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Observatório da dívida dos hospitais EPE, segundo a execução orçamental (nº 86, outubro de 2025)

Aproxima-se a data de entrega, na Assembleia da República, da proposta de Orçamento do Estado para 2026 (OE). E com ela começa o habitual período de notícias e debates sobre a forma como o Estado intervém no setor da saúde.

O primeiro foco de atenção recai, de forma inevitável, sobre o volume global de fundos atribuídos ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). Em segundo plano, como ponto de interesse, surge o texto que enuncia as prioridades do Governo para o setor. No entanto, na última década, esta parte do documento tem evoluído para ter uma componente de crescente de exercício de autoelogio, em vez de uma reflexão crítica: sobre o que foi alcançado, o que ainda falta concretizar e quais devem ser os novos objetivos das políticas públicas na saúde.

A ausência de um verdadeiro “orçamento do SNS”

Falta-nos, desde sempre, um documento que possa ser visto como o Orçamento do SNS, isto é, um documento que esclareça que verbas são atribuídas a quem e com que objetivo de política pública. Naturalmente, garantir o funcionamento normal das entidades do SNS que prestam cuidados à população é uma função central e permanente.

É verdade que há a publicação uma nota explicativa após a divulgação da proposta do OE. Essa nota é útil, mas está longe de ser uma versão do que poderíamos chamar de orçamento do SNS.

Em 2017, o Conselho Nacional de Saúde produziu um mapa de fluxos financeiros no SNS, um instrumento de grande utilidade que permitiria acompanhar o debate orçamental, caso fosse atualizado anualmente. Mas apenas os organismos oficiais dispõem da informação necessária para o fazer.

O problema recorrente dos pagamentos em atraso

Como é habitual, multiplicar-se-ão comentários, estudos e análises sobre o tema. Aliás, o ritmo a que surgem documentos e notícias sobre o setor da saúde é elevado, e continuará a sê-lo muito provavelmente.

No caso do OE para 2026, tenho especial curiosidade em perceber como o Governo pretende lidar com o problema dos pagamentos em atraso no SNS, uma aliança perversa entre orçamentos insuficientes e problemas de gestão.

Apesar dos reforços orçamentais iniciais nos últimos anos, e das injeções financeiras extraordinárias a meio e no final do ano (algo que acontece praticamente desde que existem dados regulares), o problema mantém-se.

Em 2025, a “pacificação” da relação com os profissionais de saúde e o aumento da despesa associada a revisões e aumentos salariais serão, provavelmente, a justificação apresentada. Contudo, se assim for, a questão central permanece: por que razão essa despesa não foi já prevista no orçamento inicial? Perceber a origem desta persistência nos pagamentos em atraso é essencial para avaliar a proposta orçamental de 2026.

O ciclo que se repete

Os dados até agosto de 2025 mostram o padrão habitual: um reforço de verbas durante o verão, que reduz temporariamente o stock de pagamentos em atraso, mas cujo efeito desaparece rapidamente. É quase certo que haverá um novo reforço em novembro, de forma a apresentar, no final do ano, um valor politicamente aceitável.

Assim, repete-se a narrativa: “os pagamentos em atraso estão baixos”. Mas esta é apenas uma ilusão de fim de ano. O problema estrutural, a incapacidade de evitar a acumulação recorrente dessas dívidas, continua disfarçado.

Enquanto as questões de gestão que estão na base dessa situação não forem resolvidas, mais verbas para o SNS significarão apenas mais despesa, sem garantias de melhoria efetiva.

Os números mais recentes são claros. O gráfico habitual mostra a evolução dos pagamentos em atraso e o quadro resume a estimativa do seu crescimento médio mensal, isolando o efeito das transferências extraordinárias: para o ano de 2025, foi de cerca de 85 milhões de euros de acréscimo por mês.

Durante 2025, o ritmo de crescimento mensal dos pagamentos em atraso atingiu um dos valores mais elevados da última década e manteve-se assim durante mais tempo do que em anos anteriores.

Em resumo, as dificuldades de que tanto se fala em público têm uma tradução financeira evidente. Encontrar uma solução continua a ser uma necessidade. Infelizmente, continua também a escapar aos esforços do Ministério da Saúde.


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médicos tarefeiros, um problema de procura e de oferta

O final do Verão não trouxe calma ao Serviço Nacional de Saúde(SNS), com os problemas de falta de médicos a terem grande visibilidade. O fecho do serviço de urgência no Hospital Garcia de Orta (Almada) por médicos prestadores de serviços contratados não terem aparecido foi o elemento mais marcante das duas últimas semanas.

Não conhecendo os detalhes da situação, o ter acontecido e a discussão de possíveis medidas de resposta gera a necessidade de reflexão sobre os fundamentos menos óbvios do atual contexto, e sobre as soluções.

É importante perceber que parte substancial dos problemas, tensões e “surpresas”, e até várias das posições que têm sido expressas, resultam de se estar na presença de um “choque” entre uma visão hierárquica do funcionamento do SNS e das suas organizações (a ideia de que tudo depende da vontade de um governante descer ao longo da “cadeia de comando” até ser executada) e um mercado descentralizado – a prestação de serviços médicos -, onde as decisões são tomadas de acordo com a vontade de cada médico, individualmente ou no quadro de uma empresa de prestação de serviços com que colabore. 

Neste quadro, a tutela quer reduzir dependência e mudar regras de acesso ao trabalho à tarefa, até permitindo exceções remuneratórias para cobrir buracos críticos. A Ordem dos Médicos discorda da via restritiva e põe medidas para fixar profissionais; os sindicatos mantêm o foco na carreira. Os utentes querem previsibilidade — urgências abertas. Conseguir um consenso para o caminho a seguir requere em primeiro lugar que se tenha um entendimento sobre o que são os fundamentos do problema.

No caso do fecho da urgência no Hospital Garcia de Orta por falta dos médicos em prestação de serviços que eram esperados, poderá, ou não, ter havido concertação de decisões. Independentemente da resposta a essa pergunta, o quadro mais geral é o de se estar na presença de decisões que não diretamente controladas por qualquer hierarquia do SNS (seja do hospital, da Unidade Local de Saúde, da Direção-Executiva do SNS ou do Ministério da Saúde). 

Para debater o que está em causa, é necessário relembrar alguns conceitos básicos, que ajudam na compreensão dos atuais problemas e na procura de soluções, incluindo regras que o Governo tem em análise, segundo o que circula na comunicação social. Facilmente poderão surgir resultados inesperados e divergentes da intenção de quem cria ou sugere essas medidas.

O primeiro conceito central é perceber porque existem organizações que estabelecem contratos de trabalho com os profissionais que nelas exercem atividade, por contraponto com todos os dias fazerem uma contratação do trabalho que é necessário para esse dia. Estamos tão habituados à existência de empresas e de instituições organizadas em torno de contratos de trabalho (sem termo) e de hierarquias internas a essas organizações que não questionamos o porquê da sua prevalência como unidades centrais na prestação de cuidados de saúde. Ora, creio que é simples perceber que que contratação dia-a-dia tem custos, sobretudo em termos de trabalho especializado. Não é apenas a previsibilidade para ambos os lados, trabalhador e entidade contratante, que está em causa. É também a capacidade de organizar funções, garantir continuidade de atividades, conhecimento e cultura da atividade desenvolvida (não ter de explicar todos os dias o que é preciso realizar), etc.

Contratar para trabalho pontual é útil quando se trata de dar resposta a necessidades inesperadas e momentâneas de atividade (momentos de elevada procura, ou de falha imprevista de capacidade de oferta) mas não quando se trata de satisfazer necessidades previstas, previsíveis e conhecidas. 

Do ponto de vista de quem contrata, é melhor ter relações de longo prazo para dar resposta às necessidades de garantir atividades recorrentes, seja na prestação de cuidados de saúde seja em qualquer outro sector.

Do ponto de vista de quem é contratado, há naturalmente vantagens de previsibilidade e de segurança financeira nessas relações contratuais de longo prazo.

Assim, as atuais circunstâncias de recurso à prestação de serviços médicos com base em mecanismos de mercado imediato, isto é, contratação “à tarefa”, é uma disfuncionalidade no funcionamento do SNS. 

E este tipo de disfuncionalidades resulta geralmente em menor capacidade assistencial (as falhas em assegurar urgências hospitalares abertas é elemento mais visível para a opinião pública, suspeito que não serão o único custo de funcionamento). Apesar de num dia ou numa semana particular esse recurso à prestação de serviços resolver a falha, o não ser ter o quadro de profissionais suficiente para a atividade normal a desenvolver aumenta a possibilidade de falhas ao longo do ano. Tem também mais custos financeiros para quem paga, e maior incerteza de rendimento para quem recebe. Leva também a maior frustração profissional para todas as pessoas envolvidas (incluindo doentes, médicos que trabalham como prestadores de serviços, médicos contratados permanentemente que têm de enquadrar no que fazem os que fazem prestação de serviços, gestores das unidades, dirigentes de topo do SNS). 

Falta, em geral, conhecimento e informação sobre o lado da oferta (empresas e médicos prestadores de serviços). A reportagem de Rita Nunes (na revista Sábado) reporta informação obtido junto do lado da “oferta”, sobre as empresas, maiores ou simplesmente unipessoais, que atuam neste mercado de prestação de serviços médicos, incluindo a tentação de conluio (cartelização) que possam ter para fazer subir os preços (os valores pagos por estes serviços). É também uma boa ilustração de um velho ditado da área da economia da saúde, “a ineficiência do sistema de saúde é rendimento de alguém”, que naturalmente faz com que haja oposição a que se altere a situação.

Deste modo, para pensar em soluções, será útil usar o velho modelo de análise económico de procura e oferta num mercado (confesso, é hábito de economista) em vez de pensar apenas em formas legislativas, de publicação de restrições e regras que não são imunes às decisões individuais de aceitar contratos de trabalho ou de preferir manter uma atividade de prestação de serviços pontual, onde e quando for mais bem remunerada. 

O quadro legal tem de induzir decisões individuais, tomadas em liberdade, o que gera a necessidade de antecipar comportamentos dos agentes económicos envolvidos. O desafio é como enquadrar as medidas propostas pelos vários intervenientes nesta lógica de procura e oferta.

Numa primeira abordagem, reduzir a procura de serviços médicos no mercado de contratação “à tarefa”, através da constituição de maior capacidade interna, fazendo com que só situações imprevistas de excesso de procura e de falta de resposta interna levem à participação nesse mercado, é o melhor caminho. O que significa recrutamento de médicos, conforme tem sido defendido por muitos intervenientes e comentadores. 

Reduzir a oferta da prestação, através de (eventuais) proibições de participação na atividade de prestação de serviços, como aparentemente terá sido considerado, terá um de dois efeitos: ou os profissionais afetados vão procurar ser contratados pelo SNS, e reduz-se a necessidade (procura) no mercado de serviços médicos, ou optam por outra alternativa profissional. E neste último caso, a redução da oferta vai levar a um aumento dos valores praticados (ou falhas na prestação, com mais serviços encerrados). A primeira será certamente a opção preferida pela gestão do SNS. Não há é a certeza de ser esse o resultado (pelo menos com base no que se conhece sobre o funcionamento do mercado de prestação de serviços médicos).

