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médicos tarefeiros, um problema de procura e de oferta

O final do Verão não trouxe calma ao Serviço Nacional de Saúde(SNS), com os problemas de falta de médicos a terem grande visibilidade. O fecho do serviço de urgência no Hospital Garcia de Orta (Almada) por médicos prestadores de serviços contratados não terem aparecido foi o elemento mais marcante das duas últimas semanas.

Não conhecendo os detalhes da situação, o ter acontecido e a discussão de possíveis medidas de resposta gera a necessidade de reflexão sobre os fundamentos menos óbvios do atual contexto, e sobre as soluções.

É importante perceber que parte substancial dos problemas, tensões e “surpresas”, e até várias das posições que têm sido expressas, resultam de se estar na presença de um “choque” entre uma visão hierárquica do funcionamento do SNS e das suas organizações (a ideia de que tudo depende da vontade de um governante descer ao longo da “cadeia de comando” até ser executada) e um mercado descentralizado – a prestação de serviços médicos -, onde as decisões são tomadas de acordo com a vontade de cada médico, individualmente ou no quadro de uma empresa de prestação de serviços com que colabore. 

Neste quadro, a tutela quer reduzir dependência e mudar regras de acesso ao trabalho à tarefa, até permitindo exceções remuneratórias para cobrir buracos críticos. A Ordem dos Médicos discorda da via restritiva e põe medidas para fixar profissionais; os sindicatos mantêm o foco na carreira. Os utentes querem previsibilidade — urgências abertas. Conseguir um consenso para o caminho a seguir requere em primeiro lugar que se tenha um entendimento sobre o que são os fundamentos do problema.

No caso do fecho da urgência no Hospital Garcia de Orta por falta dos médicos em prestação de serviços que eram esperados, poderá, ou não, ter havido concertação de decisões. Independentemente da resposta a essa pergunta, o quadro mais geral é o de se estar na presença de decisões que não diretamente controladas por qualquer hierarquia do SNS (seja do hospital, da Unidade Local de Saúde, da Direção-Executiva do SNS ou do Ministério da Saúde). 

Para debater o que está em causa, é necessário relembrar alguns conceitos básicos, que ajudam na compreensão dos atuais problemas e na procura de soluções, incluindo regras que o Governo tem em análise, segundo o que circula na comunicação social. Facilmente poderão surgir resultados inesperados e divergentes da intenção de quem cria ou sugere essas medidas.

O primeiro conceito central é perceber porque existem organizações que estabelecem contratos de trabalho com os profissionais que nelas exercem atividade, por contraponto com todos os dias fazerem uma contratação do trabalho que é necessário para esse dia. Estamos tão habituados à existência de empresas e de instituições organizadas em torno de contratos de trabalho (sem termo) e de hierarquias internas a essas organizações que não questionamos o porquê da sua prevalência como unidades centrais na prestação de cuidados de saúde. Ora, creio que é simples perceber que que contratação dia-a-dia tem custos, sobretudo em termos de trabalho especializado. Não é apenas a previsibilidade para ambos os lados, trabalhador e entidade contratante, que está em causa. É também a capacidade de organizar funções, garantir continuidade de atividades, conhecimento e cultura da atividade desenvolvida (não ter de explicar todos os dias o que é preciso realizar), etc.

Contratar para trabalho pontual é útil quando se trata de dar resposta a necessidades inesperadas e momentâneas de atividade (momentos de elevada procura, ou de falha imprevista de capacidade de oferta) mas não quando se trata de satisfazer necessidades previstas, previsíveis e conhecidas. 

Do ponto de vista de quem contrata, é melhor ter relações de longo prazo para dar resposta às necessidades de garantir atividades recorrentes, seja na prestação de cuidados de saúde seja em qualquer outro sector.

Do ponto de vista de quem é contratado, há naturalmente vantagens de previsibilidade e de segurança financeira nessas relações contratuais de longo prazo.

Assim, as atuais circunstâncias de recurso à prestação de serviços médicos com base em mecanismos de mercado imediato, isto é, contratação “à tarefa”, é uma disfuncionalidade no funcionamento do SNS. 

E este tipo de disfuncionalidades resulta geralmente em menor capacidade assistencial (as falhas em assegurar urgências hospitalares abertas é elemento mais visível para a opinião pública, suspeito que não serão o único custo de funcionamento). Apesar de num dia ou numa semana particular esse recurso à prestação de serviços resolver a falha, o não ser ter o quadro de profissionais suficiente para a atividade normal a desenvolver aumenta a possibilidade de falhas ao longo do ano. Tem também mais custos financeiros para quem paga, e maior incerteza de rendimento para quem recebe. Leva também a maior frustração profissional para todas as pessoas envolvidas (incluindo doentes, médicos que trabalham como prestadores de serviços, médicos contratados permanentemente que têm de enquadrar no que fazem os que fazem prestação de serviços, gestores das unidades, dirigentes de topo do SNS). 

Falta, em geral, conhecimento e informação sobre o lado da oferta (empresas e médicos prestadores de serviços). A reportagem de Rita Nunes (na revista Sábado) reporta informação obtido junto do lado da “oferta”, sobre as empresas, maiores ou simplesmente unipessoais, que atuam neste mercado de prestação de serviços médicos, incluindo a tentação de conluio (cartelização) que possam ter para fazer subir os preços (os valores pagos por estes serviços). É também uma boa ilustração de um velho ditado da área da economia da saúde, “a ineficiência do sistema de saúde é rendimento de alguém”, que naturalmente faz com que haja oposição a que se altere a situação.

Deste modo, para pensar em soluções, será útil usar o velho modelo de análise económico de procura e oferta num mercado (confesso, é hábito de economista) em vez de pensar apenas em formas legislativas, de publicação de restrições e regras que não são imunes às decisões individuais de aceitar contratos de trabalho ou de preferir manter uma atividade de prestação de serviços pontual, onde e quando for mais bem remunerada. 

O quadro legal tem de induzir decisões individuais, tomadas em liberdade, o que gera a necessidade de antecipar comportamentos dos agentes económicos envolvidos. O desafio é como enquadrar as medidas propostas pelos vários intervenientes nesta lógica de procura e oferta.

Numa primeira abordagem, reduzir a procura de serviços médicos no mercado de contratação “à tarefa”, através da constituição de maior capacidade interna, fazendo com que só situações imprevistas de excesso de procura e de falta de resposta interna levem à participação nesse mercado, é o melhor caminho. O que significa recrutamento de médicos, conforme tem sido defendido por muitos intervenientes e comentadores. 

Reduzir a oferta da prestação, através de (eventuais) proibições de participação na atividade de prestação de serviços, como aparentemente terá sido considerado, terá um de dois efeitos: ou os profissionais afetados vão procurar ser contratados pelo SNS, e reduz-se a necessidade (procura) no mercado de serviços médicos, ou optam por outra alternativa profissional. E neste último caso, a redução da oferta vai levar a um aumento dos valores praticados (ou falhas na prestação, com mais serviços encerrados). A primeira será certamente a opção preferida pela gestão do SNS. Não há é a certeza de ser esse o resultado (pelo menos com base no que se conhece sobre o funcionamento do mercado de prestação de serviços médicos).

A ideia de ser possível ao Ministério da Saíde determinar de forma completa o que é a procura e a oferta no mercado de serviços médicos é uma ilusão, dado que não se consegue forçar profissionais de saúde a trabalhar no SNS se estes não o quiserem fazer. E impedir de trabalhar para o SNS em algumas condições para “forçar” a que se queira ser contratado pelo SNS só resulta se ser contratado pelo SNS for melhor que as alternativas (que incluem trabalhar no sector privado, exercendo medicina ou não, emigrar num contexto de procura internacional de profissionais de saúde). 

A redução da procura no mercado de prestação de serviços médicos deverá ser o foco da atuação da gestão do SNS, que se não o consegue fazer a nível da Unidade Local de Saúde terá de passar para o nível da Direção Executiva do SNS, e dada a visibilidade pública, logo política, do tema, acabará no Ministério da Saúde.

A principal lição os últimos anos é que as forças de mercado funcionam neste caso, e é melhor reconhecer que tal sucede do que pretender regular normativamente decisões livres do lado da oferta (trabalhar ou não no SNS).

