucrativos) será sempre concorrencial do sector público no sentido em que se não for proibida a sua atividade (e não vi ainda quem defendesse essa proibição de existência), então as pessoas terão sempre a opção de pagar no sector privado. É uma concorrência mais ou menos desequilibrada pelas escolhas de seguro e pelas decisões do SNS mas está presente e estará presente. As afirmações que falam em complementaridade do sector privado face ao SNS são sobre a forma como o SNS se deve organizar e gerir, não sobre o sistema de saúde como um todo. E isto leva ao segundo equívoco, deve o SNS ter como objetivo “apoiar o desenvolvimento do sector privado”? Naturalmente que não. Do ponto de vista do SNS, a utilização do sector privado deve ser vista como um instrumento que pode, ou não, ser usado consoante tenha vantagem para alcançar os objectivos do SNS. Não é um fim em si mesmo. É preciso evitar na discussão confundir os princípios do sistema de saúde com a gestão do Serviço Nacional de Saúde.
  • Permanência (retenção) dos médicos nos hospitais públicos – há um primeiro dilema de qual o princípio que deve ser considerado: a) a sociedade deve dar à sua população jovem educação para que esta possa ter vida profissional ativa e pessoalmente satisfatória, e a formação em medicina é parte desse princípio; ou b) a formação em medicina deve servir unicamente para formar médicos para o serviço nacional de saúde. Se for o primeiro caso, como me parece mais natural, então a questão de retenção de médicos nos hospitais públicos tem que ser realizada em termos de escolha voluntária, e as condições remuneratórias e de trabalho têm que se ajustar à concorrência que venha do sector privado. A questão da exclusividade é delicada, sobretudo quando a colaboração com mais de uma instituição tiver o potencial para gerar conflitos de interesse ou incentivos distorcidos (indo, potencialmente, desde a falta de tempo aos casos mais extremos de desvio de doentes). A criação de regras administrativas poderá ser necessária, mas tem que ser cuidadosamente feita.
  • Parcerias público – privado e Hospital de Braga. Aqui tudo aconselha a que se trate do assunto com calma, para uma transição adequada. É claro que do ponto de vista político cada lado procurará dizer que a responsabilidade da decisão é do outro lado. Mas vendo com atenção a linha histórica de decisões, é fácil perceber que a situação criada tem mais responsabilidade da parte do Estado, e não é atribuível a qualquer decisão de hoje. Vejamos. Há 10 anos foi assinado o contrato PPP. E sabia-se que o contrato para gestão das atividades clinicas teria 10 anos de vigência. Naturalmente, antes de finalizarem os 10 anos e com tempo suficiente o Estado deveria anunciar o que pretendia fazer. Não tendo anunciado com tempo antecedente suficiente que iria lançar um novo concurso para a gestão das atividades clinicas nos próximos 10 anos, ficou com duas soluções: ou continuar a gestão atual até entrar em vigor uma  nova decisão sobre a entidade gestora, ou reverter para a gestão pública durante o tempo dessa decisão. Mas continuar a gestão com as condições anteriores requere o acordo da parte privada. Que no caso do Hospital de Braga optou por não continuar e no caso do Hospital de Cascais optou por aceitar mais dois anos de gestão. A reversão para gestão pública do Hospital de Braga (talvez temporária talvez definitiva, que em termos de decisão política há por vezes grande volatilidade)  resultou sobretudo da incapacidade do Estado tomar decisões, há mais de dois anos, sobre lançar ou não um novo concurso. Todas as decisões, neste momento, das partes envolvidas são perfeitamente legitimas e naturais. A preocupação central de todas as partes deve ser assegurar que este processo não se repercuta nas atividades desenvolvidas pelo Hospital de Braga.
  • Erro médico – tema introduzido talvez inesperadamente, que foi provavelmente o que levou à frase que se tornou viral. A inferência de “insensibilidade” parece ter sido o gatilho para o aspeto viral nas redes sociais, mas ouvindo a entrevista vê-se que vem na sequência de uma pergunta sobre um tribunal especializado para o erro médico. Ora, a conversa estava a seguir na linha de como tratar legalmente essas situações. O erro médico não é um assunto fácil de tratar, porque se é certo que o cidadão afectado deve ser compensado, é igualmente consensual que é importante que sejam revistos os processos de trabalho que levaram a esse erro para evitar a sua ocorrência futura. Há toda uma linha de intervenção sobre segurança do doente que pretende precisamente atuar nesse campo. Um dos elementos dessa linha é que uma penalização muito elevada de todo e qualquer tipo de erro pode levar a que se procure ocultar esse erro, para evitar a penalização, em lugar de o corrigir. O reporte do erro e depois intervenção sobre os processos que a ele levaram têm que ser acautelados. A frase que se tornou “viral”  evita um caminho de discussão de apenas penalização legal como forma de lidar com o erro médico.
  • Mortalidade infantil – também aqui me parece que houve, na opinião pública e antes deste entrevista, um alarme desnecessário. A variação da taxa de mortalidade infantil em torno de valores baixos é natural, e nuns anos subirá, noutros irá diminuir. O foco no valor absoluto de mortes não é a melhor forma de olhar para a questão, pois o número de nascimentos também aumentou. O primeiro passo seria ver se estatisticamente o valor provisório para 2018 é anormal, ou se está dentro do intervalo de variação esperado. E se estiver fora, então sim ir averiguar os motivos. Esta discussão da mortalidade infantil teve lugar há 5 ou 6 anos, com exactamente as mesmas características.
  • Dividas dos hospitais e pagamentos em atraso – sobre este tema já tenho escrito vários posts neste blog, que não vou repetir. Deixo apenas duas sugestões: não olhar para o stock da dívida como indicador e sim para a sua dinâmica; aproveitar o melhor possível a comissão criada conjuntamente entre o Ministério da Saúde e o Ministério das Finanças para explorar os mecanismos que resolvam de forma duradouro esta questão (problemas de gestão – criação de dívida – mais problemas de gestão – mais dívida – regularização com injeção adicional de verbas – repetir tudo de novo).

[editado 06 fevereiro 2019 – adicionado o ponto sobre retenção de médicos no sector público]

Autor: Pedro Pita Barros, professor na Nova SBE

Professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa.

One thought on “sobre a entrevista da Ministra da Saúde (de 30 de janeiro 2019)

  1. Bárbara Saraiva

    Renato Saraiva

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