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Conferência “Portugal que temos e o Portugal que queremos ter”

Na sexta-feira, 17/01/2025, tive o prazer de participar numa das sessões da conferência dos 160 anos do DN (parabéns DN!)


O alinhamento do dia leva-me a fazer um pouco de resumo das duas sessões, a que acrescento alguns pontos adicionais que não houve tempo de introduzir.

O ínicio da tarde da conferência tinha:

As perspetivas para a economia portuguesa

Pedro Reis, Ministro da Economia

14h20 – As opções estratégicas da economia portuguesa

António Mendonça, Bastonário da Ordem dos Economistas

Isabel Ucha, CEO da Euronext Lisbon

João Moreira Rato, Presidente do Instituto Português de Corporate Governance

Pedro Pita Barros, Professor da Nova Business School

Moderação por Nuno Vinha, Diretor Adjunto do Diário de Notícias

As perspetivas para a economia portuguesa

As perspetivas para a economia portuguesa inserem-se num contexto internacional marcado por desafios e oportunidades. A confiança em políticas que fomentem o crescimento ganha força devido ao controlo da inflação, enquanto a Comissão Europeia, ao implementar o relatório Draghi, reforça a ideia de um novo ciclo que impulsione a economia europeia. Há aqui uma perspetiva positiva.

Prevê-se (deseja-se) a criação ou o crescimento de clusters estratégicos em setores como defesa, espaço, energia, indústria farmacêutica e logística, além de iniciativas relacionadas com a reindustrialização europeia. No entanto, há grande incerteza decorrente do conflito na Ucrânia, que representa um ponto de interrogação para 2025, considerado um ano de transição que poderá marcar uma evolução positiva ou negativa.

Portugal encontra-se numa posição estratégica para aproveitar estas dinâmicas globais. A aposta no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) surge como uma base essencial para preparar o país para um futuro mais otimista em 2026. O país tem sido reconhecido como um destino de políticas favoráveis ao investimento, mas enfrenta o desafio de reduzir tanto a carga fiscal como a burocrática para aumentar a atratividade para investidores estrangeiros. Além disso, o papel das grandes economias europeias, como Alemanha e França, é crucial neste contexto, dado o impacto da sua trajetória em áreas como a independência energética, a digitalização e as mudanças políticas.

A reindustrialização e a transição para uma economia verde são vistas como pilares centrais do crescimento sustentável. Esta visão inclui a promoção de tecnologias avançadas, mas com a cautela de evitar investimentos em tecnologias que ainda não estejam suficientemente maduras. A ideia de clusterização por blocos económicos, com enfoque na autonomia estratégica e integração europeia, surge como um caminho promissor. A verticalização das indústrias, a criação de projetos de grande dimensão e a atração de centros de competência europeus são considerados essenciais para a competitividade do país.

A simplificação dos processos administrativos é outro elemento-chave abordado. Iniciativas como a substituição de verificações manuais por verificações automáticas e a adoção de mecanismos pós-verificação visam desburocratizar o funcionamento do Estado. Esta abordagem foca-se na desmaterialização e na redução das obrigações de reporte, criando um ambiente mais ágil para as empresas e facilitando a execução de novos projetos.

Assim, do Ministro da Economia, há, como se poderia esperar, uma perspetiva positiva para alguns sectores, embora me pareça que teria sido igualmente útil saber que sectores poderão perder posicionamento relativo, pois não acredito que seja possível crescer significativamente em todas as áreas de atividade económica ao mesmo tempo (até porque algumas delas irão competir pelos mesmos recursos humanos).

As opções estratégicas da economia portuguesa

Esta sessão tem um título muito aberto, fazendo com que a discussão se disperse por vários aspetos, de acordo com a formação e a experiência profissional de cada um dos intervenientes. 

Sem preocupação de identificar quem introduziu que tema, porque várias observações são suficientemente consensuais para receberem concordância de vários, da maioria ou nalguns casos, até de todos os intervenientes.

Foi referido que a dimensão do capital humano é crítica, o que será um dos pontos unânimes. A incapacidade de reter profissionais altamente qualificados, devido a condições salariais e de carreira pouco competitivas, reflete-se como uma limitação estrutural. É necessário criar condições atrativas para estas profissões, investindo em serviços de valor acrescentado e aprendendo com modelos de sucesso, como o irlandês. A automatização industrial, que aproxima cada vez mais a indústria do setor de serviços, é vista como um fator que redefine a produtividade, exigindo mais robótica e inovação. Aqui, a meu reparo pessoal é fazer mais sentido tornar Portugal um local interessante para ter as empresas com as posições que requerem elevadas qualificações, qualquer que seja a nacionalidade da pessoa. É mais exigente, e provavelmente mais duradouro.