As consequências de medidas que reduzam a oferta sem conseguirem reduzir a procura da prestação de serviços “à tarefa” acabam por ser ou um aumento do preço (o que é pago pelo SNS cresce) ou interrupção da prestação de serviços (fecho de urgências).

Como o quadro legal não é irrelevante, é então preciso identificar a melhor forma de modificar as regras atuais de modo a reduzir a procura de serviços médicos no mercado.

Vejo, no atual contexto, duas formas diferentes, que não são mutuamente exclusivas, de avançar. 

A primeira, que tanto quanto se conhece publicamente estará em desenvolvimento, consiste em alterar processos de funcionamento. Isto é, atualizar a dimensão e a forma de funcionamento (tipologia) das equipas de urgência. É uma decisão técnica a ser tomada com base na melhor prática conhecida, atendendo ao que tem sido a evolução do conhecimento médico. Esta redefinição técnica poderá ser acompanhada por mecanismos de pagamento diferentes, modelos de remuneração de equipas e de pagamento aos prestadores de serviços, que internalizem nestes últimos os custos de falhas e a necessidade de substituição. A definição concreta do melhor modelo de pagamento depende de informação que não possuo, embora a Direção Executiva do SNS tenha a capacidade técnica e a informação (recolhida ou com possibilidades de recolher) necessárias.

A segunda forma, focando na gestão, também tem sido falada – ter a afetação de profissionais de saúde (médicos, sobretudo) a serviços de urgência gerida de forma regional, mesmo que seja preciso criar para o efeito uma nova entidade pública de prestação desse serviço, de forma que os profissionais de uma instituição (Unidade Local de Saúde) possam prestar serviço noutra. Ou, numa formulação mais geral, o contrato de vários profissionais de saúde seja estabelecido com uma organização cujo âmbito geográfico é mais amplo que a Unidade Local de Saúde. A criação de mecanismos organizacionais distintos para enquadrar a flexibilidade do local de trabalho é uma solução. Gerou polémica pública a notícia de poder vir a existir “mobilidade forçada” a Sul do Tejo (península de Setúbal). Se a partilha de profissionais de saúde entre várias Unidades Locais de Saúde na mesma região tem obstáculos formais, então há que formalizar de outra forma por via contratual, seja por os contratos passarem a prever essa mobilidade numa zona geográfica mais ampla do que uma ULS seja pela criação de uma entidade dentro do SNS que tenha a afiliação de profissionais com essa mobilidade a fazer parte da relação contratual (ou seja, os profissionais de saúde terem dupla afiliação, por exemplo). Há certamente soluções que é possível criar para ter a flexibilidade necessária de forma voluntária.

O recurso ao mercado de serviços médicos (procura) deve ser limitado a situações claras de picos de necessidade (maior procura, falta de capacidade por absentismo) e ter um orçamento trimestral publicado (acordado internamente no SNS, com a Direção-Executiva do SNS), para que a transparência de gestão seja efectiva. Os problemas não são simples, resultam de mais de uma década de acumulação de maus hábitos de gestão (macro) do SNS e de funcionamento. Qualquer solução que se pretenda duradoura terá de resolver as tensões de base e não apenas responder ao fecho eventual de um serviço neste ou naquele fim de semana. Qualquer solução terá de antecipar as reações de quem é afetado, terá de antecipar os comportamentos que serão mais prováveis de resposta à solução (e que facilmente serão diferentes face ao pretendido porque quem propõe a solução). Qualquer solução, na sua componente política, irá enfrentar oposição. Haverá a necessidade de encontrar mais aliados do que opositores. Ainda que as soluções encontradas e propostas sejam válidas, não é suficiente para que sejam colocadas em prática se o enquadramento legal e económico não estiver devidamente alinhado com as medidas e os prováveis comportamentos de ajustamento.

(nota: imagem construida com recurso a IA)


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Conferência “Portugal que temos e o Portugal que queremos ter”

Na sexta-feira, 17/01/2025, tive o prazer de participar numa das sessões da conferência dos 160 anos do DN (parabéns DN!)


O alinhamento do dia leva-me a fazer um pouco de resumo das duas sessões, a que acrescento alguns pontos adicionais que não houve tempo de introduzir.

O ínicio da tarde da conferência tinha:

As perspetivas para a economia portuguesa

Pedro Reis, Ministro da Economia

14h20 – As opções estratégicas da economia portuguesa

António Mendonça, Bastonário da Ordem dos Economistas

Isabel Ucha, CEO da Euronext Lisbon

João Moreira Rato, Presidente do Instituto Português de Corporate Governance

Pedro Pita Barros, Professor da Nova Business School

Moderação por Nuno Vinha, Diretor Adjunto do Diário de Notícias

As perspetivas para a economia portuguesa

As perspetivas para a economia portuguesa inserem-se num contexto internacional marcado por desafios e oportunidades. A confiança em políticas que fomentem o crescimento ganha força devido ao controlo da inflação, enquanto a Comissão Europeia, ao implementar o relatório Draghi, reforça a ideia de um novo ciclo que impulsione a economia europeia. Há aqui uma perspetiva positiva.

Prevê-se (deseja-se) a criação ou o crescimento de clusters estratégicos em setores como defesa, espaço, energia, indústria farmacêutica e logística, além de iniciativas relacionadas com a reindustrialização europeia. No entanto, há grande incerteza decorrente do conflito na Ucrânia, que representa um ponto de interrogação para 2025, considerado um ano de transição que poderá marcar uma evolução positiva ou negativa.

Portugal encontra-se numa posição estratégica para aproveitar estas dinâmicas globais. A aposta no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) surge como uma base essencial para preparar o país para um futuro mais otimista em 2026. O país tem sido reconhecido como um destino de políticas favoráveis ao investimento, mas enfrenta o desafio de reduzir tanto a carga fiscal como a burocrática para aumentar a atratividade para investidores estrangeiros. Além disso, o papel das grandes economias europeias, como Alemanha e França, é crucial neste contexto, dado o impacto da sua trajetória em áreas como a independência energética, a digitalização e as mudanças políticas.

A reindustrialização e a transição para uma economia verde são vistas como pilares centrais do crescimento sustentável. Esta visão inclui a promoção de tecnologias avançadas, mas com a cautela de evitar investimentos em tecnologias que ainda não estejam suficientemente maduras. A ideia de clusterização por blocos económicos, com enfoque na autonomia estratégica e integração europeia, surge como um caminho promissor. A verticalização das indústrias, a criação de projetos de grande dimensão e a atração de centros de competência europeus são considerados essenciais para a competitividade do país.

A simplificação dos processos administrativos é outro elemento-chave abordado. Iniciativas como a substituição de verificações manuais por verificações automáticas e a adoção de mecanismos pós-verificação visam desburocratizar o funcionamento do Estado. Esta abordagem foca-se na desmaterialização e na redução das obrigações de reporte, criando um ambiente mais ágil para as empresas e facilitando a execução de novos projetos.

Assim, do Ministro da Economia, há, como se poderia esperar, uma perspetiva positiva para alguns sectores, embora me pareça que teria sido igualmente útil saber que sectores poderão perder posicionamento relativo, pois não acredito que seja possível crescer significativamente em todas as áreas de atividade económica ao mesmo tempo (até porque algumas delas irão competir pelos mesmos recursos humanos).

As opções estratégicas da economia portuguesa

Esta sessão tem um título muito aberto, fazendo com que a discussão se disperse por vários aspetos, de acordo com a formação e a experiência profissional de cada um dos intervenientes. 

Sem preocupação de identificar quem introduziu que tema, porque várias observações são suficientemente consensuais para receberem concordância de vários, da maioria ou nalguns casos, até de todos os intervenientes.