A ideia de ser possível ao Ministério da Saíde determinar de forma completa o que é a procura e a oferta no mercado de serviços médicos é uma ilusão, dado que não se consegue forçar profissionais de saúde a trabalhar no SNS se estes não o quiserem fazer. E impedir de trabalhar para o SNS em algumas condições para “forçar” a que se queira ser contratado pelo SNS só resulta se ser contratado pelo SNS for melhor que as alternativas (que incluem trabalhar no sector privado, exercendo medicina ou não, emigrar num contexto de procura internacional de profissionais de saúde). 

A redução da procura no mercado de prestação de serviços médicos deverá ser o foco da atuação da gestão do SNS, que se não o consegue fazer a nível da Unidade Local de Saúde terá de passar para o nível da Direção Executiva do SNS, e dada a visibilidade pública, logo política, do tema, acabará no Ministério da Saúde.

A principal lição os últimos anos é que as forças de mercado funcionam neste caso, e é melhor reconhecer que tal sucede do que pretender regular normativamente decisões livres do lado da oferta (trabalhar ou não no SNS).

As consequências de medidas que reduzam a oferta sem conseguirem reduzir a procura da prestação de serviços “à tarefa” acabam por ser ou um aumento do preço (o que é pago pelo SNS cresce) ou interrupção da prestação de serviços (fecho de urgências).

Como o quadro legal não é irrelevante, é então preciso identificar a melhor forma de modificar as regras atuais de modo a reduzir a procura de serviços médicos no mercado.

Vejo, no atual contexto, duas formas diferentes, que não são mutuamente exclusivas, de avançar. 

A primeira, que tanto quanto se conhece publicamente estará em desenvolvimento, consiste em alterar processos de funcionamento. Isto é, atualizar a dimensão e a forma de funcionamento (tipologia) das equipas de urgência. É uma decisão técnica a ser tomada com base na melhor prática conhecida, atendendo ao que tem sido a evolução do conhecimento médico. Esta redefinição técnica poderá ser acompanhada por mecanismos de pagamento diferentes, modelos de remuneração de equipas e de pagamento aos prestadores de serviços, que internalizem nestes últimos os custos de falhas e a necessidade de substituição. A definição concreta do melhor modelo de pagamento depende de informação que não possuo, embora a Direção Executiva do SNS tenha a capacidade técnica e a informação (recolhida ou com possibilidades de recolher) necessárias.

A segunda forma, focando na gestão, também tem sido falada – ter a afetação de profissionais de saúde (médicos, sobretudo) a serviços de urgência gerida de forma regional, mesmo que seja preciso criar para o efeito uma nova entidade pública de prestação desse serviço, de forma que os profissionais de uma instituição (Unidade Local de Saúde) possam prestar serviço noutra. Ou, numa formulação mais geral, o contrato de vários profissionais de saúde seja estabelecido com uma organização cujo âmbito geográfico é mais amplo que a Unidade Local de Saúde. A criação de mecanismos organizacionais distintos para enquadrar a flexibilidade do local de trabalho é uma solução. Gerou polémica pública a notícia de poder vir a existir “mobilidade forçada” a Sul do Tejo (península de Setúbal). Se a partilha de profissionais de saúde entre várias Unidades Locais de Saúde na mesma região tem obstáculos formais, então há que formalizar de outra forma por via contratual, seja por os contratos passarem a prever essa mobilidade numa zona geográfica mais ampla do que uma ULS seja pela criação de uma entidade dentro do SNS que tenha a afiliação de profissionais com essa mobilidade a fazer parte da relação contratual (ou seja, os profissionais de saúde terem dupla afiliação, por exemplo). Há certamente soluções que é possível criar para ter a flexibilidade necessária de forma voluntária.

O recurso ao mercado de serviços médicos (procura) deve ser limitado a situações claras de picos de necessidade (maior procura, falta de capacidade por absentismo) e ter um orçamento trimestral publicado (acordado internamente no SNS, com a Direção-Executiva do SNS), para que a transparência de gestão seja efectiva. Os problemas não são simples, resultam de mais de uma década de acumulação de maus hábitos de gestão (macro) do SNS e de funcionamento. Qualquer solução que se pretenda duradoura terá de resolver as tensões de base e não apenas responder ao fecho eventual de um serviço neste ou naquele fim de semana. Qualquer solução terá de antecipar as reações de quem é afetado, terá de antecipar os comportamentos que serão mais prováveis de resposta à solução (e que facilmente serão diferentes face ao pretendido porque quem propõe a solução). Qualquer solução, na sua componente política, irá enfrentar oposição. Haverá a necessidade de encontrar mais aliados do que opositores. Ainda que as soluções encontradas e propostas sejam válidas, não é suficiente para que sejam colocadas em prática se o enquadramento legal e económico não estiver devidamente alinhado com as medidas e os prováveis comportamentos de ajustamento.

(nota: imagem construida com recurso a IA)


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sobre as ideias para a saúde no programa do XXV governo constitucional

A publicação do programa do  XXV Governo Constitucional vem trazer, como é usual, as linhas de pensamento de atuação do Ministério da Saúde para os próximos tempos. Também como é usual, o texto tem uma parte de auto-propaganda (seja para elogiar quando é um governo de continuidade partidária, seja para criticar quando há referência a governos de outros partidos). Não há ganho em comentar essa parte, pelo que é melhor concentrar a atenção em apenas aspectos de conteúdo programático. Aliás, o programa de governo apresenta metas que não são verdadeiramente metas em muitos casos, e onde seria útil ter uma calendarização (nem que fosse o mês e o ano em que espera serem alcançadas).

Como é reconhecido, continua-se num contexto global de mudança organizacional incompleta no Serviço Nacional de Saúde (SNS) – há falta de um fio condutor assumido e conhecido de forma que possa servir de orientação, independentemente de quem estiver à frente do Ministério da Saúde. A organização em Unidades Locais de Saúde, a criação da Direção-Executiva do SNS, a extinção das Administrações Regionais de Saúde, em sucessivas legislaturas que foram interrompidas, geraram uma “salada organizativa” na gestão de topo do SNS que é necessário clarificar, e que será um dos trabalhos do atual Ministério da Saúde, seja por decisão clara, seja por omissão, em que se verá na prática como as diferentes instituições se “articulam” (termos que permite ambiguidades quanto à responsabilidade de decisão e atuação).

As ideias, metas, medidas, ambições ganham em ser agrupadas por temas, pois várias delas estão claramente interligadas, e um tratamento conjunto é provavelmente mais útil.

Contexto macro:

A nível da governação global do sector da saúde, há a intenção de proceder à revisão da Lei de Bases da Saúde, e de criar uma Lei de Meios para o SNS. Não é claro o que constará em cada uma destas iniciativas, e se o tempo que demorará a negociar na Assembleia da República justificará as alterações que se conseguirá introduzir. No caso da Lei de Bases da Saúde, deverá ser identificado o que não se consegue fazer com a atual versão. O meu ceticismo sobre a utilidade da revisão decorre das décadas que a anterior lei de bases esteve em vigor, conseguindo enquadrar diferentes visões dos sucessivos governos, e de ter demorado vários anos a aprovar uma nova lei, sem que depois se visse em que contribuiu para uma melhor capacidade do sistema de saúde satisfazer as necessidades da população portuguesa.

A Lei de Meios para o SNS é uma ideia que no passado tinha sido apresentada (ver aqui), e que pretende dar previsibilidade ao orçamento do Serviço Nacional de Saúde. A sua utilidade prática irá depender da capacidade do SNS deixar de ter o problema dos pagamentos em atraso que tem sido recorrente, resultando em atribuição regular de verbas extraordinárias no final do ano. Sem resolver esse problema, não há forma de uma lei de meios do SNS conseguir ter um papel útil. A lei de meios se não previr mecanismos pelos quais se resolva situações de despesa acima do previsto não terá efeitos práticos. Na altura em que a proposta surgiu, a noção de o problema principal ser suborçamentação (atribuição de verbas que se sabia serem insuficientes para o movimento assistencial do SNS previsível para o ano) justificava pensar-se que uma lei de meios conseguiria resolver esse problema. Contudo, com os sucessivos reforços dos orçamentos iniciais do SNS nos últimos anos, e mesmo a eliminação dos pagamentos em atraso no final do ano (o que sucedeu por duas vezes nos últimos dez anos), não conseguiram evitar que a despesa continuasse a aumentar e a gerar pagamentos em atraso (sendo a atividade hospitalar o principal motor desse aumento). Assim, a lei de meios poderá ser um instrumento útil se conjugada com outros instrumentos (ou contendo ela própria os instrumentos) para fechar o ciclo de pagamentos em atraso – verbas extraordinárias. De outro modo, só irá adicionar mais um elemento à “salada organizacional” do SNS. 

Ainda neste contexto macro coloca-se o Plano de Emergência e Transformação da Saúde. Ao final de um ano, e atendendo ao que foi o primeiro relatório de avaliação de progresso, faz sentido uma sua revisão, sem drama (não verifiquei se já existe um segundo relatório publicamente disponível).

No campo da saúde oral (acesso a dentistas, de uma forma simples), é referido um “novo programa nacional de saúde oral”, que nas medidas é desenvolvido como o alargamento do cheque dentista, e com alargamento para próteses a beneficiários do complemento solidário para idosos. Aqui, com ou sem digitalização, é claramente ficar aquém do que é desejável e do que é possível. É desanimador ver apenas uma filosofia de “cheques”, em lugar de construção de uma rede de saúde oral. É hoje claro que as tentativas do SNS desenvolver as suas capacidades na área da saúde oral têm ficado muito aquém do que deveriam. É também claro que existe uma capacidade privada que tem sido usada por camadas da população com rendimentos para o efeito, e que as famílias de menores rendimentos têm menor acesso a cuidados de saúde oral do que deveriam. Neste campo, tenho uma declaração de interesses a fazer: em 2016 procurei refletir como aproveitar a capacidade privada existente para criar melhor acesso no contexto do SNS (ver aqui, Cuidados de Saúde Oral – Universalização), em 2024 apoiei uma proposta de fazer uma experiência piloto para se ter uma abordagem mais orgânica, mais integrada, com base em capacidade de resolução do setor privado, mas também referenciação de situações e monitorização por parte do SNS (ver aqui, Saúde Oral Universal: há 45 anos à espera…). Também colaborei em ideias de como procurar identificar de forma simples, e com poucos custos, situações mais criticas e estabelecimento de prioridades em jovens (ver aqui, Low-cost and scalable machine learning model for identifying children and adolescents with poor oral health using survey data: An empirical study in Portugal, Susana Lavado et al.). Assentar a solução para um problema de acesso, que leva também a problemas de cobertura financeira e necessidades não satisfeitas, na ideia de cheques dentista será insuficiente, como tem sido até aqui. E mais uma vez, não será o investimento em equipamentos e consultórios com verbas do PRR que irão resolver esta situação (até porque a taxa de execução não tem sido propriamente animadora).  

Gestão do Serviço Nacional de Saúde

Um dos elementos centrais que é apontado pelo Ministério da Saúde é a “necessidade de rever o modelo de gestão de recursos humanos na saúde”, preocupação completamente justificada, mesmo que no último ano tenha ocorrido uma certa pacificação nas relações laborais dentro do SNS (fruto das medidas que levaram a aumentos remuneratórios efetivos). O desenvolvimento desta ideia surge na secção dedicada às medidas, onde se tem como componente central a criação de um “plano de motivação dos profissionais”. É certamente desejável uma forma diferente do SNS se relacionar com os profissionais de saúde que nele trabalham, e de uma forma geral o que é apresentado é desejável. Contudo, há ainda necessidade de percorrer algum caminho de pensamento antes de ter concluído, aprovado e implementado esse plano. 