O papel da inteligência artificial é destacado como uma área de potencial estratégico. Portugal tem oportunidades para se posicionar como um polo de inovação nesta área, investindo em infraestruturas como centros de dados e na melhoria da qualidade dos dados da administração pública. A simplificação regulatória e o fomento à inovação tecnológica podem tornar o país mais competitivo a nível global. No entanto, para isso, é necessário alinhar as políticas fiscais e regulamentares, garantindo uma paridade entre impostos para estrangeiros e portugueses, além de flexibilizar a legislação educacional para promover a formação de talentos.

No campo financeiro, enfatizou-se a importância de uma reforma fiscal que permita uma melhor canalização das poupanças para investimentos produtivos. Atualmente, grande parte das poupanças portuguesas está alocada em instrumentos de baixo risco e baixa remuneração, o que limita o seu impacto no crescimento económico. É fundamental explorar alternativas como mecanismos privados de acumulação de fundos para a reforma, incentivando uma maior diversificação e rentabilidade dos investimentos.

Em última análise, reflete-se sobre o papel de Portugal no panorama europeu e global, destacando a necessidade de pensar estrategicamente o futuro do país. Esta reflexão exige, a meu ver, uma abordagem diferente na noção de resiliência associada ao PRR (mais dinheiro), deve-se ter uma ideia de resiliência como capacidade de antecipar choques (vários foram apontados como possíveis face à evolução geopolítica mundial), absorver impactos, aprender com a experiência e ajustar-se rapidamente às mudanças. 

Comentário geral e algumas coisas mais

Curiosamente, a conversa acabou por não tocar num ponto que politicamente tem vindo a emergir: a escolha entre política industrial focada em sectores (ou até em empresas que sejam campeões nacionais) e política industrial focada sobretudo criação de condições estruturais para o crescimento dos sectores que melhor os aproveitem.  Para conseguir perceber melhor as opções e as escolhas a fazer deve-se começar por explicitar quais são os objectivos que se tem para a política industrial.

Coloquemos como objectivo central a melhoria das condições de vida, o que inclui o crescimento económico medido pelo aumento do PIB, mas também a procura da sustentabilidade ambiental, maior equidade na distribuição de rendimento e riqueza, e maior qualidade de vida.  E se o crescimento económico é objetivo, então o crescimento da produtividade é um elemento central para o desejado crescimento económico, com aumento de salários e de riqueza. O foco deve estar em olhar para opções estratégicas que tenham a capacidade de aumentar a produtividade da economia portuguesa na próxima década.

Aumentar a produtividade média da economia decorre de conseguir aumentar a produtividade das empresas (através de investimento e de inovação), de fazer crescer as empresas de maior produtividade em cada sector, transformar ou fazer sair de atividade as empresas de menor produtividade, e aceitar que sectores económicos de maior produtividade crescem e sectores de menor produtividade encolhem. Não se pode desligar a evolução da produtividade da dinâmica empresarial.

Em geral, nos últimos tempos, quando se fala de opções estratégicas, remete-se para a escolha de sectores que se deve apoiar, em termos de políticas públicas, de alguma forma. O “alguma forma” pode ser dar apoios diretos ou indiretos ou pode ser remover obstáculos ao crescimento da produtividade.

Olhando para os obstáculos principais, consegue-se também perceber as motivações das várias das propostas que surgem com regularidade, sobre a necessidade de facilitar e induzir o investimento em inovação, mudanças no mercado de trabalho e falta de escala de muitas empresas portuguesas.

Então o que podem ser opções estratégicas? 

Tenho uma clara opção por criar primeiro condições estruturais, e depois remover barreiras que possam existir em alguns sectores. Estar a escolher sectores pode correr mal, até porque essa escolha é feita num contexto onde muitos outros países têm empresas dinâmicas, e/ou intervenções de muito maior dimensão do que possível fazer a partir de Portugal.

Três “opções estratégicas” que me parecem centrais são:

Infraestrutura digital: assegurar o seu desenvolvimento de modo a que possa ser aproveitada por todas as empresas, incluindo as PME mais pequenas, e que favoreça o seu aumento de dimensão. Usar a Alemanha como ponto de referência para a criação de programas específicos ajudam pequenas e médias empresas (PME) a adotar tecnologias digitais, fornecendo financiamento, formação e acesso a redes de inovação é um bom ponto de partida.