Foi referido que a dimensão do capital humano é crítica, o que será um dos pontos unânimes. A incapacidade de reter profissionais altamente qualificados, devido a condições salariais e de carreira pouco competitivas, reflete-se como uma limitação estrutural. É necessário criar condições atrativas para estas profissões, investindo em serviços de valor acrescentado e aprendendo com modelos de sucesso, como o irlandês. A automatização industrial, que aproxima cada vez mais a indústria do setor de serviços, é vista como um fator que redefine a produtividade, exigindo mais robótica e inovação. Aqui, a meu reparo pessoal é fazer mais sentido tornar Portugal um local interessante para ter as empresas com as posições que requerem elevadas qualificações, qualquer que seja a nacionalidade da pessoa. É mais exigente, e provavelmente mais duradouro.

O papel da inteligência artificial é destacado como uma área de potencial estratégico. Portugal tem oportunidades para se posicionar como um polo de inovação nesta área, investindo em infraestruturas como centros de dados e na melhoria da qualidade dos dados da administração pública. A simplificação regulatória e o fomento à inovação tecnológica podem tornar o país mais competitivo a nível global. No entanto, para isso, é necessário alinhar as políticas fiscais e regulamentares, garantindo uma paridade entre impostos para estrangeiros e portugueses, além de flexibilizar a legislação educacional para promover a formação de talentos.

No campo financeiro, enfatizou-se a importância de uma reforma fiscal que permita uma melhor canalização das poupanças para investimentos produtivos. Atualmente, grande parte das poupanças portuguesas está alocada em instrumentos de baixo risco e baixa remuneração, o que limita o seu impacto no crescimento económico. É fundamental explorar alternativas como mecanismos privados de acumulação de fundos para a reforma, incentivando uma maior diversificação e rentabilidade dos investimentos.

Em última análise, reflete-se sobre o papel de Portugal no panorama europeu e global, destacando a necessidade de pensar estrategicamente o futuro do país. Esta reflexão exige, a meu ver, uma abordagem diferente na noção de resiliência associada ao PRR (mais dinheiro), deve-se ter uma ideia de resiliência como capacidade de antecipar choques (vários foram apontados como possíveis face à evolução geopolítica mundial), absorver impactos, aprender com a experiência e ajustar-se rapidamente às mudanças. 

Comentário geral e algumas coisas mais

Curiosamente, a conversa acabou por não tocar num ponto que politicamente tem vindo a emergir: a escolha entre política industrial focada em sectores (ou até em empresas que sejam campeões nacionais) e política industrial focada sobretudo criação de condições estruturais para o crescimento dos sectores que melhor os aproveitem.  Para conseguir perceber melhor as opções e as escolhas a fazer deve-se começar por explicitar quais são os objectivos que se tem para a política industrial.

Coloquemos como objectivo central a melhoria das condições de vida, o que inclui o crescimento económico medido pelo aumento do PIB, mas também a procura da sustentabilidade ambiental, maior equidade na distribuição de rendimento e riqueza, e maior qualidade de vida.  E se o crescimento económico é objetivo, então o crescimento da produtividade é um elemento central para o desejado crescimento económico, com aumento de salários e de riqueza. O foco deve estar em olhar para opções estratégicas que tenham a capacidade de aumentar a produtividade da economia portuguesa na próxima década.

Aumentar a produtividade média da economia decorre de conseguir aumentar a produtividade das empresas (através de investimento e de inovação), de fazer crescer as empresas de maior produtividade em cada sector, transformar ou fazer sair de atividade as empresas de menor produtividade, e aceitar que sectores económicos de maior produtividade crescem e sectores de menor produtividade encolhem. Não se pode desligar a evolução da produtividade da dinâmica empresarial.

Em geral, nos últimos tempos, quando se fala de opções estratégicas, remete-se para a escolha de sectores que se deve apoiar, em termos de políticas públicas, de alguma forma. O “alguma forma” pode ser dar apoios diretos ou indiretos ou pode ser remover obstáculos ao crescimento da produtividade.

Olhando para os obstáculos principais, consegue-se também perceber as motivações das várias das propostas que surgem com regularidade, sobre a necessidade de facilitar e induzir o investimento em inovação, mudanças no mercado de trabalho e falta de escala de muitas empresas portuguesas.

Então o que podem ser opções estratégicas? 

Tenho uma clara opção por criar primeiro condições estruturais, e depois remover barreiras que possam existir em alguns sectores. Estar a escolher sectores pode correr mal, até porque essa escolha é feita num contexto onde muitos outros países têm empresas dinâmicas, e/ou intervenções de muito maior dimensão do que possível fazer a partir de Portugal.

Três “opções estratégicas” que me parecem centrais são:

Infraestrutura digital: assegurar o seu desenvolvimento de modo a que possa ser aproveitada por todas as empresas, incluindo as PME mais pequenas, e que favoreça o seu aumento de dimensão. Usar a Alemanha como ponto de referência para a criação de programas específicos ajudam pequenas e médias empresas (PME) a adotar tecnologias digitais, fornecendo financiamento, formação e acesso a redes de inovação é um bom ponto de partida.

Uma segunda grande opção estratégica é deixar de proteger o status quo e aceitar que o crescimento da produtividade decorre também da dinâmica empresarial, da criação de novas empresas e desaparecimento de outras. As políticas públicas devem ajudar às transições – colocar rapidamente disponíveis os ativos produtivos das empresas que fecham para que outras os possam usar – a preocupação com o fecho de empresas tem de incluir, além do que sucede aos trabalhadores, como se coloca a uso rapidamente os ativos produtivos dessas empresas, facilitar a passagem de trabalhadores de uns sectores para outros através da formação de novas competências. 

A escolha de setores de atividade estratégicos é sempre tentadora, e se há bons motivos para argumentar que deve ser feita, também se encontram bons motivos para argumentar porque é dificil ser bem feita (como saber o que resultará no futuro de forma segura, com objetividade suficiente para ultrapassar entusiasmos do momento?).  A minha sugestão é que essas escolhas sejam feitas com base nas áreas onde a investigação cientifica portuguesa se tenha conseguido destacar mais.

Embora seja frequente falar-se na maior ligação das universidades às empresas, ou das empresas às universidades, a opção estratégica deverá ser a de mudar a forma dos mecanismos financeiros usados: dar apoio às empresas, com discriminação positiva para pequenas e médias empresas (mas não as demasiado pequenas), para comprarem serviços de desenvolvimento tecnológico às universidades – pelo fluxo do dinheiro, tornar claro que as universidades têm de criar inovação para dar resposta às solicitações das empresas, que por sua vez devem ter como objetivo produtos e serviços que possam ser colocados no mercado europeu, pelo menos. Na verdade, o que importa é criar mecanismos financeiros que levem às empresas identificarem oportunidades de inovação, de produto ou de processo, que levam às universidades, que ganham se responderem aos desafios vindos das empresas. A inovação virá da universidade, mas a identificação da necessidade é trazida pela empresa. Ou seja, deixar de proteger o status quo também no formato dos mecanismos usados, e ter a ambição de procurar outros mecanismos que possam ser mais eficazes.

A forma pela qual se regem os apoios públicos é também ela uma opção estratégica até certo ponto. Que áreas de atividade económica se irão desenvolver mais decorrerá da capacidade de identificar oportunidades de forma descentralizada, por parte de cada empresa, e não da vontade de uma burocracia mais, ou menos, iluminada quanto aos sectores de atividade que serão campeões nacionais no futuro.

A terceira opção estratégica é pensar sempre à escala europeia, pelo menos. Qualquer apoio, sectorial ou a empresas, que seja dado através das políticas públicas deverá favorecer as empresas que tenham capacidade demonstrada ou a ambição clara e o potencial de a concretizar de serem internacionais. É essencial que as vantagens de dimensão do mercado europeu sejam usadas para garantir maior produtividade. Desenvolver projetos, empresas ou mesmo sectores de atividade que apenas têm viabilidade financeira de longo prazo se mantiverem uma situação protegida em Portugal deverão ser preteridos.

Não sendo propriamente uma opção estratégica, há uma preocupação adicional a ter em qualquer típo de política industrial que seja adoptada: assegurar a transparência e o escrutínio público da aplicação dos fundos públicos disponibilizados.