É de saudar a abertura a falar com as Ordens Profissionais e associações representativas (oficialmente), que será uma condição necessária mas não suficiente. É importante ouvir também profissionais de saúde que não tenham funções de representação (ou melhor, que se representam apenas a si próprios), de diferentes gerações e experiências.

Parece-me que a construção deste plano tem uma perspetiva de longo prazo, pelo que deve ser com o consenso suficiente para ser realmente estruturante, deixando margens de flexibilidade para ajustar transformações sobre as quais ainda não há hoje um bom entendimento da sua extensão (em particular, em que medida as aplicações de inteligência artificial generativa poderão vir a alterar as funções e as competências exigidas às diferenças profissões de saúde, e se até virão a surgir novas profissões de saúde ligadas a esses desenvolvimentos tecnológicos).

Contudo, não se fala, nas medidas, em ideias concretas para a reorganização da forma de trabalho, que será relevante, com maior ou menos papel da inteligência artificial. Fala-se em “construir novos modelos de organização do trabalho”,  e é possível ser desde já mais concreto. 

Aqui, deixo a sugestão de ensaiar duas experiências piloto: a) a semana de 4 dias (que pode ser libertar 1 dia em cada 10, ou outra formulação) e b) USF tipo “outra letra”, adaptada a zonas de dispersão geográfica da população, usando metodologias de avaliação que envolvam um grupo de comparação onde não há alteração, para se perceber as vantagens e as desvantagens de novos modelos de organização. Central a qualquer um dos tipos de experiência é as ideias de reorganização deverem surgir da reflexão dos profissionais de saúde envolvidos sobre as formas de melhorar o que fazem. A propósito da semana de 4 dias, antes de qualquer reação imediata, sugiro a leitura dos trabalhos e relatórios de Pedro Gomes e Rita Fontinha, na realidade portuguesa. De uma forma simples, a ideia central é reorganizar a forma de trabalhar , ganhando eficiência e remunerando esses ganhos de eficiência com tempo livre. Não é uma questão de comprimir o mesmo horário de trabalho em menos dias. É uma questão de fazer melhor, e deixar que a remuneração possa ser paga em tempo, o que ajuda ao objetivo cada vez mais mencionado de equilibrar vida profissional e vida pessoal. (nota “nerd” – de um ponto de vista de análise económica é atuar sobre a restrição que possa ser mais importante, dando à pessoa / trabalhador / profissional um conjunto de escolhas mais amplo – se preferir usar o tempo livre ganho para obter mais rendimento, poderá fazê-lo, mas não é obrigado a fazê-lo). 

É expressa uma preocupação com os sistemas de informação, perfeitamente justificada e que deverá dar lugar a uma ação decidida (e não são as verbas do PRR que irão resolver essas fragilidades).  Aqui cabe também a criação de um modelo de gestão de dados em saúde (o que faz sentido), e suponho que envolva a participação no espaço europeu de dados em saúde, e abranja quer o setor público quer o setor privado, na totalidade do sistema de saúde português. Claro que este modelo de gestão não pode ser pensado de forma separada do registo eletrónico de saúde único (mais uma velha aspiração para o sistema de saúde português). E será que estas tarefas serão feitas por uma anunciada Agência Digital da Saúde/Agência Nacional Digital na Saúde (estão presentes os dois termos, suponho que sejam a mesma entidade, será uma evolução da SPMS, aparentemente, ou é algo completamente novo? A preocupação com a “salada organizacional” volta a surgir). O que surge nas metas é de alguma forma completado pelas medidas. No entanto, sinto falta de dois elementos centrais: uma estratégia para a inteligência artificial na saúde, e a referência à União Europeia. Não é possível pensar em transformação digital na saúde sem pensar em termos europeus, seja pelo desenvolvimento de tecnologia, seja pelo estabelecimento de standards técnicos, seja pela participação no espaço europeu de dados em saúde (para gestão do sistema de saúde e para investigação), seja pela segurança e condições de uso dos dados gerados pela digitalização em saúde. 

Encontra-se uma referência quanto ao uso de um sistema de contabilidade de custos, que tem um roteiro definido, que implica um compromisso de topo, das várias organizações do Ministério da Saúde (ACSS, SPMS e DE-SNS), no entanto apenas a ACSS parece realmente comprometida. No ano passado, definiram-se várias recomendações (disponíveis aqui). O primeiro passo será garantir que estas recomendações (ou outras que as substituam) são cumpridas. Ou num próximo programa de governo haverá novamente esta preocupação (que já tem duas décadas de intenção, pelo menos, e nem mesmo no período da troika se conseguiu avançar de forma significativa). Agora pretende-se que esteja aplicado em todos os hospitais (suponho que queiram dizer Unidades Locais de Saúde, pois não fará sentido ter um sistema da contabilidade de custos no hospital e não ter ou ter outro diferente nas unidades de cuidados de saúde primários da mesma Unidade Local de Saúde.

É mantida a intenção de lançar novas Parcerias Público-Privadas (PPP). Creio que será a continuação do processo já iniciado, pelo que remeto para textos anteriores com os meus comentários sobre o que se vai sabendo. 

É anunciada uma unidade de combate à fraude no SNS. É bom que exista, e que use todas as ferramentas de dados atualmente disponíveis. A sua existência será um fator dissuasor da fraude. Aliás, creio que no passado já existiu. 

Em termos de mecanismos de pagamento a prestadores de cuidados de saúde do SNS, é dito “transformar o financiamento em saúde com base no modelo de saúde baseada no valor (“value-based healthcare”).” Ora, aqui será importante perceber em que prazo se pretende concretizar, e sobretudo saber como serão respondidas duas questões centrais: a) como será medido o “valor” de forma que seja apropriada para fazer parte de um mecanismo de pagamento; b) o que será feito com as unidades de saúde que não produzam “valor” suficiente para que os pagamentos recebidos sejam suficientes para cobrir os seus custos? Se recebem verbas adicionais, pagar de acordo com o valor ou de acordo com a despesa tida será exatamente a mesma coisa (do mesmo modo que o atual modelo de pagamento por orçamento global é subvertido pelos reforços extraordinários de verbas. Claro que esta intenção tem de ser pensada em conjunto com a Lei de Meios da Saúde que é anunciada noutro ponto do programa do governo.  Ao mesmo tempo pretende-se voltar a reorganizar o SNS em sistemas locais de saúde, “com a participação de entidades públicas, privadas e sociais” (sociais são entidades privadas sem fins lucrativos, isto é, são entidades que também precisam de ver assegurada a sua sobrevivência financeira, pagas por verbas públicas sempre que prestarem serviços ao setor público, não são entidades que tragam verbas para o funcionamento do setor público). Ou seja, vão-se estabelecer novas regras de pagamento e ao mesmo tempo aumentar o número de entidades com essas novas regras (mecanismos de pagamento) vão ser aplicadas? Não deixa de ser um programa ambicioso, embora a tradição portuguesa neste campo sugira que não será concretizado. 

Promover a saúde e a prevenção da doença

Neste campo, a intenção de envolver o sistema educativo (pressuponho que público e privado), as Misericórdias e as IPSS, as farmácias comunitárias é desejável. A necessidade de coordenação de muitas entidades diferentes, que podem contribuir de formas distintas e complementares, deverá receber atenção especial. Será desejável que haja um organismo que tenha esta responsabilidade, e os poderes executivos para a concretizar. Desejavelmente, deverá ser uma entidade já existente (não adicionemos mais coisas à “salada organizacional” atual). Tem é de ser claro. Provavelmente a melhor escolha será a Direção-Geral de Saúde, desde que dotada do poder de decisão necessário (e não ficar apenas mencionada a propósito dos comportamentos aditivos associados aos jogos de azar, que são uma preocupação crescente).

Cuidados de saúde primários

Há o reafirmar do princípio geralmente reconhecido, incluindo na esmagadora maioria do espectro partidário presente na Assembleia ad República, de “valorização da Medicina Geral e Familiar”, que se traduz no objetivo de conseguir aumentar a cobertura por médico de família atribuído da população residente. Para efeito, a intenção é adaptar as Unidades de Saúde Familiar (USF) modelo B , lançar as USF modelo C e o regime de convenções. Aqui, concordo com a intenção de ter diferentes modelos de USF B consoante as necessidades da região onde estão, tenho incerteza quando às USF C, na medida em que dependerá do contrato que venha a ser estabelecido, e tenho dúvidas quanto ao regime de convenções (que me parece mais orientado para ter mais “produção” de consultas e melhores estatísticas dessa natureza do que contribuir para um seguimento de longo prazo). Há sempre uma tensão inerente a satisfazer necessidades de atendimento permanente para uma procura excedentária face à procura no curto prazo versus ter um sistema de seguimento de longo prazo. A pressão para apresentar resultados pode facilmente levar a soluções que são menos interessantes a médio e longo prazo. 

Importante será ver como se permite o ajustamento das USF B às condições locais. Se vão ser definidas as regras centralmente de forma ad-hoc (fazendo lembrar as “ìndias de gabinete” de uma música de Rui Veloso) ou se os profissionais de saúde dessas regiões serão ouvidos sobre a melhor forma de se organizarem, por forma a garantir o papel assistencial que lhes é pedido. Esta preocupação sobre o processo surge também das medidas (que supostamente deverão permitir atingir as metas), que falam em desenho de indicadores ajustáveis aos territórios de baixa densidade e mais carenciados (desenhados por quem? com que discussão? Em regime de “sociedade secreta” como tem sido frequente?). Aqui, estou convencido que será útil ouvir sugestões de quem trabalha nesses territórios. Não é preciso abdicar da capacidade de decidir para se ouvir. Quem decide tem de observar o equilíbrio global do Serviço Nacional de Saúde e do sistema de saúde, pelo que é natural que não siga todas as sugestões que possam ser apresentadas. Mas não ouvir é perder oportunidade de encontrar ideias novas e apropriadas a essas zonas. Não é ouvir com propósito de “envolvimento”, é ouvir com propósito de aprender.

Nas medidas, são referidas as USF tipo C para as zonas de baixa cobertura de médico de família. Não sei se fará especial sentido, sobretudo quando as primeiras USF tipo C ainda não estão a funcionar. Compreendo que haja a intenção de encontrar uma solução para estas zonas. Receio, contudo, que os fundamentos económicos sejam difíceis de satisfazer, pelo menos na ausência de informação adicional. Explicando o porquê deste receio (que alguém poderá mostrar que é infundado). Às USF tipo C, como mini-PPP que parecem ser – terão um contrato associado, não será uma mera aquisição de serviços – terão uma exigência de ganho financeiro (menor despesa) face ao que seria feito pelo SNS diretamente. Se ao mesmo tempo as zonas com baixa cobertura de médico de família tiverem características que as levem a ter problemas de economias de escala (por exemplo, se coincidirem com zonas de elevada dispersão geográfica da população eventualmente envelhecida, requerendo mais cuidados domiciliários, ou mais tempo de atendimento), então dificilmente haverá capacidade de cumprir o papel desejado. Não é totalmente claro que haja vantagem em ser USF tipo C face a USF tipo B, sem conhecer melhor as causas da própria falta de cobertura. Tentar as USF tipo C mas estar preparado para usar USF tipo B (modificadas, eventualmente) deverá estar presente na ação pública (sem encarar como fracasso não conseguir aliciar a criação de USF tipo C).

