Via facebook surgiu várias vezes a carta aberta ao Presidente da República que uma estudante que pretende entrar em medicina escreveu na Visão (ver aqui), por ter ficado de fora por poucas décimas. Surgiu também um comentário de resposta de um recém licenciado em medicina (também na Visão), e até o Bastonário da Ordem dos Médicos se pronunciou (em coerência com o que tem sido a sua posição), estes dois tomando a posição de que existem já demasiados médicos em Portugal (e mais serão com a formação que entendem ser excessiva neste momento).
Compreendo o desencanto, que se vê em muitos jovens, da jovem estudante. A sua carta e os comentários surgidos misturam diferentes argumentos e problemas: a) o sistema de acesso ao ensino superior; b) a capacidade de formação; c) o destino depois da formação no ensino superior.
Sobre o sistema de acesso ao ensino superior, não é claro o que seria um sistema alternativo que garantisse a igualdade de oportunidades. É certo que alguns ficarão de fora das suas primeiras preferências em termos de cursos e áreas de formação, mas não é evidente que haja interesse e capacidade de ter um sistema de ensino superior que garantisse que se teria sempre a possibilidade de entrar no curso pretendido (seria preciso um excesso de capacidade). Pode-se, e se calhar deve-se, discutir com mais cuidado que princípios estão por detrás das vagas oferecidas em termos de cursos e de locais (universidades que os oferecem). A situação actual decorre de um equilíbrio entre o que as universidades querem oferecer porque têm os professores para esses cursos, o que Governo / Estado quer em balanço entre regiões, não abrindo mais vagas nalgumas universidades públicas para que outras universidades igualmente públicas possam ter alunos (claro que esta posição não é normalmente assumida como política), o que o Governo / Estado entende serem formações mais ou menos relevantes, e a procura efectiva dessas formações (que também influencia o elemento anterior).
Sobre a capacidade de formação em medicina, esta tem que ser vista com cuidado, procurando identificar métodos e formas de ensino que procurem dar uma formação adequada de forma eficiente (isto é, utilizando da melhor forma as possibilidades de formação que existem).
Sobre o argumento de haver depois médicos a mais, ou não, não deixa de ser curioso que os mais fortes defensores de reduzir as vagas de medicina (e aumentar assim o número de jovens com o mesmo grau de descontentamento da estudante que escreveu a carta aberta) sejam os jovens médicos, muitos ainda estudantes de medicina. Como já expressei noutros textos deste blog nos últimos anos, a minha visão é muito diferente – o objectivo do ensino superior na área de medicina não é ser formador de pessoal para o Serviço Nacional de Saúde ou, numa visão mais corporativa, formar poucos médicos para garantir rendimentos elevados aos que conseguem entrar nas escolas de medicina. O ensino superior deveria ser um instrumento para a formação dos jovens portugueses de uma forma que lhes permita seguir as suas ambições e os seus sonhos, seja na medicina seja em história de arte seja em psicologia, etc…
Prefiro um médico português a trabalhar na Alemanha, porque essa é a sua vocação, do que ter uma formação que não gosta num posto de trabalho que não gosta em Portugal.
Mas se querem usar argumentos económicos, também o podemos fazer, e não levam à restrição de entradas em medicina. O principal argumento apresentado é o de se fazer investimento em médicos que depois vão para fora do país. Os contra-argumentos são simples: vai haver emigração de médicos por pressão dos países do Norte da Europa que vão ter escassez de médicos, pensar que a emigração resulta apenas de desemprego médico em Portugal e que não existirá procura externa é, muito provavelmente, errado. Mas mesmo que fosse esse o caso, seria sempre possível definir que excesso de custos de formação de medicina seria pago pelos alunos com um empréstimo que seria anulado se ficassem a trabalhar em Portugal e pago se fossem trabalhar para o estrangeiro (afinal era esse objectivo, certo? evitar que fossem pagas formações a quem emigrasse). Ou outro mecanismo qualquer. Mas podemos ir mais longe, tendo capacidade formativa superior às necessidades efectivas do país em termos de recursos humanos (o que implica uma visão de planeamento central das profissões, que aceitemos para efeitos de argumento), porque não pode ser esta também uma “indústria exportadora”? formar bem médicos para o espaço europeu, incluindo formar candidatos que não sejam portugueses que trariam para Portugal as propinas e as despesas de vida, e talvez até a decisão de ficar num país com uma baixa taxa de natalidade (relembro que estou a usar argumentos económicos).
Ou seja, o desencanto da estudante que escreveu na Visão tem tudo para gerar uma discussão “viral” demagógica. Tem, porém, um fundo de realidade que merece discussão porque encerra também uma visão de sociedade e de missão para o ensino superior.