Uma escolha direta de setores preferenciais tem dois problemas de partida: a) saber quais são esses setores de sucesso futuro, em que a determinação burocrática poderá ser pior do que a tentativa e erro de ideias de forma descentralizada; b) outros países vão tentar fazer o mesmo, e como assegurar então que se consegue ter sucesso se todos estiverem a procura fazer o mesmo. Para que uma escolha de setores específicos possa ter resultados positivos, e não apenas “afundar” riqueza do país via despesa pública, é necessário garantir transparência e escrutínio público em todas as fases dessa escolha, é necessário evitar “teimosia de longo prazo” (continuar a insistir quando a informação que se recebe e o conhecimento que se constrói aconselham o contrário), e é necessário mostrar o retorno económico e social dos investimentos públicos realizados.

Estas ideias podem ser usadas para criar uma lista de verificação para avaliar propostas de opções estratégicas na economia portuguesa:

  1. A proposta de opção estratégica, seja a nível das infraestruturas, das empresas ou sectorial, tem potencial para melhorar a produtividade média da economia através da inovação e/ou digitalização? 
  2. A proposta de opção estratégica tem, a médio prazo, capacidade para criar ou aumentar a escala europeia ou mundial de empresas de base portuguesa?
  3. A proposta de opção estratégia favorece o alinhamento do meio cientifico e académico com as atividades económicas, no sentido que as universidades e os centros de investigação têm mais interesse em fornecer soluções para desafios identificados pelas empresas, seja no médio prazo através da investigação fundamental, seja no curto prazo, através de investigação aplicada?
  4. A proposta opção estratégica é susceptível de incluir medidas de requalificação e transição dos trabalhadores para setores de mais elevada produtividade, facilitando a adaptação a novos trabalhos com novas competências?
  5. A proposta de opção estratégia, se beneficiar de apoio de fundos públicos, tem mecanismos de transparência e responsabilização, assegurando que as decisões de financiamento público são transparentes, sujeitas a escrutínio e associadas a retornos económicos e sociais mensuráveis?

As respostas podem ser positivas, neutras ou negativas. Se uma proposta de  “opção estratégica” (o que quer que seja incluído nesse termo) falhar em dois ou mais destes critérios (tiver duas ou mais respostas negativas), deverá ser reformulada ou abandonada.

Deixo a cada um o “divertimento” de aplicar estas cinco perguntas à sua “opção estratégica” preferida.


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Observatório da dívida dos hospitais EPE, segundo a execução orçamental (nº 82, janeiro de 2025)

Em dezembro de 2024 tornou-se conhecido o valor da habitual transferência extraordinária para as entidades do SNS (agora as Unidades Locais de Saúde, anteriormente os hospitais EPE) regularizarem as dívidas vencidas (que incluem os pagamentos em atraso, ou seja 90 dias de atraso adicionais aos 90 dias que definem o que é a dívida vencida). 

O valor de cerca de 975 milhões de euros aproxima-se, em larga medida, do valor esperado da dívida vencida até ao final do ano (os números finais de 2024 ainda não se encontram no domínio público), sendo superior ao valor dos pagamentos em atraso conhecidos. Em novembro de 2024, o último valor conhecido à data de escrita, os pagamentos em atraso tiveram uma magnitude de 554,5 milhões de euros, com um ritmo médio mensal de crescimento de cerca de 55 milhões de euros (embora em aceleração).

Será de esperar que em janeiro de 2025 o valor dos pagamentos em atraso seja residual, uma vez que a transferência realizada deverá permitir eliminar quer o stock de pagamentos em atraso quer o fluxo provável adicional a partir da dívida vencida (que se não for paga passará a pagamentos em atraso).

Deste ponto de vista, a transferência definida em dezembro de 2024 tem o potencial de (quase) “zerar” os pagamentos em atraso.

Em contraponto a esta visão positiva do efeito, imediato, há a tradição de transferências passadas, de elevada magnitude, não terem conseguido, nos últimos 13 anos (desde que há dados fiáveis e regulares), resolver o problema. Em anos recentes, os pagamentos em atraso no final do ano, após a transferência extraordinária, aproximaram-se de zero, e os orçamentos iniciais do SNS tiveram reforços generosos das verbas iniciais.

Mesmo no ano de 2024, o ritmo de crescimento dos pagamentos em atraso foi em média de 55 milhões de euros por mês, sem efeito aparente resultante da mudança de Governo ou de mudança da Direção-Executiva do SNS (sensivelmente pouco mais de um mês depois da entrada em vigor do novo Governo). 

Assim, embora o Governo tenha criado condições que surgem adequadas para acabar com o problema dos pagamentos em atraso, é natural que permaneça alguma dúvida sobre se tal será o caso. Apesar de só no futuro se vir a conhecer o resultado deste esforço, também aparenta ser razoável esperar que futuras decisões sobre continuação, ou até substituição antecipada, de equipas de gestão das ULS possa vir a estar ligada à evolução dos respetivos pagamentos em atraso, como indicador da respetiva capacidade de gestão, num quadro inicial de orçamento “adequado” e baixo volume de dívida vencida e de pagamento em atraso, um renovar do problema dos pagamentos em atraso numa ULS terá de ser muito claramente explicado. O facto de se “limpar” dívidas passadas deverá permitir um pagamento atempado regular, o que se deverá materializar em preços mais baixos de fornecedores (que deixaram de precisar de incluir no preço o custo financeiro de receber as verbas devidas com grande atraso).

Neste contexto, é de esperar que em 2025 haja algures no Ministério da Saúde ou no SNS uma equipa com a missão de acompanhar a gestão financeira das ULS (seja na Direção-Executiva do SNS, seja na Secretaria de Estado da Gestão da Saúde, ou mesmo com ambas, com alguma redundância, que poderá ser útil nesta fase).

As duas figuras seguintes ilustram o ciclo de crescimento dos pagamentos em atraso, seguido de regularizações extraordinárias, seguidas de novo crescimento. A segunda figura contém as estimativas de crescimento médio mensal, com um valor de 55 milhões de euros na última fase de tendência, que é similar os meses anteriores à pandemia.


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pacto para a saúde e a DE-SNS, numa entrevista de Adalberto Campos Fernandes

Adalberto Campos Fernandes, ministro da saúde de 2015 a 2018, deu a 8 de janeiro (2025), uma entrevista ao Jornal público em que coloca várias questões (e propostas de resposta) relevantes.

Primeiro, a necessidade de repensar o que significa o Serviço Nacional de Saúde (SNS) assegurar o acesso a cuidados de saúde na combinação de prestação direta própria (pública, via SNS) e de contratação (e/ou aquisição) de serviços ao sector privado (com ou sem fins lucrativos). Não há referência à revisão de papel do SNS enquanto mecanismo garante de proteção financeira. permanecendo por isso sem contestação a ideia do SNS financiado por impostos como instrumento central de proteção financeira, aliás como estabelecido na Constituição da República Portuguesa. E a revisão desta combinação é vista como levando diversos anos a concretizar, indo além de uma legislatura de 4 anos. Relativamente a este ponto, embora entendendo que seja natural a proposta avançada de um pacto político para a saúde como forma de dar estabilidade à “reforma” de vários anos, creio que se pode pensar numa alternativa- encarar a transformação necessária como um processo permanente de aprendizagem e ajustamento do SNS. É uma forma de reconhecer que qualquer reforma pensada hoje estará provavelmente desatualizada quando terminar a sua implementação. Daí que surge como mais interessante, a meu ver, a noção de aprendizagem e ajustamento regular (pensado em permanência no que deve ser), numa lógica de construção de um sistema de saúde e de um serviço Nacional de Saúde resilientes. Importa por isso fazer uma definição de mecanismos de ajuste contínuo do SNS (por exemplo, um departamento de estudos e de aprendizagem permanente na ACES, ou na DE-SNS, de no próprio ministério da Saúde) em vez de um pacto para a saúde. Claro que as duas ideias não são mutuamente exclusivas.