Uma segunda grande opção estratégica é deixar de proteger o status quo e aceitar que o crescimento da produtividade decorre também da dinâmica empresarial, da criação de novas empresas e desaparecimento de outras. As políticas públicas devem ajudar às transições – colocar rapidamente disponíveis os ativos produtivos das empresas que fecham para que outras os possam usar – a preocupação com o fecho de empresas tem de incluir, além do que sucede aos trabalhadores, como se coloca a uso rapidamente os ativos produtivos dessas empresas, facilitar a passagem de trabalhadores de uns sectores para outros através da formação de novas competências. 

A escolha de setores de atividade estratégicos é sempre tentadora, e se há bons motivos para argumentar que deve ser feita, também se encontram bons motivos para argumentar porque é dificil ser bem feita (como saber o que resultará no futuro de forma segura, com objetividade suficiente para ultrapassar entusiasmos do momento?).  A minha sugestão é que essas escolhas sejam feitas com base nas áreas onde a investigação cientifica portuguesa se tenha conseguido destacar mais.

Embora seja frequente falar-se na maior ligação das universidades às empresas, ou das empresas às universidades, a opção estratégica deverá ser a de mudar a forma dos mecanismos financeiros usados: dar apoio às empresas, com discriminação positiva para pequenas e médias empresas (mas não as demasiado pequenas), para comprarem serviços de desenvolvimento tecnológico às universidades – pelo fluxo do dinheiro, tornar claro que as universidades têm de criar inovação para dar resposta às solicitações das empresas, que por sua vez devem ter como objetivo produtos e serviços que possam ser colocados no mercado europeu, pelo menos. Na verdade, o que importa é criar mecanismos financeiros que levem às empresas identificarem oportunidades de inovação, de produto ou de processo, que levam às universidades, que ganham se responderem aos desafios vindos das empresas. A inovação virá da universidade, mas a identificação da necessidade é trazida pela empresa. Ou seja, deixar de proteger o status quo também no formato dos mecanismos usados, e ter a ambição de procurar outros mecanismos que possam ser mais eficazes.

A forma pela qual se regem os apoios públicos é também ela uma opção estratégica até certo ponto. Que áreas de atividade económica se irão desenvolver mais decorrerá da capacidade de identificar oportunidades de forma descentralizada, por parte de cada empresa, e não da vontade de uma burocracia mais, ou menos, iluminada quanto aos sectores de atividade que serão campeões nacionais no futuro.

A terceira opção estratégica é pensar sempre à escala europeia, pelo menos. Qualquer apoio, sectorial ou a empresas, que seja dado através das políticas públicas deverá favorecer as empresas que tenham capacidade demonstrada ou a ambição clara e o potencial de a concretizar de serem internacionais. É essencial que as vantagens de dimensão do mercado europeu sejam usadas para garantir maior produtividade. Desenvolver projetos, empresas ou mesmo sectores de atividade que apenas têm viabilidade financeira de longo prazo se mantiverem uma situação protegida em Portugal deverão ser preteridos.

Não sendo propriamente uma opção estratégica, há uma preocupação adicional a ter em qualquer típo de política industrial que seja adoptada: assegurar a transparência e o escrutínio público da aplicação dos fundos públicos disponibilizados.

Uma escolha direta de setores preferenciais tem dois problemas de partida: a) saber quais são esses setores de sucesso futuro, em que a determinação burocrática poderá ser pior do que a tentativa e erro de ideias de forma descentralizada; b) outros países vão tentar fazer o mesmo, e como assegurar então que se consegue ter sucesso se todos estiverem a procura fazer o mesmo. Para que uma escolha de setores específicos possa ter resultados positivos, e não apenas “afundar” riqueza do país via despesa pública, é necessário garantir transparência e escrutínio público em todas as fases dessa escolha, é necessário evitar “teimosia de longo prazo” (continuar a insistir quando a informação que se recebe e o conhecimento que se constrói aconselham o contrário), e é necessário mostrar o retorno económico e social dos investimentos públicos realizados.