No restante, medidas que potenciem e facilitem a participação de outros profissionais de saúde, no contexto de intervenções multidisciplinares, são bem-vindas.

Cuidados hospitalares

Retoma-se a habitual preocupação com o cumprimento dos Tempos Máximos de Resposta Garantidos para consultas e cirurgias, embora não seja explicitado como se concretizará (é mais um objectivo que não tem sido alcançado de forma sistemática nos últimos 20). Embora seja dito “em todos os Hospitais portugueses”, suponho que se estejam a referir aos hospitais do SNS; se assim não for, e a intenção ser mesmo abranger todos os hospitais no sistema de saúde português, será interessante como se produzirá a monitorização de todos os tempos de espera nos hospitais que não são do SNS. 

Nas medidas a proposta de “criação de programas específicos (…) em modelo próprio”, o que acarreta o risco de fragmentação de modelos. Antes de avançar com uma multiplicidade de modelos, será melhor perceber primeiro o que impede o modelo atual de funcionar, e desbloquear barreiras. As diferenças principais em não cumprir os TMRG são entre especialidades (situações similares entre hospitais/ULS e muito diferentes entre especialidades) ou são entre hospitais/ULS (situações muito diferentes entre hospitais e muito similares entre especialidades dentro do mesmo hospital/ULS)? Sem uma documentação precisa do problema concreto, é difícil perceber se multiplicar modelos é a melhor opção, e sobretudo gostava de a ver comparada com outras opções possíveis que sejam identificadas.  De alguma forma, ganhar esse conhecimento e decidir com base no que se venha a saber parece estar subjacente a duas das outras medidas (promover auditoria regional e nacional aos TMRG de cirurgia, promoção de incentivos à cirurgia de ambulatório), ou pelo menos não vejo que haja vantagem em serem vistos de forma separada.

Como medida é apresentado um “novo Sistema Nacional de Acesso a Consultas e Cirurgias”. Aqui o elemento central será perceber como vão ser estabelecidos os incentivos (enquadramento das decisões dos vários agentes envolvidos), que cultura a longo prazo irá induzir, e que mecanismos de monitorização vão estar presentes. Não é claro, à partida, que solução se pretende encontrar que não esteja de alguma forma já presente no SNS (se não for uma questão de abordagem, será uma questão de processos? É apenas adicionar MCDT?). Será para acompanhar.

Na área dos cuidados urgentes e emergentes, é mencionada a criação de “urgências regionais”, uma necessidade face aos recursos humanos disponíveis, por um lado, e uma questão de eficiência global, mesmo que por qualquer motivo inesperado passasse a existir um volume de recursos humanos suficientes. Só estranho que relacionado com esta resposta a uma necessidade não se fale na avaliação (e eventual expansão, se a avaliação for positiva) da experiência das equipas dedicadas nas urgências hospitalares, e na avaliação (e eventual ajustamento ou afinamento) do programa “ligue antes salve vidas”. Como nas medidas surge “implementar incentivos para profissionais que realizem serviço de urgência”, avaliar o que está em curso pode ajudar a perceber o melhor caminho (se o programa “ligue antes salve vidas” reduzir muito a procura de urgências será preciso esses incentivos? As equipas dedicadas às urgências incluem esses incentivos ou é ainda adicional a essas equipas dedicadas?)

Na organização dos hospitais (dentro das Unidades Locais de Saúde), é referida a intenção de desenvolver novos modelos de “Centros de Responsabilidade Integrada” (creio que serão Centro de Responsabilidade Integrados (CRI), são centros de responsabilidade que estão integrados nos hospitais que estão integrados nas ULS, e não responsabilidade integrada que é agregada em centros). Aqui, mais uma vez, será bom que se faça uma aprendizagem da sua aplicação dos últimos anos, até usando o conhecimento que tenha sido gerado ou que possa ser gerado com contributo da associação nacional dos CRI (CCRIA – Associação). 

Cuidados Continuados e Cuidados Paliativos

São tratados de forma conjunta (numa das “metas”), embora provavelmente precisem de ações de natureza distinta. Creio que será fácil estabelecer acordo sobre a necessidade de desenvolver estas áreas, face ao envelhecimento da população. De uma forma mais geral, será adequado que se tomem decisões sobre que respostas são necessárias, como se interligam com outras respostas que envolvem cuidados sociais, a cargo da Segurança Social e nalguns casos com vantagem em ter envolvimento das autarquias. Há questões dos tipos de cuidados e de apoio necessários, da melhor forma de os providenciar, e da flexibilidade que terão – além de cuidados continuados e cuidados paliativos, há certamente necessidades de apoio domiciliário, que evoluem de acordo com a evolução cognitiva e de mobilidade das pessoas. A questão central é como apoiar as pessoas de forma que possam envelhecer com qualidade de vida nas suas casas, respeitando sempre que possível as suas preferências (que não serão as mesmas para todas as pessoas, e que provavelmente serão diferentes de qualquer solução única que um sistema de saúde e/ou de segurança social queira definir a partir de gabinetes). O processo e as soluções encontradas não são apenas para definir parceiros no setor privado (com e sem fins lucrativos) ou no setor público. Saber o que é necessário, para quem necessário, e como evolui para uma mesma pessoa no tempo é um desafio organizacional grande (e de certo modo contra a cultura tradicional portuguesa de decisão centralizada única). 

Encontro duas secções nas medidas que são prometedoras, embora o risco de equívocos e de falta de clareza seja grande em qualquer delas. Há o mérito de as explicitar. Há que ter o trabalho de as concretizar de forma coerente e útil para o sistema de saúde (e para o SNS). Essas duas áreas são a “Inovação na Saúde” e “Aumentar a eficiência na Saúde”.  Como é notório, tenho como formação de base economia, pelo que é natural o apelo destas duas áreas.

No caso da inovação na saúde, falta uma ambição de atuar no contexto internacional, procurar inserir cada vez mais a investigação feita em Portugal num ecossistema europeu de inovação, aproveitando o que venha a ser feito no âmbito do Relatório Draghi e da recente proposta da Critical Medicines Act. Focar em modelos de financiamento em Portugal dificilmente conseguirá dar esse papel à investigação.

No campo da eficiência, há uma necessidade grande de clarificação de conceitos, para que depois se possa passar a ações consequentes. Desde logo, é importante fazer a distinção entre três níveis de ineficiência que podem, e devem, ser tratados dentro desta ideia de aumentar a eficiência na (produção de cuidados de) Saúde. É preciso separar o que é redução de desperdício, o que é reorganização das atividades e o que é deixar de fazer atividades e intervenções com pouco (ou mesmo sem) valor terapêutico e de custo elevado. Para cada um destes tipos de ineficiência deverá ter-se mecanismos de atuação. Alguns desses mecanismos podem ter efeitos em todos estes tipos de ineficiência. A maior autonomia dos hospitais (na verdade, das ULS) é um desses mecanismos, mas deverá ser acompanhada de maior responsabilidade, no sentido de accountability. E provavelmente fará sentido ir dando progressiva autonomia às ULS que tenham melhor desempenho. A entidade do Ministério da Saúde que aprova e/ou monitoriza estes investimentos deverá definir a metodologia de cálculo, e fazer a sua aplicação regular (por exemplo, num relatório anual a ser disponibilizado na internet, e que na sua ausência leve a algum custo para quem gere a entidade com esta responsabilidade – talvez perder dias de férias, ou perder parte de um ordenado mensal?). 

A discussão do papel das compras públicas, por seu lado, não pode ser desligada da Critical Medicines Act e da proposta de utilização do critério da proposta economicamente mais vantajosa (MEAT, no acrónimo em língua inglesa).

Relativamente às auditorias de gestão, deverão existir dois tipos de auditoria: auditorias regulares, decididas aleatoriamente (e não apenas auditar as ULS que têm os processos mais organizados e que por isso serão mais fáceis de auditar) e auditorias de emergência de gestão (o que são e qual a racionalidade por detrás desta proposta, está descrito aqui – spoiler, é um policy paper da SEDES em que participei com a Catarina Delaunay). 

De uma forma geral, há um comentário sobre questões de eficiência e uso de incentivos. Incentivos tem como lógica influenciar o comportamento de agentes económicos. E podemos distinguir entre incentivos para participação numa relação económica e incentivos destinados a influenciar comportamentos que não são observados diretamente, mas cujos resultados são observáveis mesmo que de forma imperfeita. Os incentivos de participação têm de ser permanentes, enquanto os incentivos associados a resultados são condicionais a esses resultados. A importância da distinção é o primeiro tipo de incentivos passar a fazer parte da remuneração habitual dos profissionais de saúde, podendo tal não suceder no segundo caso.

Quando se fala de incentivos para a localização de profissionais de saúde em determinadas áreas, está-se a falar de pagar de forma permanente melhor. É apenas condicional a observar-se a existência de um contrato de trabalho. 

Incentivos associados à indicadores de qualidade ou de satisfação do utente baseiam-se em que um maior esforço (melhor desempenho) do profissional de saúde se traduz em melhores indicadores, mas pode haver erro – situações em que esforço feito, por simples azar, não se materializou em melhoria do estado de saúde das pessoas tratadas, ou situações em que mesmo com pouco esforço ocorre, por outros motivos fortuitos, uma melhoria do estado de saúde das pessoas tratadas. A remuneração associada com estes indicadores irá então flutuar por vários motivos.  A forma de pensar e depois de atribuir incentivos é por isso distinta. Por exemplo, para atrair profissionais de saúde a zonas mais remotas, provavelmente é necessário mais incentivos do primeiro tipo, mas para melhorar a eficiência de funcionamento das unidades de saúde será mais relevante a utilização de incentivos do segundo tipo. 

Sobre o desenvolvimento de mecanismos de acompanhamento e avaliação de investimentos, deverá ser feito e até deixo a sugestão de se passar a calcular a taxa de retorno social dos investimentos. A DE-SNS, por exemplo, poderá ter este papel.

Há muitas outras intervenções em áreas específicas, que não foco para não ficar com um texto mais longo que o próprio programa do Governo,

Por fim, uma nota de curiosidade: apesar de o programa do Governo falar várias vezes em valor em saúde, quando quer falar de resultados volta à (habitual) descrição de aumento de atividade (cirurgias, consultas hospitalares, consultas nos cuidados de saúde primários, etc). Pelo menos, seria de adicionar o que foi realizado em termos de ganhos de saúde. Se não for fácil, significa também que as intenções de gerir em termos de ganhos de saúde irá ter também dificuldade de perceber. 

Além da saúde, outras áreas focadas no programa do governo merecem um comentário breve, e além do programa do governo, outros eventos / ideias / discussões na área da saúde merecem um comentário breve. Fica para textos num futuro próximo.


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eleições 2025, programas eleitorais e saúde – generalidades e consensos implícitos

Sendo a área da saúde uma das principais preocupações tradicionais em Portugal, é interessante olhar para o que os programas eleitorais dos partidos apresentam para esta área, quais as diferenças entre partidos e quais as diferenças para as últimas eleições.

Dado o último ano, tive curiosidade particular em três aspectos, pela sua visibilidade pública: médicos de família, organização das urgências e sector público – sector privado, que inclui as parcerias público – privadas (PPP) anunciadas para ULS, mas ainda sem tempo de concretização, e mini-PPP como serão (?) as USF (unidades de saúde familiar) modelo C.