O segundo grande tema do artigo é o papel da DE-SNS – Direção Executiva do SNS (incluindo a possibilidade da sua extinção). Ora, quanto à DE-SNS, partilho a visão expressa em documento elaborado há poucos anos pelo Health Cluster Portugal, onde se detalha um papel claro de organização e e de gestão para a DE-SNS. O problema atual da DE-SNS não está propriamente na sua existência. Está na ambiguidade de relacionamento que existe dentro do sector público da saúde, com funções repartidas entre ACSS, DE-SNS, SPMS e Ministério da Saúde (por exemplo, as negociações salariais e de condições de trabalho com os sindicatos das profissões de Saúde). As múltiplas “articulações” a estabelecer entre entidades, e as várias consultas, nos processos de decisão, de umas entidades a outras tendem a criar ambiguidade de responsabilidade de decisão e maias morosidade na decisão. É como se uma empresa de grande dimensão se decidisse separar em várias, ficando uma com o CEO (e COO (Chief operating officer)), outra com o CFO (Chief financial officer), outra com o CIO (Chief information officer), etc. Há uma clara necessidade de estabelecer processos de decisão mais escorreitos e sem dúvidas sobre que decisões pertencem a que entidade. Também julgo central que a DE-SNS assuma a realização de explicitar que caminho se pretende seguir na organização das unidades de prestação de cuidados de saúde do SNS, criando os documentos que sirvam de guia estratégico para as Unidades Locais de Saúde (afinal estas são a unidade fundamental em termos da prestação de cuidados de saúde), tendo em conta a sua autonomia de gestão. Precisam de ter um quadro orientador para a definição das suas estratégias próprias. O estabelecer a estratégia global, dentro da visão que seja estabelecida pelo Ministério da Saúde, e a sua comunicação efectiva às ULS deverá ter primazia, na atuação da DE-SNS, face à micro gestão das ULS. Um exemplo dessa micro gestão é ser a DE-SNS a controlar (ou a definir diretamente/ escolas de urgência hospitalar (tarefa que deverá ser realizada por cada ULS). Assim, antes de avançar para uma decisão de extinção da DE-SNS, será de lhe dar o quadro de atuação adequado. As dúvidas levantadas por Adalberto Campos Fernandes têm toda a razão de ser, e é necessário haver uma (re)definição de responsabilidades, incluindo a de condução (explicitação e comunicação) de uma estrátégia para a rede de unidades de prestação de cuidados de saúde que faz parte do SNS. 

(imagem criada com recurso a instrumentos de IA)


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a propósito de “oportunismo de saúde”

Foi recentemente aprovada uma alteração às regras de acesso de migrantes aos serviços de saúde do SNS (noticia aqui, por exemplo). A discussão que tem estado à volta do tema tem sido desordenada e desorganizada, em parte por falta de informação, em parte por falta de sistematização, revelada pela má utilização de conceitos. Se propositadamente ou se por ignorância, não sei.

Há três pontos centrais a clarificar : a) de que problema se fala? b) que informação há sobre esse problema em Portugal? c) que exemplos de outros países nos podem ajudar? Só depois de responder a estas perguntas é razoável colocar opções de medidas (incluindo não fazer nada) para definição de objetivos pretendidos, discussão e decisão.

a) de que problema se fala?

Aparentemente, pelo discurso público mais sonoro, a preocupação será com a utilização abusiva do Serviço Nacional de Saúde por estrangeiros. Coloco estrangeiros propositadamente. Pretende-se evitar que pessoas de outros países, de nacionalidade que não é a portuguesa, venham ao Serviço Nacional de Saúde aproveitar serviços gratuitos de elevado custo, por vezes com grande elaboração e preparação dessa visita.

Se é esse o problema, é muito diferente da utilização do Serviço Nacional de Saúde por residentes que não tenham nacionalidade portuguesa, estejam em situação legal ou não, por turistas que por motivos acidentais necessitam de recorrer a cuidados de saúde, ou por “turistas de saúde”. Por “turismo de saúde” deve-se entender uma atividade organizada, e paga ao sistema de saúde, de pessoas de um país recorrerem a prestadores de cuidados de saúde noutro país. Para uma clarificação do conceito veja-se como introdução este texto de Neil Lunt, este livro sobre o tema, as iniciativas do Health Cluster Portugal para fazer de Portugal um destino de turismo de saúde (com financiamento de programas comunitários), e até no Serviço Nacional de Saúde se procurou estar ativo (notícia com mais de uma década, relativa a um hospital grande de Portugal). Nenhuma destas últimas três situações é, de acordo com o que me parece estar na discussão público, o alvo das medidas propostas.

É então preciso focar a atenção no “uso abusivo”, o que se chamar de “oportunismo de saúde” (uma vez que a expressão “turismo de saúde” significa algo completamente diferente).

b) que evidência existe sobre “oportunismo de saúde”?

As informações sobre utilização dos serviços de saúde por residentes de outras nacionalidades, qualquer que seja o seu estatuto legal em Portugal (propositado, ou por falta de capacidade dos serviços públicos portugueses de o regularizarem) não respondem a essa pergunta. Até porque o “oportunismo de saúde” poderá ser feito de forma completamente legal à luz das regras existentes (o célebre caso de acesso a medicamentos de preço muito elevado não é uma situação de um residente não nacional em situação irregular…). O que é preciso conhecer é que situações de tratamento de custo muito elevado, associadas com pessoas não residentes em Portugal, e correspondendo a casos programados (e não fortuitos, de acidente), existem. A informação de atendimentos em serviços de urgência do Serviço Nacional de Saúde (como parece ser o caso da informação que está a ser recolhida, a atender a esta noticia) é irrelevante para essa caracterização. Mais relevante será saber o valor do tratamento de problemas crónicos de custo elevado, ou programados (como eventualmente partos), associados com não residentes em Portugal e que vão continuar a ser não residentes.

A falta de clareza sobre o problema que se quer discutir faz com que se usem os dados (eventualmente) disponíveis, e não a informação que é relevante para o problema. É uma versão da célebre anedota sobre procurar as chaves onde há luz e não onde foram perdidas (versão banda desenhada, para mais informação basta usar o google com “streetlight effect”).

Conclusão a retirar: sem clareza quanto ao que se identifica como problema vai-se estar a procurar informação que não é relevante, e com isso distorce-se a discussão e até se muda o problema (significa que provavelmente a “solução” não será adequada para o verdadeiro problema, e terá apenas efeitos negativos sobre quem não se pretendia atingir).

c) O que sabemos sobre restrições no acesso a cuidados de saúde por parte de residentes não nacionais, em situação irregular, aqueles a que presumivelmente se quer cobrar o uso do Serviço Nacional de Saúde?

Este tipo de medida foi introduzido em 2012 em Espanha (Real Decreto-ley 16/2012), excluindo migrantes não documentados do acesso a cuidados de saúde, e a decisão foi posteriormente revogada.

Uma análise desta medida, realizada por L. Peralta-Gallego, J. Gené-Badia, P. Gallo, em Effects of undocumented immigrants exclusion from health care coverage in Spain, Health Policy, 122 (2018) 1155–1160, está disponível aqui. Outra análise realizada em Barcelona revelou que os migrantes não documentados , por falta de acesso a serviços de saúde, tiveram menos uso de cuidados de saúde primários mas mais situações de doença contagiosa (ver aqui: Lancet Planetary Health), o que sugere a importância de manter o acesso a todos os residentes, mesmo que sejam migrantes sem documentação. Uma análise sobre os efeitos decorrentes desta medida na saúde dos migrantes indica que houve um aumento importante da mortalidade entre estes migrantes não documentados (A. Juanmarti Mestres, G. López Casasnovas, J. Vall Castelló, 2021, The deadly effects of losing health insurance, European Economic Review, 131, ver aqui). Há também informação sobre um maior uso dos serviços de urgência por falta de acesso a outros serviços.

A política foi alterada em 2018, seis anos depois, alargando a cobertura do serviço nacional de saúde espanhol a todos os residentes, incluindo migrantes sem documentação (ver Real Decreto-Ley 7/2018, e aqui). Atualmente, os migrantes sem documentos têm direito aos mesmos benefícios que os residentes depois de estarem em Espanha durante 90 dias ou através de um relatório dos serviços sociais. Ou seja, o apelo imediato que a medida teve em 2012 não sobreviveu a um escrutínio mais amplo da sociedade espanhola, embora tenha levado 6 anos a ser revertida.

Para informação sobre a situação em vários países europeus, sugiro uma consulta aqui (UHC Watch – WHO Barcelona Office for Health Systems Financing).