Estas ideias podem ser usadas para criar uma lista de verificação para avaliar propostas de opções estratégicas na economia portuguesa:

  1. A proposta de opção estratégica, seja a nível das infraestruturas, das empresas ou sectorial, tem potencial para melhorar a produtividade média da economia através da inovação e/ou digitalização? 
  2. A proposta de opção estratégica tem, a médio prazo, capacidade para criar ou aumentar a escala europeia ou mundial de empresas de base portuguesa?
  3. A proposta de opção estratégia favorece o alinhamento do meio cientifico e académico com as atividades económicas, no sentido que as universidades e os centros de investigação têm mais interesse em fornecer soluções para desafios identificados pelas empresas, seja no médio prazo através da investigação fundamental, seja no curto prazo, através de investigação aplicada?
  4. A proposta opção estratégica é susceptível de incluir medidas de requalificação e transição dos trabalhadores para setores de mais elevada produtividade, facilitando a adaptação a novos trabalhos com novas competências?
  5. A proposta de opção estratégia, se beneficiar de apoio de fundos públicos, tem mecanismos de transparência e responsabilização, assegurando que as decisões de financiamento público são transparentes, sujeitas a escrutínio e associadas a retornos económicos e sociais mensuráveis?

As respostas podem ser positivas, neutras ou negativas. Se uma proposta de  “opção estratégica” (o que quer que seja incluído nesse termo) falhar em dois ou mais destes critérios (tiver duas ou mais respostas negativas), deverá ser reformulada ou abandonada.

Deixo a cada um o “divertimento” de aplicar estas cinco perguntas à sua “opção estratégica” preferida.


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Observatório da dívida dos hospitais EPE, segundo a execução orçamental (nº 82, janeiro de 2025)

Em dezembro de 2024 tornou-se conhecido o valor da habitual transferência extraordinária para as entidades do SNS (agora as Unidades Locais de Saúde, anteriormente os hospitais EPE) regularizarem as dívidas vencidas (que incluem os pagamentos em atraso, ou seja 90 dias de atraso adicionais aos 90 dias que definem o que é a dívida vencida). 

O valor de cerca de 975 milhões de euros aproxima-se, em larga medida, do valor esperado da dívida vencida até ao final do ano (os números finais de 2024 ainda não se encontram no domínio público), sendo superior ao valor dos pagamentos em atraso conhecidos. Em novembro de 2024, o último valor conhecido à data de escrita, os pagamentos em atraso tiveram uma magnitude de 554,5 milhões de euros, com um ritmo médio mensal de crescimento de cerca de 55 milhões de euros (embora em aceleração).

Será de esperar que em janeiro de 2025 o valor dos pagamentos em atraso seja residual, uma vez que a transferência realizada deverá permitir eliminar quer o stock de pagamentos em atraso quer o fluxo provável adicional a partir da dívida vencida (que se não for paga passará a pagamentos em atraso).

Deste ponto de vista, a transferência definida em dezembro de 2024 tem o potencial de (quase) “zerar” os pagamentos em atraso.

Em contraponto a esta visão positiva do efeito, imediato, há a tradição de transferências passadas, de elevada magnitude, não terem conseguido, nos últimos 13 anos (desde que há dados fiáveis e regulares), resolver o problema. Em anos recentes, os pagamentos em atraso no final do ano, após a transferência extraordinária, aproximaram-se de zero, e os orçamentos iniciais do SNS tiveram reforços generosos das verbas iniciais.

Mesmo no ano de 2024, o ritmo de crescimento dos pagamentos em atraso foi em média de 55 milhões de euros por mês, sem efeito aparente resultante da mudança de Governo ou de mudança da Direção-Executiva do SNS (sensivelmente pouco mais de um mês depois da entrada em vigor do novo Governo). 

Assim, embora o Governo tenha criado condições que surgem adequadas para acabar com o problema dos pagamentos em atraso, é natural que permaneça alguma dúvida sobre se tal será o caso. Apesar de só no futuro se vir a conhecer o resultado deste esforço, também aparenta ser razoável esperar que futuras decisões sobre continuação, ou até substituição antecipada, de equipas de gestão das ULS possa vir a estar ligada à evolução dos respetivos pagamentos em atraso, como indicador da respetiva capacidade de gestão, num quadro inicial de orçamento “adequado” e baixo volume de dívida vencida e de pagamento em atraso, um renovar do problema dos pagamentos em atraso numa ULS terá de ser muito claramente explicado. O facto de se “limpar” dívidas passadas deverá permitir um pagamento atempado regular, o que se deverá materializar em preços mais baixos de fornecedores (que deixaram de precisar de incluir no preço o custo financeiro de receber as verbas devidas com grande atraso).

Neste contexto, é de esperar que em 2025 haja algures no Ministério da Saúde ou no SNS uma equipa com a missão de acompanhar a gestão financeira das ULS (seja na Direção-Executiva do SNS, seja na Secretaria de Estado da Gestão da Saúde, ou mesmo com ambas, com alguma redundância, que poderá ser útil nesta fase).

