Com toda a agitação que houve depois da entrevista de António Borges sobre a solução para a RTP, pensei num primeiro momento reflectir sobre o tema, mas depois era tanto o barulho que achei melhor deixar para outra altura, quando fossem conhecidos mais detalhes técnicos sobre a proposta e as alternativas que foram consideradas. O que se fará com a RTP tem muito de económico mas também de político.
Acabei por decidir escrever alguma coisa desde já, uma vez que o primeiro-ministro falou sobre o assunto, referindo não haverem tabus e ser desejável não ter histeria nas discussões. Curiosamente, foi exactamente essa a sensação com que estava – uma certa histeria, muito focada no processo mas também na rejeição imediata da ideia, sendo que não houve uma discussão generalizada séria sobre os méritos da solução sugerida face a alternativas, e também das desvantagens, claro.
Sobre o processo político, de quem deverá anunciar o quê e em que momento, não me pronuncio.
Olhemos apenas para a ideia de solução. A ideia de concessão é desafiadora. Parece uma solução boa à primeira vista, talvez porque ainda não tinha sido proposta. Ou parece uma solução má porque não é aquela em que cada um tinha pensado ou que ideologicamente prefere. As posições públicas não andaram muito longe de uma destas duas.
Mas exploremos com cuidado o que significa concessão da RTP a privados. Ainda antes de saber quem ganha e quem perde financeiramente com esta solução, a primeira pergunta deve ser “qual o objectivo da actividade concessionada” ou mesmo “qual é a actividade concessionada”. Do que foi possível perceber, o objectivo será “assegurar o serviço público de televisão”. Do qual nasce desde logo a inevitável questão “o que é o serviço público de televisão?”.
Ora, aqui há uma profunda incapacidade de definir de forma precisa e completa o que será o “serviço público de televisão”. Basta relembrar a tentativa feita há um ano, com toda a contestação que levantou, para se perceber a dificuldade de saber o que é. Ora, na ausência de um objectivo concreto, a definição de um contrato de concessão será especialmente complicado. Pensemos em quem estaria disposto a assinar um contrato que diga apenas “terá que cumprir o serviço público de televisão a troco de 150 milhões de euros”. Quem paga irá exigir mais em termos do que acha ser serviço público, quem presta irá argumentar que já faz mais do que suficiente. O Estado terá o interesse em ir redefinindo o que é serviço público, alargando o conceito, sobretudo depois do contrato assinado. O privado que tome a concessão quererá limitar essa redefinição, alegando que tudo o que faz é serviço público. Claro que a entidade privada que tomar a concessão estará disposta a fazer tudo o que seja considerado serviço público desde que paga para isso, mas se há adições ao conceito terá que haver acréscimo ao pagamento, e lá se vai a certeza do valor da despesa com o serviço público.
Conclusão, o contrato de concessão terá de ser mais preciso. Mas há dúvidas de que se consiga escrever um contrato que consiga especificar todas as dimensões relevantes do que é serviço público de televisão e antecipar a sua evolução para a duração da concessão. É o que em teoria económica se chama contrato incompleto, e que neste caso tem dimensões de difícil definição para serem incluídas num contrato. É necessário que essas dimensões possam ser observadas de forma a que um juiz ou entidade possam dirimir conflitos de interpretação entre as partes. É pouco provável que essa indefinição possa ser resolvida, o que sugere pouca adequação do modelo de concessão dados os objectivos de assegurar o serviço público de televisão.
Mas suponhamos, por um momento, que era possível resumir o serviço público de televisão à condição de não ter mais do 6 minutos de publicidade por hora. (se o leitor quiser, adicione outras condições similares em termos de verificação quantitativa – número de minutos falados em português por semana, número de programas de debate ou de música, etc…)
Ora, se estes valores forem especificados, então porque não considerar a alternativa de um concurso em que qualquer televisão assegure essas condições a troco do pagamento especificado. Ou seja, se for possível especificar, então o concurso deveria ser para essas condições, eventualmente até separadas, e não para uma concessão mais geral.
Ou seja, se o objecto “serviço público de televisão” é vago e dificilmente concretizável para poder pertencer a um contrato sem ambiguidades sobre o seu significado e custos associados, então a solução de concessão parece inferior à operação directa (que é aqui a versão de integração vertical entre as duas partes – contratante e contratado). Mas se for facilmente concretizável em medidas quantificáveis, então a solução concessão parece inferior a uma solução em que não há televisão pública e sim contratação a uma das estações da prestação dos serviços que levam a essas medidas quantificáveis.
A discussão sem tabus significa correr o espectro completo de opções, vendo as vantagens e desvantagens de cada uma delas – existem passos metodológicos de escolha pública para ajudar na estruturação deste tipo de decisões.
No caso da concessão da RTP, como proposta, apenas olhando para o que significa “serviço público de televisão” e o que é a sua caracteristica em termos de objecto contratável, parece sugerir que será sempre dominada por outra opção, nuns casos televisão pública, noutros casos televisões privadas contratáveis.
Como a discussão é sem tabus e sem histerias, posso estar completamente enganado e ter-me esquecido de algum factor essencial. Cá estarei para o reconhecer se for caso disso, sem histeria.
ps. propositadamente não quis discutir o que deve ser incluído no serviço público de televisão, pois interessa focar nas características do que é mais do que o conteúdo especifico que cada um queira dar.