Daqui resulta que há o risco de se adoptarem medidas que não resolvem o problema que aparentemente se diz querer resolver, e que terão efeitos negativos sobre quem não se pretende atingir. Ou seja, é uma medida sem ou com muito poucos benefícios (face ao objetivo pretendido) mas com custos (que podem ser elevados) que não estão a ser tidos em conta.

Será interessante saber se as medidas propostas sobrevivem a uma avaliação prévia de impacto legislativo (sugiro a leitura de um documento da Assembleia da República, elaborado em 2024, avaliação prévia de impacto legislativo pelo Parlamento, das Metodologias de Avaliação de Impacto Normativo do Ministério da Justiça sobre produção legislativa, dos Guias de Avaliação de Impacto Legislativo para se ter uma ideia do que se deve fazer, elaborados PlanAPP, um departamento público de apoio à definição de políticas públicas, e o manual de Carlos Blanco de Morais, Guia de Avaliação de Impacto Normativo).

Chegando aqui a pergunta natural é que soluções alternativas devem ser colocadas como opção de resolução do problema. Para isso, é preciso primeiro conhecer as características reais do problema que se quer resolver. Até porque as declarações públicas de “indignação” com abuso por parte de alguns não residentes não coincidem com as pessoas a quem as medidas propostas se destinam, pelo menos de acordo com o que tem sido relatado (algo que já foi notado, ver aqui).

Se estivermos a falar de partos de pessoas não residentes, e que depois sairão do país, é natural que se procure uma solução diferente de pessoas que procuram residir em Portugal ou terem a nacionalidade portuguesa para usufruirem de medicamentos de muito elevado custo. Sem ter a informação sobre a preocupação base, a discussão utilizando outros dados será certamente distorcida, as decisões tomadas provavelmente erradas. Por exemplo, pedir comprovativos de residência a migrantes em situação irregular, que os terão de apresentar posteriormente se tratados por um problema urgente, não resolve a primeira situação (vai-se conseguir impedir a saída do país de mulheres que tenham vindo ter filhos no SNS, como se refere que sucede?) nem a segunda situação (para tratamentos continuados de muito elevado custo, valerá a pena a despesa e o tempo de ser residente ou nacional, com situação regularizada). Apenas se cairá na situação que houve em Espanha durante 6 anos (ver acima).


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sobre o programa “Ligue antes, salve vidas”

Nos últimos tempos têm surgido várias notícias e informações sobre estratégias a adotar pelas unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para o maior período de pressão sobre as urgências hospitalares que está associado usualmente ao Inverno. As duas grandes linhas de atuação são, tanto quanto se depreende da comunicação recente do SNS, a referenciação para consultas nos cuidados de saúde primários (o alargamento do projeto “ligue antes, salve vidas”, iniciado no segundo semestre de 2023 na zona de Póvoa de Varzim/Vila do Conde) e os centros de atendimento clínico (trazendo capacidade do sector privado para responder à procura dirigida ao SNS, que se traduz em tempos de espera muito elevados sempre que há falta de capacidade significativa nas unidades públicas.
A existência de quase um ano de experiência do projeto “ligue antes, salve vidas”, com a obrigação de telefonar para o SNS, em Póvoa de Varzim/Vila do Conde, e a recente disponibilização de informação estatística sobre a atividade da urgência hospitalar (até ao mês de setembro de 2024) permite uma primeira visão dos resultados.
Os quatro meses de atividade do Centro de Atendimento Clínico de Lisboa, para o qual surgiu informação na imprensa, ainda não estão refletidos na informação disponível para a utilização da urgência do Hospital de Santa Maria (presumivelmente o principal beneficiário da abertura deste Centro de Atendimento Clínico).
O projeto “ligue antes, salve vidas” em Vila do Conde/Póvoa do Varzim teve uma fase inicial de informação à população (de maio a dezembro de 2023), e a fase atual iniciou-se em janeiro de 2024. Nesta segunda fase, a regra é só serem atendidos em serviço de urgência hospitalar os casos que forem previamente triados pelo serviço telefónico SNS24, que se espera remeta os casos mais simples para os cuidados de saúde primários, com agendamento direto de consultas no próprio dia ou no dia seguinte. A chamada para o SNS24 tem de ser feita, mesmo que o seja a partir de um telefone fisicamente colocado perto do serviço de urgência hospitalar.
A medida de sucesso do projeto não é a existência de referenciação nos episódios de urgência, dado que essa vai existir sempre e por isso, por definição, aumenta face ao que sucedia anteriormente. O efeito que interessa conhecer é sobre o número de urgências atendidas por comparação com o que sucederia na ausência do projeto (o que é uma situação que não se observa diretamente).
Para procurar perceber os efeitos presentes, é útil comparar a evolução do número de episódios de urgência, na urgência hospitalar da ULS PVVC face ao seu passado, mas também face à evolução de outras unidades hospitalares, para captar efeito comuns e que possam tornar menos claro se o que se observou é resultado do projeto ou de outras medidas gerais, ou de uma tendência que viesse de meses e anos anteriores. No caso da urgência da Póvoa de Varzim/Vila do Conde o ponto de comparação mais natural é com a urgência hospitalar de Barcelos (pela dimensão, pela semelhança da população servida em termos da sua demografia e pela proximidade de evolução que houve antes do início do projeto). E felizmente, durante os nove meses de dados disponíveis, a unidade hospitalar de Barcelos não estava inserida no projeto.
O primeiro gráfico ilustra a evolução das urgências hospitalares nas duas unidades, usando a informação publicamente disponível. As linhas verticais representam os momentos chave: o início da informação sobre o projeto “ligue antes, salve vidas” na zona da urgência hospitalar de Póvoa do Varzim/Vila do Conde; e o momento de referenciação obrigatória.
O segundo gráfico tem a evolução da diferença entre urgências hospitalares da unidade de PVVC e da unidade de Barcelos.


Na análise visual (que é confirmada por análise estatística) resultam duas conclusões: a) a persuasão a menor utilização dos serviços de urgência através de comunicação na primeira fase do “ligue antes, salve vidas” não surtiu qualquer efeito; b) a obrigação da referenciação tem como resultado, ao fim de sensivelmente 4 meses, uma redução no número de urgências de cerca de 10%, já tendo em consideração uma evolução geral que teria lugar de qualquer modo (que é capturada pela diferença para a urgência hospitalar de Barcelos).
Antes de classificar como sucesso o projeto “ligue antes, salve vidas” (na zona de Póvoa de Varzim/Vila do Conde) é importante completar esta informação com outros elementos:
a) houve um desvio da procura de urgências para outras unidades hospitalares? No caso na zona geográfica da Póvoa de Varzim/Vila do Conde, o desvio de procura mais natural é para a urgência de Matosinhos. Os dados disponíveis não têm indícios desse desvio de procura;
b) houve o atendimento dessas pessoas nos cuidados de saúde primários, de forma satisfatória? Esta informação não está publicamente disponível, mas certamente a ACSS ou a Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde terão acesso a essa informação.
c) qual o grau de aceitação da população? (é natural que haja primeiro um aumento da insatisfação, mas será um efeito permanente ou dilui-se com o tempo).
Esta é a informação que a DE-SNS deveria recolher e analisar (e eventualmente
Se há um ano atrás, a informação pública sobre o projeto indicava ausência de qualquer efeito, a mudança de estratégia de “convencimento da população” para “obrigação da população” em usar a linha SNS24 terá tido os resultados pretendidos (pode-se discutir se a magnitude de redução de idas às urgências é a desejada, ou a esperada, ou a aproriada, ou não, mas de momento o efeito de redução da utilização da urgência é claro).