Relativamente a estes três pontos, há sobretudo o enunciar de princípios gerais, não sendo claras quais as soluções (?) encontradas por cada partido (recrutar mais profissionais não é uma proposta de solução se não houver mais informação sobre como se pretende recrutar, e como se procurará garantir o sucesso desse recrutamento; valorizar / remunerar mais é suficiente amplo para incluir aumentos salariais reduzidos sem efeito, e sem saber o que será possível pagar de remuneração adicional sem desequilibrar as contas globais do Serviço Nacional de Saúde e as contas públicas, num contexto de pressão orçamental acrescida pelas incertezas do contexto internacional – seja despesa em defesa que possa vir a ser decidida, seja pelas consequências de menor atividade económica se ocorrer uma recessão global).

Nas parcerias público – privados e nas relações entre sector público e sector privado, encontram-se as posições conhecidas, sem grandes surpresas ou inovações. Aqui, gostaria de ter percebido de forma mais clara se usar PPP como instrumento significa menos empenho no desenvolvimento do SNS (dado que é uma “acusação” habitual no campo de discussão política) e se rejeitar PPP significa aceitar sacrificar a saúde da população só para não ter envolvimento de prestadores privados. Como cada posição pode ter efeitos negativos, como são mitigados? não há clarificação quanto a esses elementos nos programas que os referem.

Os programas e as propostas dos partidos com assento parlamentar são bastante diversificados, e há diferentes níveis de detalhes nos assuntos. Por exemplo, não encontrei uma boa resposta de qualquer dos partidos quanto ao problema dos pagamentos em atraso, como disfuncionalidade de gestão que terá efeitos em termos de custos (e provavelmente também em termos dos cuidados prestados e do acesso da população a esses cuidados). Não é evidente que haja uma visão de conjunto global, surgindo por vezes mais um somar de ideias (algumas boas e até provavelmente bastante consensuais) que foram sendo recolhidas por quem em cada partido ficou encarregue de contribuir para o programa.

É, por isso, interessante olhar para o exercício da Fundação para a Saúde, disponibilizado pela HealthNews: “Propostas dos Partidos para a Saúde -A Fundação para a Saúde (FpS), organização independente, publicou uma análise comparativa dos programas eleitorais dos partidos com assento parlamentar para as legislativas de 2025, focada em nove prioridades para reformar o Serviço Nacional de Saúde (SNS).” (à falta de tempo para fazer a minha grelha própria das propostas dos partidos, usei esta para uma visão mais abrangente).

A Fundação para a Saúde arruma a sua discussão em temas, e procura ver como cada um desses temas é tratado nas propostas. E existem áreas que a Fundação para a Saúde considera relevantes que nenhum dos partidos toca.

A área de interesse “Mudar o foco da “doença” para a prevenção e do “hospital para a comunidade” – fazer do acesso aos cuidados de saúde uma prioridade, adotando um monitor efetivo, contínuo e legível sobre o acesso” é a que recebe mais atenção dos partidos, e é onde se encontra também maior convergência de “soluções” (genéricas), como a relevância da prevenção, o papel dos cuidados de saúde primários e a necessidade de reforço do número de médicos de familia / equipas de família. Querendo-se haverá a possibilidade de consenso pós-eleitoral, qualquer que seja o partido que venha a liderar o governo.

Em contraponto, a área de interesse “Melhorar o sistema de informação de saúde” é, na análise da Fundação para a Saúde, um deserto de ideias nas propostas, o que não deixa de ser surpreendente dada a sua importância instrumental para melhor gestão, maior acesso a cuidados de saúde e acelerado processo de evolução, com as possibilidades criadas – e provavelmente até exageradas – de aplicação de ferramentas de inteligência artificial. Como não acredito que haja um consenso implícito para ignorar esta área, há provavelmente necessidade de maior discussão sobre princípios e evoluções possíveis nesta área.


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Observatório da dívida dos hospitais EPE, segundo a execução orçamental (nº 83, março de 2025)

Após as verbas extraordinárias de novembro de 2024 terem eliminado as dívidas e os pagamentos em atraso das ULS (antes hospitais EPE), e de para 2025 ter existido mais um reforço orçamental inicial, tinha (uma vez mais…) a esperança de se ter conseguido controlar o crescimento dos pagamentos em atraso no SNS. Estes pagamentos em atraso passaram dos hospitais EPE para as Unidades Locais de Saúde em que estes se encontram inseridos.

Contudo, hábitos antigos custam a desaparecer, e nos primeiros três meses de 2025 assiste-se a um retomar dos pagamentos em atraso, primeiro de forma lenta e agora a acelerar. Ainda se está longe do que foi o ritmo de crescimento dos pagamentos em atraso (descontados os efeitos das transferências extraordinárias de verbas, usualmente no final do ano), como se pode ver na Figura 1 abaixo.

O ritmo de crescimento mensal dos pagamentos em atraso está nos 26 milhões de euros por mês, similar ao que se observou em alguns períodos do passado (ver figura 2), e abaixo do ritmo de crescimento do último ano (onde andou pelos 55 milhões de euros por mês), estando porém acima dos primeiros meses do ano passado (momento em que também ocorreu transferência de verbas no final do ano anterior – final de 2023 – e reforço de orçamento global do SNS para 2024).

Infelizmente, continuam a existir forças fundamentais de crescimento da despesa além do orçamento estabelecido, mesmo quando este orçamento é reforçado de forma assinalável. Pressuponho que as despesas com pessoal estejam, em grande medida, por detrás desta situação. Contudo, ou se está a gastar a mais com pouco controle, ou a dotação orçamental foi mal calculada face aos acordos de remunerações que foram estabelecidos, ou outra explicação existe (?).

Torna-se um pouco repetitivo, mas se foram colocadas verbas substanciais no SNS nos últimos anos, como explicar o crescimento contínuo dos pagamentos em atraso depois de cada regularização, e sem que se detecte uma melhoria sensível no funcionamento do SNS? (alguém virá falar do aumento da atividade registada, ainda assim face às verbas disponibilizadas, a continuação de vários problemas não deixa de ser um puzzle não resolvido).

Figura 1
Figura 2
Figura 3


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No programa Consulta Pública, da Antena 1, com o tema Quem trata da saúde dos portugueses?

No dia 09 de abril (2025) tive o prazer de participar no programa Consulta Pública, da Antena 1, com Sofia BaptistaAntónio Correia de CamposJoão Sequeira Carlos, e António Luz Pereira, e conduzido por Ana Sofia Freitas

Dados os participantes, foi uma conversa inevitavelmente interessante, e deixo aqui algumas ideias adicionais, a completar e sistematizar o programa, que pode ser ouvido aqui

1 Há um consenso (unanimidade, pareceu-me) sobre a centralidade do Serviço Nacional de Saúde em Portugal, e sobre o papel dos cuidados de saúde primários, e da figura do médico de família (especialista em medicina geral e familiar), no SNS e no sistema de saúde, de modo mais geral.

2 O papel da medicina geral e familiar é também reconhecido no sector privado (e foi referido que não há uma situação nova, tem quase duas décadas no caso do grupo Luz Saúde). 

3 O papel do médico de família tem várias dimensões – ao acompanhar cada pessoa (cada família), tem um papel na prevenção e promoção da saúde, tem também a seu cargo a resolução de problemas de saúde e, quando necessário, orienta o cidadão, referenciando para outros serviços e tipos de cuidados quando necessário. À medida que o sector privado de prestação de cuidados de saúde desenvolve a sua atividade em Portugal, é natural que dê atenção crescente ao médico de família, não só pela sua atividade imediata de resolução de problemas, mas também pela sua capacidade de estabelecer relações de longo prazo com as pessoas que os consultam, crescentemente relevante num contexto de maior número de pessoas com várias condições crónicas. A prazo, ao assegurar uma maior continuidade de cuidados, a referenciação feita internamente a uma rede de prestação desenvolve essa mesma rede. Assim, não é surpresa a evolução que se observa. 

4 A existência de falhas de cobertura por médico de família no Serviço Nacional de Saúde abre espaço para o crescimento desta atividade no sector privado. A possibilidade de ser atendido por um médico de família no SNS, possível mesmo não se tendo um médico de família atribuído e sendo uma pessoa vista por quem estiver disponível, resolve um problema imediato de contacto com um profissional de saúde, mas não dá origem a uma relação de longo prazo, onde o conhecimento mútuo adquirido contribui fortemente para um melhor acompanhamento, e uma melhor saúde. Mas a procura de médico de família no sector privado terá também aumentado pela procura de uma alternativa (para o acompanhamento da família) que tenha características diferentes (ou simplesmente por proximidade, ou por maior empatia entre as partes). 

5 Nas políticas de saúde, é reconhecido que têm sido feitas muitas mudanças num curto espaço de tempo, sem que haja possibilidade de avaliar o que está feito ou desenvolver uma visão integradora dessas mudanças. 

6 A importância da regulação na área da saúde foi focada com algum detalhe. Tenho aqui uma preferência clara por uma regulação focada nos resultados obtidos, e não numa determinação completa dos processos pelos quais se alcançam esses resultados. Dentro de princípios de segurança para a população, a regulação deverá deixar espaço para que haja inovação e progresso na forma de organizar a prestação dos cuidados de saúde. 

7 Era inevitável também falar-se de profissionais de saúde, e de como os atrair e os reter no Serviço Nacional de Saúde, um problema dos últimos anos. Estando a concorrência por profissionais de saúde entre sector público e sector privado também presente na procura de especialistas em medicina geral e familiar, há um choque entre os dois sectores. E aqui a maior flexibilidade da relação contratual que as entidades privadas conseguem ter, e maior rapidez de ajustamento, tem sido importante para as escolhas dos profissionais de saúde. O SNS tem de encontrar a forma de se ajustar a estas novas condições, procurando maior agilidade e flexibilidade nas suas relações contratuais com os profissionais de saúde, e não descurando o investimento em infraestruturas e tecnologias disponíveis nos cuidados de saúde primários. Tem também de encontrar formas de reduzir sobrecarga de trabalho que leva os profissionais a abandonarem o SNS. Aqui, mantenho uma visão, pessoal, de ser necessário alterar o que tem sido a vivência profissional no SNS desde 2011 (desde o início do ajustamento das contas públicas e do período de apoio financeiro internacional a Portugal, o chamado tempo da Troika). Desde então que se tem vivido numa “emergência organizacional” permanente, com choques sucessivos de exigência e nas condições de trabalho no SNS (esta visão encontra-se desenvolvida aqui).

8 Foi notório, na conversa, que o sector público e o sector privado têm possibilidades de aprendizagem mútua, que melhoram o funcionamento de ambos os sectores. Uma pergunta que não foi explorada é se o sector privado tem maior disponibilidade para essa aprendizagem pela flexibilidade de gestão. Face à evolução das necessidades da população, das suas características e das tecnologias e conhecimentos disponíveis, há que ir testando modelos de organização, e aqui a experimentação pelo sector privado poderá ser aproveitada pelo SNS (evitando erros, e adotando abordagens que se mostrem promissoras). Ainda assim, há uma nota de cautela, no sentido de evitar que o SNS entre num “experimentalismo em excesso” (novamente a preocupação com muitas mudanças em pouco tempo, sem haver consolidação ou aprendizagem antes de passar à próxima “novidade”). 9 O tema das Parcerias Público – Privada (PPP) não foi esquecido. Dois pontos importantes são a) unidades do SNS com gestão em formato PPP não deixam de ser entidades públicas, com as mesmas obrigações de todas as outras unidades do SNS (e o SNS deve estar sempre preparado para recuperar essa gestão), e b) a criação de PPP é um processo complexo, que demora tempo a concretizar, mesmo que seja as USF (unidades de saúde familiar) modelo C. Qualquer PPP é exigente na seleção do parceiro privado, no estabelecimento de um bom contrato, e de um bom acompanhamento dessa relação contratual por parte do sector público.