As duas figuras seguintes ilustram o ciclo de crescimento dos pagamentos em atraso, seguido de regularizações extraordinárias, seguidas de novo crescimento. A segunda figura contém as estimativas de crescimento médio mensal, com um valor de 55 milhões de euros na última fase de tendência, que é similar os meses anteriores à pandemia.


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pacto para a saúde e a DE-SNS, numa entrevista de Adalberto Campos Fernandes

Adalberto Campos Fernandes, ministro da saúde de 2015 a 2018, deu a 8 de janeiro (2025), uma entrevista ao Jornal público em que coloca várias questões (e propostas de resposta) relevantes.

Primeiro, a necessidade de repensar o que significa o Serviço Nacional de Saúde (SNS) assegurar o acesso a cuidados de saúde na combinação de prestação direta própria (pública, via SNS) e de contratação (e/ou aquisição) de serviços ao sector privado (com ou sem fins lucrativos). Não há referência à revisão de papel do SNS enquanto mecanismo garante de proteção financeira. permanecendo por isso sem contestação a ideia do SNS financiado por impostos como instrumento central de proteção financeira, aliás como estabelecido na Constituição da República Portuguesa. E a revisão desta combinação é vista como levando diversos anos a concretizar, indo além de uma legislatura de 4 anos. Relativamente a este ponto, embora entendendo que seja natural a proposta avançada de um pacto político para a saúde como forma de dar estabilidade à “reforma” de vários anos, creio que se pode pensar numa alternativa- encarar a transformação necessária como um processo permanente de aprendizagem e ajustamento do SNS. É uma forma de reconhecer que qualquer reforma pensada hoje estará provavelmente desatualizada quando terminar a sua implementação. Daí que surge como mais interessante, a meu ver, a noção de aprendizagem e ajustamento regular (pensado em permanência no que deve ser), numa lógica de construção de um sistema de saúde e de um serviço Nacional de Saúde resilientes. Importa por isso fazer uma definição de mecanismos de ajuste contínuo do SNS (por exemplo, um departamento de estudos e de aprendizagem permanente na ACES, ou na DE-SNS, de no próprio ministério da Saúde) em vez de um pacto para a saúde. Claro que as duas ideias não são mutuamente exclusivas.

O segundo grande tema do artigo é o papel da DE-SNS – Direção Executiva do SNS (incluindo a possibilidade da sua extinção). Ora, quanto à DE-SNS, partilho a visão expressa em documento elaborado há poucos anos pelo Health Cluster Portugal, onde se detalha um papel claro de organização e e de gestão para a DE-SNS. O problema atual da DE-SNS não está propriamente na sua existência. Está na ambiguidade de relacionamento que existe dentro do sector público da saúde, com funções repartidas entre ACSS, DE-SNS, SPMS e Ministério da Saúde (por exemplo, as negociações salariais e de condições de trabalho com os sindicatos das profissões de Saúde). As múltiplas “articulações” a estabelecer entre entidades, e as várias consultas, nos processos de decisão, de umas entidades a outras tendem a criar ambiguidade de responsabilidade de decisão e maias morosidade na decisão. É como se uma empresa de grande dimensão se decidisse separar em várias, ficando uma com o CEO (e COO (Chief operating officer)), outra com o CFO (Chief financial officer), outra com o CIO (Chief information officer), etc. Há uma clara necessidade de estabelecer processos de decisão mais escorreitos e sem dúvidas sobre que decisões pertencem a que entidade. Também julgo central que a DE-SNS assuma a realização de explicitar que caminho se pretende seguir na organização das unidades de prestação de cuidados de saúde do SNS, criando os documentos que sirvam de guia estratégico para as Unidades Locais de Saúde (afinal estas são a unidade fundamental em termos da prestação de cuidados de saúde), tendo em conta a sua autonomia de gestão. Precisam de ter um quadro orientador para a definição das suas estratégias próprias. O estabelecer a estratégia global, dentro da visão que seja estabelecida pelo Ministério da Saúde, e a sua comunicação efectiva às ULS deverá ter primazia, na atuação da DE-SNS, face à micro gestão das ULS. Um exemplo dessa micro gestão é ser a DE-SNS a controlar (ou a definir diretamente/ escolas de urgência hospitalar (tarefa que deverá ser realizada por cada ULS). Assim, antes de avançar para uma decisão de extinção da DE-SNS, será de lhe dar o quadro de atuação adequado. As dúvidas levantadas por Adalberto Campos Fernandes têm toda a razão de ser, e é necessário haver uma (re)definição de responsabilidades, incluindo a de condução (explicitação e comunicação) de uma estrátégia para a rede de unidades de prestação de cuidados de saúde que faz parte do SNS. 