Exemplos de alguma informação pública sobre o projecto “ligue antes, salve vidas”

Documento da Direção-Executiva

Expansão do projeto – DE-SNS

ULS Braga – YouTube

anuncio inicial, junho 2023

(fazendo google do termo “”ligue antes, salve vidas” encontram-se muitas noticias e relatos)


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Depoimentos à Comissão Técnica Independente de estudo das unidades locais de saúde de cariz universitário

Depoimentos à Comissão Técnica Independente de estudo das unidades locais de saúde de cariz universitário

Julian Perelman (Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa)

Pedro Pita Barros (Nova School of Business and Economics, Universidade Nova de Lisboa)

07 de novembro de 2024

O presente documento apresenta os principais contributos para discussão apresentados em audiência solicitada pela Comissão Técnica Independente (CTI), instituída pelo Despacho n.º 10677/2024, com o objetivo de estudar as unidades locais de saúde de cariz universitário (ULSU) e a sua relação com o ensino médico, a formação e a investigação, de Julian Perelman (audiência realizada em 05 de novembro de 2024) e Pedro Pita Barros (audiência realizada em 06 de novembro de 2024).

Termos de referência da CTI:

a) Avaliar o modelo atual de funcionamento das ULSU, identificando os desafios estratégicos e o potencial de desenvolvimento, nomeadamente em contexto de articulação com os centros académicos clínicos;

b) Analisar a articulação entre as ULSU, as instituições de ensino superior e de investigação e os diferentes agentes e entidades de prestação de cuidados de saúde, com especial enfoque nos cuidados de saúde especializados de proximidade;

c) Propor modelos e estratégias de articulação sinérgicas das suas diferentes dimensões ao nível do ensino, da formação e da investigação nas ULSU, bem como a sua integração e articulação no quadro das redes de referenciação local, regional e nacional do Serviço Nacional de Saúde;

d) Identificar as melhores práticas nacionais e internacionais que possam ser adaptadas ao contexto e realidade das ULSU.

Posições comuns dos autores:

  1. O principal objetivo das ULSU é melhorar a integração dos cuidados, combinando serviços primários e hospitalares dentro de uma estrutura unificada.
  2. Existem problemas na definição das verbas disponibilizadas às ULS, assim como no modelo de governação, marcado pela falta de autonomia e responsabilização. Estes problemas aplicam-se às ULSU, em que as verbas se têm revelado insuficientes. Há a necessidade de uma revisão sistemática do modelo de financiamento e de governação das ULS.
  3. Há o reconhecimento de desafios específicos associados com o financiamento por capitação das ULSU, dado que estas têm, em geral, casos mais complexos e recebem doentes oriundos de áreas geográficas cobertas por outras ULS. Uma possibilidade é uma abordagem “Money follows the patient”, que obriga a uma definição de preços internos ao SNS. Deverá existir um valor de capitação ajustada para a complexidade, idade e patologia do doente. Modelos de ajustamento apenas baseados no diagnóstico, que não considerem a complexidade dos tratamentos, poderão ser insuficientes.
  4. Há o reconhecimento de as ULSU terem um papel crucial na educação médica (formação) e na investigação científica, sendo adequado ter orçamentos dedicados e afetação específica de tempo para as atividades de investigação.
  5. No caso da ULSU, um desafio específico decorre dos tratamentos inovadores de elevado custo. A participação das ULSU nas negociações de preços de medicamentos inovadores a serem introduzidos no SNS é vista favoravelmente. É vista desfavoravelmente a criação de um orçamento específico para a inovação (ou fundo dedicado a pagar a inovação).
  6. As ULSU, devido à sua relação próxima com universidades e estrutura mais complexa, exigem um modelo de governação distinto que inclua quadros específicos de representação e tomada de decisão dentro da ULSU. Esta perspetiva realça a necessidade de uma governação personalizada que tenha em conta as funções educativas e de investigação exclusivas das ULSU.

Considerações de Julian Perelman:

  1. O objetivo declarado da constituição das ULS é a maior integração de cuidados. Não há razão para que este não seja também objetivo das ULS Universitárias (ULS-U).
  2. A problemática central, apresentada publicamente, é a inadequação do orçamento. Esta inadequação não é específica às ULS-U, é referida por todas as ULS (e anteriormente pelos CH), e prende-se com desafios antigos de sub-orçamentação crónica, falta de autonomia e desresponsabilização das administrações. Estes temas devem ser tratados de forma genérica, para todas as ULS, com modelos mais adequados de orçamentação e governação.
  3. Uma questão específica é o pagamento maioritariamente baseado na capitação, inadequado para ULS-U que recebem utentes de fora da sua área de abrangência. Este problema, embora se coloque de forma mais aguda para as ULS-U, que oferecem cuidados mais complexos, pode também ser vivenciado por todas as ULS. Uma solução deveria ser “money follows the patient”, condição imprescindível para implementar melhor e credibilizar a liberdade de escolha. A ULS de origem financia a ULS de destino, como incentivo para as de origem manter os doentes e compensação para as de destino. A capitação deverá no entanto manter-se como fonte principal de financiamento.
  4. O ajustamento ao risco do pagamento per capita deverá ser adequado, tendo em conta não apenas a idade, sexo e patologia, mas também o nível de complexidade dos casos. Os ACG, que consta estarem a ser utilizados, poderão ser completados com dados dos GDH, que capturam melhor a complexidade.
  5. As funções de docência e formação dos especialistas das ULS-U são contempladas através do seu estatuto nas universidades (como docentes convidados, principalmente). No entanto, não existe orçamento para investigação clínica independente. Seria proveitoso existir um orçamento dedicado, por parte da FCT (ou AICIB) para promover esta investigação, e incentivos para a realizar através de libertação de tempo para investigação.
  6. A questão dos tratamentos inovadores de preços extremamente elevados pode ser contemplada de várias formas. Em primeiro lugar, ao contrário do que é referido, existe previsibilidade da entrada de novos fármacos (horizon scanning, aprovações pela EMA, entrada do pedido de financiamento no Infarmed), pelo que é possível estabelecer orçamentos adaptados com base em estimativas da despesa associada à entrada prevista dos novos tratamentos. Em segundo lugar, as ULS-U deveriam apoiar o Infarmed no processo de negociação com a indústria farmacêutica. Não é aceitável que quem paga os tratamentos não seja envolvido na negociação dos preços. Será uma forma de serem envolvidos numa problemática que lhes diz respeito, ganhar awareness quanto aos desafios da inovação, e poderem contribuir diretamente para a sua própria sustentabilidade e a sustentabilidade do SNS. Em terceiro lugar, deverá ser reforçado o processo de normas de orientação clínicas, redigidas imediatamente após a aprovação de financiamento, e a monitorização do seu cumprimento. Finalmente, não é desejável existir um orçamento separado para a inovação gerido centralmente, que desresponsabilizaria as ULS-U, contribuindo para um aumento desnecessário da despesa.