Fonte: imagem criada com instrumento de IA, com base em fotografias.


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Noticias da semana que passou (3): as nomeações para as ULS, e ainda as PPP 

Hoje, recupero dois temas: nomeações para ULS, com um olhar mais detalhado sobre 4 casos, explorando um pouco mais os dados da semana passada, e as PPP – Parcerias Público – Privadas, para a gestão das unidades do SNS.

Nomeações

Na semana passada, apresentei uma avaliação global das novas unidades locais de saúde (ULS) para ter uma primeira visão sobre o seu desempenho. 

Agora, é o momento de aprofundar a análise e examinar mais de perto algumas dessas unidades, especialmente tendo em conta o debate que continua sobre as nomeações para as administrações das ULS. Em declarações citadas pelo jornal Público e que podem ser ouvidas aqui, a Ministra da Saúde referiu que “que os resultados assistenciais e económico-financeiros “não são o único factor” a contribuir para a decisão de substituição das administrações”, focando também no alinhamento com a política do Governo em termos das alterações pretendidas e com permitir novas formas de liderança, e o novo Diretor-Executivo do SNS vai ser chamado ao Parlamento para dar a sua visão sobre o tema da instabilidade nas administrações.

O Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) sublinhou, em declarações públicas, a importância de uma justificação técnica para a substituição dos dirigentes das ULS (ver aqui e aqui). 

Com a informação atualmente disponível de forma pública, é possível realizar uma análise inicial das mudanças ocorridas, à luz dos indicadores assistenciais e de desempenho, ilustrando que a preocupação expressa por Xavier Barreto pode ser considerada: os dados disponíveis permitem avaliar, ainda que de forma limitada, a qualidade da gestão, pelo menos como ponto de partida para maior profundidade na discussão. Além disso, essas alterações podem e devem ser alvo de escrutínio público, indo além de meras opiniões.

Para esta análise, selecionei quatro indicadores de desempenho e quatro das ULS que estiveram no centro das atenções devido à substituição das suas equipas de gestão. Os gráficos abaixo comparam os dados de janeiro a novembro de 2024 (último mês com informação pública) com o ano de 2023. Cada coluna representa uma ULS distinta, e cada linha, um dos indicadores analisados.

O que os dados mostram? Nenhuma das mudanças analisadas parece ter sido motivada por uma deterioração evidente dos indicadores. Vejamos caso a caso.

Conflitos internos – ULS Amadora Sintra

A equipa gestora da ULS Amadora-Sintra saiu por demissão, motivada por conflitos internos que não estavam a ser resolvidos. Contudo, os dados não apontam para uma menor capacidade global de gestão desta ULS. É possível que esses conflitos internos tenham tido uma visibilidade pública desproporcional às suas consequências imediatas no desempenho da ULS. Certamente que a dificuldade em resolver situações internas (importantes) é um problema de gestão a ser tido em conta na avaliação, embora não deva fazer esquecer o desempenho global.

Bom desempenho, substituições frequentes – ULS Tâmega e Sousa

A substituição da equipa da ULS Tâmega e Sousa também não parece ter sido motivada por uma pior performance. Os indicadores analisados revelam uma evolução positiva. O que é provavelmente também resultado da gestão anterior, uma vez que a atual equipa que vai ser substituída está em funções há um ano apenas. Ter duas substituições consecutivas em tão pouco tempo, nomeadas por governos diferentes, pode ser mais problemático para o futuro do que a qualidade intrínseca de cada equipa de gestão.

Apoio Interno e Desempenho Estável – ULS Gaia Espinho

Neste caso, a equipa anterior gozava de forte apoio interno e era percecionada como eficaz. Os dados sugerem uma evolução global essencialmente neutra, com bons resultados no indicador de acesso. No entanto, continua a haver dificuldades na gestão financeira, nomeadamente no controlo dos pagamentos em atraso. Se o orçamento inicial era insuficiente, essa situação pode não ser completamente atribuída à equipa de gestão. Ou seja, as duas situações não serão totalmente independentes. Em qualquer caso, não há um motivo quantitativo evidente, resultado destes indicadores, para a substituição.

Turbulência na relação e resultados positivos – ULS Almada-Seixal

A substituição da equipa da ULS Almada-Seixal foi a mais tumultuosa, mas os indicadores analisados não sugerem um desempenho inferior em 2024 face a 2023. Pelo contrário, há uma melhoria significativa no indicador de acesso. No entanto, é possível que este indicador não capte totalmente dificuldades nos serviços de urgência, que têm sido apontados como um dos principais problemas da unidade.

Os indicadores utilizados foram os possíveis, mas as decisões de substituição das equipas de gestão das ULS devem ter sido tomadas com base em informação mais abrangente, incluindo dados qualitativos que provavelmente não são partilháveis publicamente.

Ainda assim, esta análise demonstra que é possível manter uma base factual mínima para discutir publicamente estas mudanças. Quando decisões estratégicas tão relevantes são tomadas, o escrutínio público deve ir além da retórica da discussão partidária e focar-se na avaliação objetiva do desempenho das equipas de gestão.Se queremos um Serviço Nacional de Saúde mais transparente e eficiente, é de esperar que as mudanças na liderança das ULS sejam também justificadas com critérios técnicos e evidência objetiva. 

Seguem-se vários gráficos que mostram a evolução dos indicadores (fonte: https://www.sns.gov.pt/transparencia/), e após os gráficos, segue-se informação técnica sobre os indicadores, e discussão adicional sobre recrutamento para as administrações das ULS e sobre o relançamento das PPP.

Nota: em cada gráfico a linha vertical azul corresponde à criação da ULS, a linha vertical laranja corresponde à mudança da equipa ministerial (novo governo)

(Informação técnica: Dívida Total, Vencida e Pagamentos em Atraso: Evolução mensal de valores para a dívida das instituições do SNS a fornecedores externos. Mortalidade por AVC Isquémico e Hemorrágico: Nº Falecidos AVC Hemorrágico em 30 dias / Nº Episódios AVC Hemorrágicos X 100 ; Nº Falecidos AVC Isquémicos em 30 dias / Nº Episódios AVC Isquémicos X 100. Inscritos em LIC dentro do TMRG (180 dias) Percentagem de inscritos em LIC (Lista de Inscritos em Cirurgia) com tempo de espera inferior ao Tempo Máximo de Resposta Garantida (TMRG). O objetivo deste indicador é apresentar em valor percentual a proporção do número de doentes inscritos para cirurgia, que se encontram a aguardar intervenção cirúrgica, dentro dos tempos máximos de resposta garantida, no total de doentes inscritos no fim do período em análise.)

Recrutamento para as administrações das Unidades Locais de Saúde

O outro lado da substituição das administrações das ULS é a escolha de quem é nomeado. Aqui, o debate político tem acentuado a escolha de base partidária, e surgiu a sugestão de escolha através de concurso público. 

O elemento central é compreender como é possível recrutar pessoas para estas posições, e que pessoas estão disponíveis. Qualquer processo de seleção de pessoas para as administrações das Unidades Locais de Saúde se não tiver qualquer relação com critérios de alinhamento político terá naturalmente a nomeação com diferentes opções políticas, incluindo pessoas que estão alinhados politicamente com o Governo (tal como pessoas que estarão alinhadas com outros partidos políticos). Simplesmente apontar que se nomeiam pessoas que são do(s) partido(s) do Governo não significa obrigatoriamente que esteja a ser seguido um critério político. Até uma escolha aleatória a partir de um grupo de possíveis gestores terá essa característica. 

Um segundo elemento a ter em conta é a forma como se chega ao conhecimento de quem possa estar disponível para ser gestor. Se houver a utilização de comunicação informal, mesmo incluindo recomendações baseadas em mérito, é natural que a rede de contactos de membros do Governo (ou da Direção-Executiva, quando esta teve a capacidade de nomear administrações de ULS) tenha um maior número de pessoas com o mesmo alinhamento político. As redes de conhecimento terão normalmente um enviesamento de proximidade natural, incluindo a visão política. Mais uma vez, mesmo que não haja um critério político explícito, poderá parecer de outro modo. 

Assim, para se conseguir inferir a partir de nomeações realizadas que o critério político foi determinante é essencial “retirar” estes outros efeitos (de haver pessoas com opção politica próxima do Governo nos nomeados, mesmo que o processo de escolha não tenha esse critério em atenção). Só um trabalho de recolha dos perfis nomeados, e um maior conhecimento do possível campo de recrutamento, notoriamente difícil de fazer, poderá dar uma resposta de base estatística. Ou então haver a declaração de o critério de alinhamento partidário ter sido determinante (e há uma distinção grande entre alinhamento partidário e alinhamento político, no sentido de alinhamento com as mudanças pretendidas pelo Ministério da Saúde de cada momento).

Neste aspeto, é útil perceber o que se passa noutros países europeus (ver aquiaqui e aqui). Cada país tem uma forma de recrutamento das administrações hospitalares que reflete as estruturas e prioridades específicas de cada sistema de saúde. Naturalmente, todos procuram garantir uma liderança hospitalar eficaz.

Em França, encontra-se um sistema centralizado, onde os gestores hospitalares são frequentemente recrutados a partir de profissionais  formados na École des Hautes Études en Santé Publique (EHESP). Em princípio, garante uma boa formação técnica, embora limite a diversidade de perfis à frente das unidades.

Em Espanha, a descentralização pelas várias regiões autónomas leva a que estas nomeações sejam feitas no âmnito regionais, não sendo incomum a  noção de o fator politico estar presente (quando ocorreram mudanças nos governos regionais, também houve mudanças nas administrações das principais unidades).

Itália, que possui igualmente sistemas regionais de saúde, não é muito diferente do que se passa em Espanha, embora seja mais explicita a exigência de qualificações técnicas. A importância relativa do mérito técnico e do fator politico aparenta variar entre regiões e ao longo do tempo.

Em Inglaterra, são utilizados concursos públicos, bem como empresas especializadas em recrutamento. É um sistema mais meritocrático.

A Alemanha, por seu lado, segue um modelo distinto, no qual os conselhos de administração dos hospitais operam com grande autonomia, decorrente também da propriedade do hospital (hospitais públicos, hospitais privados e instituições religiosas métodos distintos de escolha de gestores). O foco está na competência em gestão e na sustentabilidade financeira.

Há diferentes formas de equilibrar a necessidade de alinhamento com as políticas de saúde, a competência profissional e a estabilidade na gestão hospitalar.

Como se poderá melhorar o processo de recrutamento, é a questão central. 

Um primeiro elemento é ter uma forma de identificar e abordar profissionais experientes em gestão de unidades de saúde, com um bom conhecimento das complexidades e do momento de transformação atual do Serviço Nacional de Saúde. 

A utilização de empresas especializadas será uma opção natural, aliada à definição clara de perfis pretendidos. 

Um segundo elemento é ter um bom envolvimento com o meio académico e as associações profissionais (Ordens profissionais e a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares), para alargar a rede de potenciais candidatos interessantes e interessados nas posições disponíveis. 