(os textos anteriores deste blog sobre as entradas em medicina estão aqui, aqui, aqui, aqui aqui, e ainda aqui)
26 \26\+00:00 Outubro \26\+00:00 2016 às 22:59
100% de acordo
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26 \26\+00:00 Outubro \26\+00:00 2016 às 23:01
comentário recebido via facebook (para quem tiver), para ir ver “os truques da imprensa portuguesa” e respectivos comentários: http://www.facebook.com/ostruques/photos/a.410940029103291.1073741828.410931902437437/538598836337409/?type=3
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27 \27\+00:00 Outubro \27\+00:00 2016 às 07:29
Bom dia Prof. Pedro Pita Barros,
Nesta sua equação faltou abordar uma variável relevante que eventualmente será o “gato escondido com rabo de fora” de quem “não chora não mama”: o projeto em andamento para a constituição da primeira faculdade de Medicina privada em Cascais/Lisboa, sob os auspícios do capital chinês. Desta forma, para os bons alunos com notas elevadas que ficam aquém da entrada em Medicina haverá mais uma oportunidade de mercado; para aqueles com médias de 12 mas altamente motivados, por exemplo filhos de farmacêuticos, também (e sem fuga de capital para as Eslovénias)! E a ideia da internacionalização dos formandos dessas faculdades de Medicina privadas, não para a Europa do Norte envelhecida, mas sim para Ásia pujante uma potencialidade de importação-exportação. Consta até que a 2ª língua destes cursos vai ser o Mandarim e a Acunputura cadeira no 1ª e 2º ano!
O Universo conspira e a terra continua a girar…
cumprimentos
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27 \27\+00:00 Outubro \27\+00:00 2016 às 10:41
Caro JFR, desconheço se a questão de novos cursos de medicina está subjacente à noticia; se estiver dá apenas a motivação para esta notícia, não altera o problema fundamental, a da capacidade formativa como limitação admissível ao número de vagas e não argumentos económicos de desemprego médico ou investimento desperdiçado se médicos formados em Portugal emigrarem. Quanto ao curso de medicina privada em Cascais/Lisboa, os anúncios feitos até agora subestimam, a meu ver, o trabalho necessário para se construir essa oferta. E como as universidades públicas têm parcerias de ensino com entidades privadas, nomeadamente hospitais, há vários anos, não é nada claro que uma nova universidade privada na zona de Lisboa consiga ir fazer o aproveitamento de capacidade formativa não utilizada. Como os cursos têm que ser aprovados pela A3ES, veremos o que resulta desse processo de acreditação de um eventual novo curso de medicina.
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27 \27\+00:00 Outubro \27\+00:00 2016 às 10:47
Ainda sobre este tema, um trabalho da Marlene Carriço no Observador, já este ano: http://observador.pt/especiais/temos-medicos-a-menos-ou-a-mais/
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27 \27\+00:00 Outubro \27\+00:00 2016 às 10:50
[1] Não consigo deixar de relacionar esta pseudo-carta com a pressão da Católica para abrir um Curso de Medicina…
Problema: A Maria poderia ter entrado em Medicina. Mas a Maria não quis concorrer para a UBI, onde existe um excelente Curso de Medicina com menos alunos que nas sobrepovoadas FMUP e FMUL. Mas a Maria preferiu os encantos de Madrid aos ares inóspitos da Covilhã. A Maria teve como nota de candidatura 17,8.
Pedro Pita Barros não fui tão longe em termos de teoria de conspiração, pelo que las hay las hay
[2] Choradinho? Só?
[3] Vou já mandar isto para a minha filha finalista de Medicina.. Ainda bem que escreveste isto. Não sei nada da carta, mas conheço a lenga-lenga da Ordem dos Médicos….
[4] Gostei! Parabéns
[5] De acordo com o post e a justificação que ficariam médicos no desemprego é uma desculpa que não me parece nem convincente nem aceitável.
A única justificação que aceito e considero pertinente é a falta de capacidade hospitalar para a instrução dos médicos e, especialmente, a capacidade para absorver internos. E gostava de ver um Governo a pegar no problema por esse lado.
Pedro Pita Barros de acordo, mas evitando a definição de regras de formação que levem obrigatoriamente a um resultado pretendido – pedir essa definição à ordem dos médicos que é favorável a reduzir vagas no ensino superior para medicina levaria quase de certeza a regras de formação que obrigariam à redução de vagas (se não se vai lá por um lado pode-se ir por outro). Também gostaria de ver uma análise pelo lado da capacidade formativa.
[6] naaa. numerus clausus. tipo táxis.
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