(imagem criada com recurso a instrumentos de IA)


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a propósito de “oportunismo de saúde”

Foi recentemente aprovada uma alteração às regras de acesso de migrantes aos serviços de saúde do SNS (noticia aqui, por exemplo). A discussão que tem estado à volta do tema tem sido desordenada e desorganizada, em parte por falta de informação, em parte por falta de sistematização, revelada pela má utilização de conceitos. Se propositadamente ou se por ignorância, não sei.

Há três pontos centrais a clarificar : a) de que problema se fala? b) que informação há sobre esse problema em Portugal? c) que exemplos de outros países nos podem ajudar? Só depois de responder a estas perguntas é razoável colocar opções de medidas (incluindo não fazer nada) para definição de objetivos pretendidos, discussão e decisão.

a) de que problema se fala?

Aparentemente, pelo discurso público mais sonoro, a preocupação será com a utilização abusiva do Serviço Nacional de Saúde por estrangeiros. Coloco estrangeiros propositadamente. Pretende-se evitar que pessoas de outros países, de nacionalidade que não é a portuguesa, venham ao Serviço Nacional de Saúde aproveitar serviços gratuitos de elevado custo, por vezes com grande elaboração e preparação dessa visita.

Se é esse o problema, é muito diferente da utilização do Serviço Nacional de Saúde por residentes que não tenham nacionalidade portuguesa, estejam em situação legal ou não, por turistas que por motivos acidentais necessitam de recorrer a cuidados de saúde, ou por “turistas de saúde”. Por “turismo de saúde” deve-se entender uma atividade organizada, e paga ao sistema de saúde, de pessoas de um país recorrerem a prestadores de cuidados de saúde noutro país. Para uma clarificação do conceito veja-se como introdução este texto de Neil Lunt, este livro sobre o tema, as iniciativas do Health Cluster Portugal para fazer de Portugal um destino de turismo de saúde (com financiamento de programas comunitários), e até no Serviço Nacional de Saúde se procurou estar ativo (notícia com mais de uma década, relativa a um hospital grande de Portugal). Nenhuma destas últimas três situações é, de acordo com o que me parece estar na discussão público, o alvo das medidas propostas.

É então preciso focar a atenção no “uso abusivo”, o que se chamar de “oportunismo de saúde” (uma vez que a expressão “turismo de saúde” significa algo completamente diferente).

b) que evidência existe sobre “oportunismo de saúde”?

As informações sobre utilização dos serviços de saúde por residentes de outras nacionalidades, qualquer que seja o seu estatuto legal em Portugal (propositado, ou por falta de capacidade dos serviços públicos portugueses de o regularizarem) não respondem a essa pergunta. Até porque o “oportunismo de saúde” poderá ser feito de forma completamente legal à luz das regras existentes (o célebre caso de acesso a medicamentos de preço muito elevado não é uma situação de um residente não nacional em situação irregular…). O que é preciso conhecer é que situações de tratamento de custo muito elevado, associadas com pessoas não residentes em Portugal, e correspondendo a casos programados (e não fortuitos, de acidente), existem. A informação de atendimentos em serviços de urgência do Serviço Nacional de Saúde (como parece ser o caso da informação que está a ser recolhida, a atender a esta noticia) é irrelevante para essa caracterização. Mais relevante será saber o valor do tratamento de problemas crónicos de custo elevado, ou programados (como eventualmente partos), associados com não residentes em Portugal e que vão continuar a ser não residentes.

A falta de clareza sobre o problema que se quer discutir faz com que se usem os dados (eventualmente) disponíveis, e não a informação que é relevante para o problema. É uma versão da célebre anedota sobre procurar as chaves onde há luz e não onde foram perdidas (versão banda desenhada, para mais informação basta usar o google com “streetlight effect”).

Conclusão a retirar: sem clareza quanto ao que se identifica como problema vai-se estar a procurar informação que não é relevante, e com isso distorce-se a discussão e até se muda o problema (significa que provavelmente a “solução” não será adequada para o verdadeiro problema, e terá apenas efeitos negativos sobre quem não se pretendia atingir).

c) O que sabemos sobre restrições no acesso a cuidados de saúde por parte de residentes não nacionais, em situação irregular, aqueles a que presumivelmente se quer cobrar o uso do Serviço Nacional de Saúde?