Um terceiro elemento é haver clareza, em geral, sobre que competências se pretende recolher com as nomeações (mesmo que não haja um concurso público) e que pacotes de remuneração são oferecidos, incluindo a componente de incentivos baseados no desempenho e com métrica de avaliação claras antecipadamente definidas. 

A participação em programas específicos de educação executiva deverá estar presente, para desenvolvimento das capacidades de gestão dos nomeados. 

Um quarto elemento é o recurso ao concurso público, mais moroso e oneroso, situação em que se deverá contemplar igualmente a contratação de gestores portugueses no exterior, e até a contratação de gestores de unidades de saúde de outras nacionalidades, criando um campo mais amplo de recrutamento.

Segundo tópico, relançar as Parcerias Público-Privadas

O segundo assunto é a possibilidade de se retomarem Parcerias Público – Privadas (PPP) para a gestão de unidades do SNS, tal como anunciado recentemente em entrevista. As PPP são um instrumento à disposição do SNS, e como tal não deve ser excluída a sua utilização, se e quando for vantajoso. 

Com um processo de atribuição da PPP que seja concorrencial, torna-se mais fácil assegurar que há essa vantagem, em termos assistenciais e em termos de despesa para o Estado. Se não houver essa vantagem, o Estado pode sempre optar por não atribuir o contrato da PPP. Dito isto, a criação de qualquer PPP é um processo demorado, e tem de resultado num contrato bem elaborado.

Existe atualmente apenas uma PPP com gestão das atividades clínicas, no Hospital de Cascais, tendo sido terminadas as outras três que existiram durante 10 anos (Braga, Vila Franca de Xira e Loures). As PPP referentes à infraestrutura física destes três últimos hospitais continuam a existir, uma vez que desde o momento inicial tinham um horizonte mais alargado que as PPP para a gestão das atividades clínicas.

Esta característica é importante para se compreender melhor o que sejam as intenções do Governo. Ao falar-se de PPP para gestão no SNS, há diferentes alternativas: a gestão de uma ULS como um todo (incluindo por isso hospitais e cuidados de saúde primários) ou a gestão de um hospital (ou centro hospitalar) de uma ULS. 

A ULS poderá ter também, ou não, unidades de saúde familiar modelo C, e como tal geridas com contrato com um parceiro privado.  

O hospital poderá, ou não, ter uma PPP para a gestão da infraestrutura física. As configurações que podem surgir são várias, e com consequências diferentes em termos das necessidades de regras contratuais. Assim, consoante a unidade concreta do SNS, deverá ser estabelecido um contrato eventualmente diferente.

O processo de concurso para escolha do parceiro privado e depois a negociação exata dos termos contratuais (preço, penalizações em caso de incumprimento, indicadores de qualidade assistencial a serem cumpridos, etc.) é longo e com custos significativos para as partes envolvidas, Estado e candidatos (sendo que todos menos um terão um custo de preparação de propostas que não será recuperado). 

Para que este processo concorrencial de atribuição da PPP funcione será necessário ter mais concorrentes interessados que contratos de PPP a serem atribuídos. 

Se houver quatro PPP a concurso, e apenas três interessados em cada um quer apenas uma PPP, dificilmente haverá concorrência, e a eventual vantagem de gestão do sector privado face ao sector público dificilmente será passada para o sector público através de um preço mais baixo proposto pela entidade privada. 

Se cada parceiro privado quiser ter pelo menos 2 PPP, retoma-se o grau de concorrência necessário para a adjudicação por concurso de cada PPP gerar mais vantagens para o SNS. 

Ter um número grande de PPP ao mesmo tempo, sem avaliar quantas delas são interessantes para o conjunto dos operadores privados, nacionais e eventualmente internacionais, será arriscar a que haja manutenção de gestão pública por falta de candidatos privados interessantes.

Assim, a complexidade inerente às várias configurações possíveis, aliada à necessidade de ter mais concorrentes que PPP a atribuir, sugere que dificilmente se lançarão simultaneamente mais de três ou quatro concursos. 

O interesse das entidades privadas poderá não ser muito, sobretudo se anteciparem que o ciclo político terá probabilidade razoável de não dar tempo suficiente para o atual Governo lance e conclua o processo de seleção do parceiro privado. Caso em que essa expectativa é ela própria geradora de menores resultados para a PPP. 

É importante que a discussão se venha a centrar também nas partes técnicas do estabelecimento de PPP, e não unicamente no princípio de ter ou não ter gestão privada no Serviço Nacional de Saúde). 

Ou seja, é uma discussão mais exigente para os partidos políticos do que apenas manifestarem-se a favor ou contra. 


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pacto para a saúde e a DE-SNS, numa entrevista de Adalberto Campos Fernandes

Adalberto Campos Fernandes, ministro da saúde de 2015 a 2018, deu a 8 de janeiro (2025), uma entrevista ao Jornal público em que coloca várias questões (e propostas de resposta) relevantes.

Primeiro, a necessidade de repensar o que significa o Serviço Nacional de Saúde (SNS) assegurar o acesso a cuidados de saúde na combinação de prestação direta própria (pública, via SNS) e de contratação (e/ou aquisição) de serviços ao sector privado (com ou sem fins lucrativos). Não há referência à revisão de papel do SNS enquanto mecanismo garante de proteção financeira. permanecendo por isso sem contestação a ideia do SNS financiado por impostos como instrumento central de proteção financeira, aliás como estabelecido na Constituição da República Portuguesa. E a revisão desta combinação é vista como levando diversos anos a concretizar, indo além de uma legislatura de 4 anos. Relativamente a este ponto, embora entendendo que seja natural a proposta avançada de um pacto político para a saúde como forma de dar estabilidade à “reforma” de vários anos, creio que se pode pensar numa alternativa- encarar a transformação necessária como um processo permanente de aprendizagem e ajustamento do SNS. É uma forma de reconhecer que qualquer reforma pensada hoje estará provavelmente desatualizada quando terminar a sua implementação. Daí que surge como mais interessante, a meu ver, a noção de aprendizagem e ajustamento regular (pensado em permanência no que deve ser), numa lógica de construção de um sistema de saúde e de um serviço Nacional de Saúde resilientes. Importa por isso fazer uma definição de mecanismos de ajuste contínuo do SNS (por exemplo, um departamento de estudos e de aprendizagem permanente na ACES, ou na DE-SNS, de no próprio ministério da Saúde) em vez de um pacto para a saúde. Claro que as duas ideias não são mutuamente exclusivas.

O segundo grande tema do artigo é o papel da DE-SNS – Direção Executiva do SNS (incluindo a possibilidade da sua extinção). Ora, quanto à DE-SNS, partilho a visão expressa em documento elaborado há poucos anos pelo Health Cluster Portugal, onde se detalha um papel claro de organização e e de gestão para a DE-SNS. O problema atual da DE-SNS não está propriamente na sua existência. Está na ambiguidade de relacionamento que existe dentro do sector público da saúde, com funções repartidas entre ACSS, DE-SNS, SPMS e Ministério da Saúde (por exemplo, as negociações salariais e de condições de trabalho com os sindicatos das profissões de Saúde). As múltiplas “articulações” a estabelecer entre entidades, e as várias consultas, nos processos de decisão, de umas entidades a outras tendem a criar ambiguidade de responsabilidade de decisão e maias morosidade na decisão. É como se uma empresa de grande dimensão se decidisse separar em várias, ficando uma com o CEO (e COO (Chief operating officer)), outra com o CFO (Chief financial officer), outra com o CIO (Chief information officer), etc. Há uma clara necessidade de estabelecer processos de decisão mais escorreitos e sem dúvidas sobre que decisões pertencem a que entidade. Também julgo central que a DE-SNS assuma a realização de explicitar que caminho se pretende seguir na organização das unidades de prestação de cuidados de saúde do SNS, criando os documentos que sirvam de guia estratégico para as Unidades Locais de Saúde (afinal estas são a unidade fundamental em termos da prestação de cuidados de saúde), tendo em conta a sua autonomia de gestão. Precisam de ter um quadro orientador para a definição das suas estratégias próprias. O estabelecer a estratégia global, dentro da visão que seja estabelecida pelo Ministério da Saúde, e a sua comunicação efectiva às ULS deverá ter primazia, na atuação da DE-SNS, face à micro gestão das ULS. Um exemplo dessa micro gestão é ser a DE-SNS a controlar (ou a definir diretamente/ escolas de urgência hospitalar (tarefa que deverá ser realizada por cada ULS). Assim, antes de avançar para uma decisão de extinção da DE-SNS, será de lhe dar o quadro de atuação adequado. As dúvidas levantadas por Adalberto Campos Fernandes têm toda a razão de ser, e é necessário haver uma (re)definição de responsabilidades, incluindo a de condução (explicitação e comunicação) de uma estrátégia para a rede de unidades de prestação de cuidados de saúde que faz parte do SNS. 

(imagem criada com recurso a instrumentos de IA)


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a propósito de “oportunismo de saúde”

Foi recentemente aprovada uma alteração às regras de acesso de migrantes aos serviços de saúde do SNS (noticia aqui, por exemplo). A discussão que tem estado à volta do tema tem sido desordenada e desorganizada, em parte por falta de informação, em parte por falta de sistematização, revelada pela má utilização de conceitos. Se propositadamente ou se por ignorância, não sei.

Há três pontos centrais a clarificar : a) de que problema se fala? b) que informação há sobre esse problema em Portugal? c) que exemplos de outros países nos podem ajudar? Só depois de responder a estas perguntas é razoável colocar opções de medidas (incluindo não fazer nada) para definição de objetivos pretendidos, discussão e decisão.

a) de que problema se fala?

Aparentemente, pelo discurso público mais sonoro, a preocupação será com a utilização abusiva do Serviço Nacional de Saúde por estrangeiros. Coloco estrangeiros propositadamente. Pretende-se evitar que pessoas de outros países, de nacionalidade que não é a portuguesa, venham ao Serviço Nacional de Saúde aproveitar serviços gratuitos de elevado custo, por vezes com grande elaboração e preparação dessa visita.

Se é esse o problema, é muito diferente da utilização do Serviço Nacional de Saúde por residentes que não tenham nacionalidade portuguesa, estejam em situação legal ou não, por turistas que por motivos acidentais necessitam de recorrer a cuidados de saúde, ou por “turistas de saúde”. Por “turismo de saúde” deve-se entender uma atividade organizada, e paga ao sistema de saúde, de pessoas de um país recorrerem a prestadores de cuidados de saúde noutro país. Para uma clarificação do conceito veja-se como introdução este texto de Neil Lunt, este livro sobre o tema, as iniciativas do Health Cluster Portugal para fazer de Portugal um destino de turismo de saúde (com financiamento de programas comunitários), e até no Serviço Nacional de Saúde se procurou estar ativo (notícia com mais de uma década, relativa a um hospital grande de Portugal). Nenhuma destas últimas três situações é, de acordo com o que me parece estar na discussão público, o alvo das medidas propostas.

É então preciso focar a atenção no “uso abusivo”, o que se chamar de “oportunismo de saúde” (uma vez que a expressão “turismo de saúde” significa algo completamente diferente).

b) que evidência existe sobre “oportunismo de saúde”?