Este tipo de medida foi introduzido em 2012 em Espanha (Real Decreto-ley 16/2012), excluindo migrantes não documentados do acesso a cuidados de saúde, e a decisão foi posteriormente revogada.

Uma análise desta medida, realizada por L. Peralta-Gallego, J. Gené-Badia, P. Gallo, em Effects of undocumented immigrants exclusion from health care coverage in Spain, Health Policy, 122 (2018) 1155–1160, está disponível aqui. Outra análise realizada em Barcelona revelou que os migrantes não documentados , por falta de acesso a serviços de saúde, tiveram menos uso de cuidados de saúde primários mas mais situações de doença contagiosa (ver aqui: Lancet Planetary Health), o que sugere a importância de manter o acesso a todos os residentes, mesmo que sejam migrantes sem documentação. Uma análise sobre os efeitos decorrentes desta medida na saúde dos migrantes indica que houve um aumento importante da mortalidade entre estes migrantes não documentados (A. Juanmarti Mestres, G. López Casasnovas, J. Vall Castelló, 2021, The deadly effects of losing health insurance, European Economic Review, 131, ver aqui). Há também informação sobre um maior uso dos serviços de urgência por falta de acesso a outros serviços.

A política foi alterada em 2018, seis anos depois, alargando a cobertura do serviço nacional de saúde espanhol a todos os residentes, incluindo migrantes sem documentação (ver Real Decreto-Ley 7/2018, e aqui). Atualmente, os migrantes sem documentos têm direito aos mesmos benefícios que os residentes depois de estarem em Espanha durante 90 dias ou através de um relatório dos serviços sociais. Ou seja, o apelo imediato que a medida teve em 2012 não sobreviveu a um escrutínio mais amplo da sociedade espanhola, embora tenha levado 6 anos a ser revertida.

Para informação sobre a situação em vários países europeus, sugiro uma consulta aqui (UHC Watch – WHO Barcelona Office for Health Systems Financing).

Daqui resulta que há o risco de se adoptarem medidas que não resolvem o problema que aparentemente se diz querer resolver, e que terão efeitos negativos sobre quem não se pretende atingir. Ou seja, é uma medida sem ou com muito poucos benefícios (face ao objetivo pretendido) mas com custos (que podem ser elevados) que não estão a ser tidos em conta.

Será interessante saber se as medidas propostas sobrevivem a uma avaliação prévia de impacto legislativo (sugiro a leitura de um documento da Assembleia da República, elaborado em 2024, avaliação prévia de impacto legislativo pelo Parlamento, das Metodologias de Avaliação de Impacto Normativo do Ministério da Justiça sobre produção legislativa, dos Guias de Avaliação de Impacto Legislativo para se ter uma ideia do que se deve fazer, elaborados PlanAPP, um departamento público de apoio à definição de políticas públicas, e o manual de Carlos Blanco de Morais, Guia de Avaliação de Impacto Normativo).

Chegando aqui a pergunta natural é que soluções alternativas devem ser colocadas como opção de resolução do problema. Para isso, é preciso primeiro conhecer as características reais do problema que se quer resolver. Até porque as declarações públicas de “indignação” com abuso por parte de alguns não residentes não coincidem com as pessoas a quem as medidas propostas se destinam, pelo menos de acordo com o que tem sido relatado (algo que já foi notado, ver aqui).

Se estivermos a falar de partos de pessoas não residentes, e que depois sairão do país, é natural que se procure uma solução diferente de pessoas que procuram residir em Portugal ou terem a nacionalidade portuguesa para usufruirem de medicamentos de muito elevado custo. Sem ter a informação sobre a preocupação base, a discussão utilizando outros dados será certamente distorcida, as decisões tomadas provavelmente erradas. Por exemplo, pedir comprovativos de residência a migrantes em situação irregular, que os terão de apresentar posteriormente se tratados por um problema urgente, não resolve a primeira situação (vai-se conseguir impedir a saída do país de mulheres que tenham vindo ter filhos no SNS, como se refere que sucede?) nem a segunda situação (para tratamentos continuados de muito elevado custo, valerá a pena a despesa e o tempo de ser residente ou nacional, com situação regularizada). Apenas se cairá na situação que houve em Espanha durante 6 anos (ver acima).


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Observatório da dívida dos hospitais EPE, segundo a execução orçamental (nº 81, Fevereiro de 2024)

Saiu recentemente a informação sobre Dezembro de 2024 sobre as dividas e pagamentos em atraso no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Como antecipado, a regularização de final de ano fez cair o valor de pagamentos em atraso para um valor baixo (não tão baixo como no ano passado), suficientemente baixo para que se possa considerar, uma vez mais, tal, como no ano passado, que se parte de uma base quase limpa de dívidas. Tal como no ano passado, há reforço assinalável do orçamento inicial do SNS. No ano passado, estas condições de partida não resultaram em capacidade de controlo financeiro. De momento, não há um conhecimento completo sobre o que esteja por detrás dessa situação (há vários fatores candidatos, incluindo ineficiências, inflação, despesas inesperadas para assegurar os recursos humanos necessários, mesmo que em formato de empresas de prestação de serviços, etc).

Para 2024, é incerto o que se pode esperar. Por um lado, há as mesmas condições de orçamento inicial e baixo stock de pagamentos em atraso (e dívidas) em 2024 face a 2023. Por outro lado, há a criação das novas Unidades Locais de Saúde (ULS), com os consequentes desafios de construção das novas unidades, e a (eventual) maior autonomia de gestão, embora num contexto de turbulência política associada com as eleições. Num ano de transição de gestão para parte substancial do SNS, conseguir alinhar a gestão financeira com as necessidades de satisfação das necessidades da população será um desafio grande.

Numa frase final, em 2024, veremos se o SNS consegue garantir uma gestão financeira rigorosa e uma implementação eficaz das reformas, com o objetivo final de melhorar a prestação de cuidados de saúde à população portuguesa num contexto de mudança.


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Nomeações para as Unidades Locais de Saúde, transparência, mérito e credibilidade

A atual situação política veio trazer obstáculos inesperados às mudanças em progresso no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Em particular, o processo de criação das novas unidades locais de saúde e as nomeações das equipas dirigentes parecerem ficar, inicialmente, num “limbo burocrático”. A solução encontrada, a de colocar no Lei do Orçamento do Estado, a capacidade de “designação dos membros dos órgãos de gestão” na Direção-Executiva do SNS (DE-SNS), é um mal menor. Numa lógica do papel da DE-SNS, esta deveria ter, pelos seus estatutos, a capacidade de fazer estas nomeações e assumir a responsabilidade pelos resultados das mesmas.

A preocupação com as nomeações, nesta altura de incerteza política, resulta dos riscos de nomeação por critério político e não por mérito profissional. A “carambola” de nomeações, com a rotação de pessoas, por vezes para haver espaço para acomodar quem sai de funções em ministérios, é possível de acontecer. Mas adiar as nomeações iniciais das Unidades Locais de Saúde criará, provavelmente, mais problemas, com consequências reais, mas frequentemente dificilmente observáveis no imediato, para a capacidade de atendimento às necessidades das populações.

A preocupação com os critérios de nomeação é facilmente resolvida pela DE-SNS se, conjuntamente com a nomeação de cada equipa dirigente, disponibilizar no seu site de internet uma nota justificativa do mérito profissional de cada nomeação realizada. A mera informação de que se nomeou é pouco para se conhecer melhor os motivos e as expectativas associadas à nomeação (como exemplo, aqui, o último conjunto de nomeações divulgado pela DE-SNS no momento de escrita deste texto). 

Não sendo um elemento obrigatório do processo de nomeação, a apresentação voluntária e pública desta nota justificativa dá força técnica a quem é nomeado e promove a transparência e a responsabilização da DE-SNS pelas nomeações que faz. 

Será também interessante perceber se a DE-SNS irá aproveitar esta possibilidade de nomear as estruturas dirigentes das Unidades Locais de Saúde para transmitir sinais claros sobre a importância relativa do hospital e das unidades de cuidados de saúde primários que fazem parte da Unidade Local de Saúde. Uma predominância acentuada de dirigentes das novas ULS com origem em hospitais transmitirá uma imagem, indesejada a meu ver, de maior importância do hospital face aos cuidados de saúde primários.

Ou seja, é bom que seja a DE-SNS a fazer em tempo útil as nomeações das equipas dirigentes das ULS, assumindo a responsabilidade das escolhas que faz. Tem também a oportunidade de concretizar essas nomeações num contexto de transparência voluntária quanto papel do mérito profissional das pessoas escolhidas.

Sendo provável, estatisticamente, que algumas das novas ULS venham a funcionar pior do que outras, esta transparência, à partida, das nomeações feitas é igualmente uma forma de defesa contra futuras acusações de nomeação por critérios políticos. 

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