As informações sobre utilização dos serviços de saúde por residentes de outras nacionalidades, qualquer que seja o seu estatuto legal em Portugal (propositado, ou por falta de capacidade dos serviços públicos portugueses de o regularizarem) não respondem a essa pergunta. Até porque o “oportunismo de saúde” poderá ser feito de forma completamente legal à luz das regras existentes (o célebre caso de acesso a medicamentos de preço muito elevado não é uma situação de um residente não nacional em situação irregular…). O que é preciso conhecer é que situações de tratamento de custo muito elevado, associadas com pessoas não residentes em Portugal, e correspondendo a casos programados (e não fortuitos, de acidente), existem. A informação de atendimentos em serviços de urgência do Serviço Nacional de Saúde (como parece ser o caso da informação que está a ser recolhida, a atender a esta noticia) é irrelevante para essa caracterização. Mais relevante será saber o valor do tratamento de problemas crónicos de custo elevado, ou programados (como eventualmente partos), associados com não residentes em Portugal e que vão continuar a ser não residentes.

A falta de clareza sobre o problema que se quer discutir faz com que se usem os dados (eventualmente) disponíveis, e não a informação que é relevante para o problema. É uma versão da célebre anedota sobre procurar as chaves onde há luz e não onde foram perdidas (versão banda desenhada, para mais informação basta usar o google com “streetlight effect”).

Conclusão a retirar: sem clareza quanto ao que se identifica como problema vai-se estar a procurar informação que não é relevante, e com isso distorce-se a discussão e até se muda o problema (significa que provavelmente a “solução” não será adequada para o verdadeiro problema, e terá apenas efeitos negativos sobre quem não se pretendia atingir).

c) O que sabemos sobre restrições no acesso a cuidados de saúde por parte de residentes não nacionais, em situação irregular, aqueles a que presumivelmente se quer cobrar o uso do Serviço Nacional de Saúde?

Este tipo de medida foi introduzido em 2012 em Espanha (Real Decreto-ley 16/2012), excluindo migrantes não documentados do acesso a cuidados de saúde, e a decisão foi posteriormente revogada.

Uma análise desta medida, realizada por L. Peralta-Gallego, J. Gené-Badia, P. Gallo, em Effects of undocumented immigrants exclusion from health care coverage in Spain, Health Policy, 122 (2018) 1155–1160, está disponível aqui. Outra análise realizada em Barcelona revelou que os migrantes não documentados , por falta de acesso a serviços de saúde, tiveram menos uso de cuidados de saúde primários mas mais situações de doença contagiosa (ver aqui: Lancet Planetary Health), o que sugere a importância de manter o acesso a todos os residentes, mesmo que sejam migrantes sem documentação. Uma análise sobre os efeitos decorrentes desta medida na saúde dos migrantes indica que houve um aumento importante da mortalidade entre estes migrantes não documentados (A. Juanmarti Mestres, G. López Casasnovas, J. Vall Castelló, 2021, The deadly effects of losing health insurance, European Economic Review, 131, ver aqui). Há também informação sobre um maior uso dos serviços de urgência por falta de acesso a outros serviços.

A política foi alterada em 2018, seis anos depois, alargando a cobertura do serviço nacional de saúde espanhol a todos os residentes, incluindo migrantes sem documentação (ver Real Decreto-Ley 7/2018, e aqui). Atualmente, os migrantes sem documentos têm direito aos mesmos benefícios que os residentes depois de estarem em Espanha durante 90 dias ou através de um relatório dos serviços sociais. Ou seja, o apelo imediato que a medida teve em 2012 não sobreviveu a um escrutínio mais amplo da sociedade espanhola, embora tenha levado 6 anos a ser revertida.

Para informação sobre a situação em vários países europeus, sugiro uma consulta aqui (UHC Watch – WHO Barcelona Office for Health Systems Financing).

Daqui resulta que há o risco de se adoptarem medidas que não resolvem o problema que aparentemente se diz querer resolver, e que terão efeitos negativos sobre quem não se pretende atingir. Ou seja, é uma medida sem ou com muito poucos benefícios (face ao objetivo pretendido) mas com custos (que podem ser elevados) que não estão a ser tidos em conta.

Será interessante saber se as medidas propostas sobrevivem a uma avaliação prévia de impacto legislativo (sugiro a leitura de um documento da Assembleia da República, elaborado em 2024, avaliação prévia de impacto legislativo pelo Parlamento, das Metodologias de Avaliação de Impacto Normativo do Ministério da Justiça sobre produção legislativa, dos Guias de Avaliação de Impacto Legislativo para se ter uma ideia do que se deve fazer, elaborados PlanAPP, um departamento público de apoio à definição de políticas públicas, e o manual de Carlos Blanco de Morais, Guia de Avaliação de Impacto Normativo).

Chegando aqui a pergunta natural é que soluções alternativas devem ser colocadas como opção de resolução do problema. Para isso, é preciso primeiro conhecer as características reais do problema que se quer resolver. Até porque as declarações públicas de “indignação” com abuso por parte de alguns não residentes não coincidem com as pessoas a quem as medidas propostas se destinam, pelo menos de acordo com o que tem sido relatado (algo que já foi notado, ver aqui).

Se estivermos a falar de partos de pessoas não residentes, e que depois sairão do país, é natural que se procure uma solução diferente de pessoas que procuram residir em Portugal ou terem a nacionalidade portuguesa para usufruirem de medicamentos de muito elevado custo. Sem ter a informação sobre a preocupação base, a discussão utilizando outros dados será certamente distorcida, as decisões tomadas provavelmente erradas. Por exemplo, pedir comprovativos de residência a migrantes em situação irregular, que os terão de apresentar posteriormente se tratados por um problema urgente, não resolve a primeira situação (vai-se conseguir impedir a saída do país de mulheres que tenham vindo ter filhos no SNS, como se refere que sucede?) nem a segunda situação (para tratamentos continuados de muito elevado custo, valerá a pena a despesa e o tempo de ser residente ou nacional, com situação regularizada). Apenas se cairá na situação que houve em Espanha durante 6 anos (ver acima).


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sobre o programa “Ligue antes, salve vidas”

Nos últimos tempos têm surgido várias notícias e informações sobre estratégias a adotar pelas unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para o maior período de pressão sobre as urgências hospitalares que está associado usualmente ao Inverno. As duas grandes linhas de atuação são, tanto quanto se depreende da comunicação recente do SNS, a referenciação para consultas nos cuidados de saúde primários (o alargamento do projeto “ligue antes, salve vidas”, iniciado no segundo semestre de 2023 na zona de Póvoa de Varzim/Vila do Conde) e os centros de atendimento clínico (trazendo capacidade do sector privado para responder à procura dirigida ao SNS, que se traduz em tempos de espera muito elevados sempre que há falta de capacidade significativa nas unidades públicas.
A existência de quase um ano de experiência do projeto “ligue antes, salve vidas”, com a obrigação de telefonar para o SNS, em Póvoa de Varzim/Vila do Conde, e a recente disponibilização de informação estatística sobre a atividade da urgência hospitalar (até ao mês de setembro de 2024) permite uma primeira visão dos resultados.
Os quatro meses de atividade do Centro de Atendimento Clínico de Lisboa, para o qual surgiu informação na imprensa, ainda não estão refletidos na informação disponível para a utilização da urgência do Hospital de Santa Maria (presumivelmente o principal beneficiário da abertura deste Centro de Atendimento Clínico).
O projeto “ligue antes, salve vidas” em Vila do Conde/Póvoa do Varzim teve uma fase inicial de informação à população (de maio a dezembro de 2023), e a fase atual iniciou-se em janeiro de 2024. Nesta segunda fase, a regra é só serem atendidos em serviço de urgência hospitalar os casos que forem previamente triados pelo serviço telefónico SNS24, que se espera remeta os casos mais simples para os cuidados de saúde primários, com agendamento direto de consultas no próprio dia ou no dia seguinte. A chamada para o SNS24 tem de ser feita, mesmo que o seja a partir de um telefone fisicamente colocado perto do serviço de urgência hospitalar.
A medida de sucesso do projeto não é a existência de referenciação nos episódios de urgência, dado que essa vai existir sempre e por isso, por definição, aumenta face ao que sucedia anteriormente. O efeito que interessa conhecer é sobre o número de urgências atendidas por comparação com o que sucederia na ausência do projeto (o que é uma situação que não se observa diretamente).
Para procurar perceber os efeitos presentes, é útil comparar a evolução do número de episódios de urgência, na urgência hospitalar da ULS PVVC face ao seu passado, mas também face à evolução de outras unidades hospitalares, para captar efeito comuns e que possam tornar menos claro se o que se observou é resultado do projeto ou de outras medidas gerais, ou de uma tendência que viesse de meses e anos anteriores. No caso da urgência da Póvoa de Varzim/Vila do Conde o ponto de comparação mais natural é com a urgência hospitalar de Barcelos (pela dimensão, pela semelhança da população servida em termos da sua demografia e pela proximidade de evolução que houve antes do início do projeto). E felizmente, durante os nove meses de dados disponíveis, a unidade hospitalar de Barcelos não estava inserida no projeto.
O primeiro gráfico ilustra a evolução das urgências hospitalares nas duas unidades, usando a informação publicamente disponível. As linhas verticais representam os momentos chave: o início da informação sobre o projeto “ligue antes, salve vidas” na zona da urgência hospitalar de Póvoa do Varzim/Vila do Conde; e o momento de referenciação obrigatória.
O segundo gráfico tem a evolução da diferença entre urgências hospitalares da unidade de PVVC e da unidade de Barcelos.


Na análise visual (que é confirmada por análise estatística) resultam duas conclusões: a) a persuasão a menor utilização dos serviços de urgência através de comunicação na primeira fase do “ligue antes, salve vidas” não surtiu qualquer efeito; b) a obrigação da referenciação tem como resultado, ao fim de sensivelmente 4 meses, uma redução no número de urgências de cerca de 10%, já tendo em consideração uma evolução geral que teria lugar de qualquer modo (que é capturada pela diferença para a urgência hospitalar de Barcelos).
Antes de classificar como sucesso o projeto “ligue antes, salve vidas” (na zona de Póvoa de Varzim/Vila do Conde) é importante completar esta informação com outros elementos:
a) houve um desvio da procura de urgências para outras unidades hospitalares? No caso na zona geográfica da Póvoa de Varzim/Vila do Conde, o desvio de procura mais natural é para a urgência de Matosinhos. Os dados disponíveis não têm indícios desse desvio de procura;
b) houve o atendimento dessas pessoas nos cuidados de saúde primários, de forma satisfatória? Esta informação não está publicamente disponível, mas certamente a ACSS ou a Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde terão acesso a essa informação.
c) qual o grau de aceitação da população? (é natural que haja primeiro um aumento da insatisfação, mas será um efeito permanente ou dilui-se com o tempo).
Esta é a informação que a DE-SNS deveria recolher e analisar (e eventualmente
Se há um ano atrás, a informação pública sobre o projeto indicava ausência de qualquer efeito, a mudança de estratégia de “convencimento da população” para “obrigação da população” em usar a linha SNS24 terá tido os resultados pretendidos (pode-se discutir se a magnitude de redução de idas às urgências é a desejada, ou a esperada, ou a aproriada, ou não, mas de momento o efeito de redução da utilização da urgência é claro).

Exemplos de alguma informação pública sobre o projecto “ligue antes, salve vidas”

Documento da Direção-Executiva

Expansão do projeto – DE-SNS

ULS Braga – YouTube

anuncio inicial, junho 2023

(fazendo google do termo “”ligue antes, salve vidas” encontram-se muitas noticias e relatos)