Considerações de Pedro Pita Barros

  1. Não disponho de informação estatística publicamente disponível suficiente para fornecer uma resposta baseada em evidência.
  2. As considerações apresentadas referem-se a análise estratégica.
  3. A criação de ULS, incluindo as ULSU, conjugam duas transformações simultâneas, ambas com efeitos relevantes: há uma integração vertical entre hospitais (universitários, no caso das ULSU) e há um financiamento definido por capitação (ajustada).
  4. A integração vertical de hospitais universitários com unidades de cuidados de saúde primários tem potenciais vantagens estratégicas: 1) coordenação / integração de cuidados, desde que se proceda a uma análise e redefinição de percursos clínicos e de fluxos de informação, reduzindo atrasos no tratamento e levando a uma melhor experiência do doente. 2) partilha de recursos, como equipamentos de diagnóstico e aproveitamento de economias de escala associadas com investimentos em tecnologias de informação e tarefas administrativas, melhor gestão de recursos, com coordenação e ligação entre os vários níveis de cuidados. Há eventuais vantagens de economias de escala em compras e em serviços partilhados; 3) partilha de riscos por agregação de unidades, e sua melhor gestão conjunta; 4) espaço de educação e oportunidades de investigação, incluindo investigação clinica nos cuidados de saúde primários, facilitada; 5) visão integrada das atividades de prevenção e de promoção da saúde, na medida em que a ULS internaliza os ganhos respetivos; 5) partilha de dados facilitada por decisões sobre sistemas de informação e métricas a utilizar para avaliação de desempenho e de saúde da população.
  5. A integração vertical de hospitais universitários com unidades de cuidados de saúde primários tem potenciais desvantagens estratégicas: 1) juntar hospitais universitários e cuidados de saúde primários numa única entidade administrativa pode conduzir a um aumento da complexidade administrativa e dos custos associados. Tal pode compensar os potenciais ganhos de eficiência. 2) Os hospitais universitários têm frequentemente custos operacionais mais elevados devido a atividades de investigação e formação. Quando se integra um hospital universitário com cuidados de saúde primários, a estrutura de custos pode mudar, potencialmente levando a despesas globais mais elevadas a serem distribuídas por todo o sistema; 3) maior complexidade de gestão – diferenças na cultura organizacional, prioridades e modelos operacionais entre hospitais universitários e unidades de cuidados de saúde primários podem levar a ineficiências. Os hospitais universitários normalmente têm missões acadêmicas e de investigação que podem não se alinhar com as missões mais focadas na comunidade dos cuidados de saúde primários. 4) A integração vertical pode levar à padronização dos protocolos que guiam os percursos clínicos para agilizar as operações, o que pode ser inibidor de inovação organizacional? (mais difícil introduzir inovações em sistemas organizacionais mais complexos); 5) choque de prioridades, os hospitais universitários podem dar mais importância à investigação e à formação, o que poderia desviar recursos das necessidades de cuidados de saúde primários. 6) menor autonomia dos cuidados de saúde primários, que podem perder a sua independência e capacidade de tomar decisões que respondam especificamente às necessidades da comunidade local. As decisões tomadas ao nível do hospital universitário podem nem sempre estar alinhadas com o que é melhor para os cuidados de saúde primários. O modelo atual, com financiamento separado das USF, baseado em indicadores específicos, pode entrar em conflito com os incentivos ao nível da ULS, levando à um desalinhamento dos objetivos (problema comum à todas as ULS, não só ULSU).
  6. A segunda transformação fundamental é o pagamento por capitação. Pagar hospitais universitários por capitação tem várias desvantagens: 1) sendo os hospitais universitários de elevada complexidade e tendo eventuais custos de formação a serem incluídos, a capitação ajustada apenas de acordo com o risco da população servida poderá não ser compensador financeiramente (o que no Serviço Nacional de Saúde acarreta dívida, pagamentos em atraso e regularizações extraordinárias, com efeitos negativos na qualidade de gestão). A capitação, se o valor não for definido adequadamente, pode desencorajar o investimento em novas tecnologias ou procedimentos. Acresce que há a considerar que os hospitais universitários servem procuras de serviços de outras ULS, devendo ou a capitação ser ajustada ou serem usados preços internos ao SNS. 3) a capitação poderá não ser suficiente para as missões mais vastas dos hospitais universitários, como o ensino e a investigação. 4) maior dificuldade técnica no estabelecimento do valor da capitação. Embora os modelos de capitação geralmente incluam ajuste de risco, ajustar com precisão para a maior complexidade e gravidade dos casos que são tratados pelos hospitais universitários pode ser difícil. Um ajustamento inadequado dos riscos da população servida pode resultar em perdas financeiras e desafios operacionais.5) riscos de instabilidade financeira, pois a capitação exige que as ULS façam a gestão dentro de orçamentos fixos, o que pode ser particularmente arriscado para as ULS com hospitais universitários devido ao seu duplo foco em cuidados de elevada diferenciação e educação
  7. Por outro lado, existem vantagens estratégicas em termos de controle de custos, eficiência e qualidade assistencial: 1) o financiamento por capitação permite, em princípio, um orçamento mais previsível e estável, tanto para o Estado quanto para a ULS (embora esta maior segurança orçamental possa ser subvertida se a regra de capitação resultar de uma posição relativa face a um valor global de orçamento arbitrário, em vez de um valor absoluto de despesa adequado ao movimento assistencial para a população coberta). 2) incentivos à eficiência: o pagamento fixo per capita incentiva as ULS a controlar custos, evitando exames e procedimentos desnecessários. Tal pode conduzir a uma utilização mais eficiente dos recursos e a uma redução das despesas gerais com cuidados de saúde. 3) como o pagamento da capitação não está ligado ao número de serviços prestados, as ULSU têm um incentivo financeiro para investir em prevenção e estratégias de promoção da saúde. O financiamento por capitação fomenta uma abordagem de saúde da população, incentivando a considerar os resultados de saúde da população. 4) o financiamento por capitação desencoraja o uso excessivo de testes de diagnóstico, procedimentos e outros serviços que podem não ter valor terapêutico suficiente e assim reduzir as despesas de saúde desnecessárias. 5) o financiamento por capitação incentiva as ULSU a adotarem uma abordagem mais integrada e baseada em equipas multidisciplinares para o atendimento. Isto pode levar a uma melhor coordenação entre várias especialidades e serviços, melhorando os resultados dos doentes e a qualidade geral dos cuidados, enquanto está associada a menor despesa.6) os pagamentos por capitação dão às ULSU mais flexibilidade na forma como usam os seus recursos do que modelos de pagamento baseados em processos ou atividade. Tal pode incentivar a adoção de práticas assistenciais inovadoras, como serviços de telessaúde ou equipas multidisciplinares. 7) uma vez que o benefício financeiro sob capitação vem de manter a população saudável e não do volume de serviços prestados, as ULSU são incentivadas a dar mais atenção em alcançar melhores resultados de saúde e maior satisfação do paciente – a lógica dos cuidados de saúde baseados no valor (value-based health care).
  8. Optar por integrar verticalmente um hospital universitário com unidades de cuidados primários na mesma área de abrangência implica ponderar os potenciais benefícios face aos desafios e riscos.
  9. A integração vertical em ULSU, para resultar, deverá satisfazer várias condições: a) estrutura de governação clara – deverá ter um modelo de governação interno que inclua a representação tanto do hospital universitário quanto das unidades de cuidados de saúde primários, com mecanismos que mitiguem a tendência para a predominância da visão hospitalar. Deverá ser criada uma missão e uma visão partilhadas que integrem os objetivos académicos, de investigação, e clínicos do hospital universitário com os objetivos orientados para a comunidade das unidades de cuidados de saúde primários. 2) Deverá ser clara a divisão orçamental entre atividades hospitalares correntes, atividades de ensino e investigação, e atividades de cuidados de saúde primários, a fim de identificar, e corrigir,  desequilíbrios de recursos e assegurar que cada área de atividade recebe financiamento adequado (eventualmente de fonte diferente, no caso das atividades de ensino e investigação); 3) Deverá existir clareza quanto à forma de tratar o risco financeiro, no contexto de financiamento por capitação, das ULSU, nomeadamente o que sucede se a verba atribuída for insuficiente face à despesa efetiva da ULSU. 4) deverá ser preservada a integridade acadêmica e de investigação científica, sustentando um quadro global de apoio à inovação (na investigação produzida e no ensino ministrado). 5) Aplicação de programas de gestão da mudança e formação de pessoal para criar uma cultura unificada (juntando três culturas numa mesma entidade: académica, hospitalar e de cuidados de saúde primários).
  10. Da discussão realizada durante a audição, foi dado o exemplo de remunerações bastante assimétricas entre profissionais de saúde do meio hospitalar e do meio académico e profissionais de saúde nos cuidados de saúde primários como exacerbando choques de cultura organizacional entre os vários grupos. No caso das ULSU, a existência dos profissionais em meio académico é uma fonte adicional de tensão a necessitar de acompanhamento, bem como eventuais assimetrias crescentes dentro das diferentes unidades, e das ULSU versus ULS. Aqui, a medida de assimetria deverá calculada com base no valor médio mensal depositado na conta bancária de cada profissional de saúde. A medida mais simples será o rácio S90/S10, em que S90 é o valor do percentil 90% nos valores de remuneração e S10 é o valor do percentil 10% nos valores de remuneração. Apenas as instituições possuem a capacidade de cálculo deste indicador de assimetria.
  11. Na definição dos pagamentos por capitação ajustada, face ao receio que a capitação ajustada não refletir ainda todos os custos diferenciais justificáveis associados às ULSU, será de considerar a possibilidade de um fundo de compensação ex-post, com regras definidas de forma a manter incentivos à eficiência e desincentivo à seleção dos doentes com menores custos. Tanto ULSU como ULS deverão fazer parte deste fundo de compensação, em que unidades com uma composição de doentes menos complexos contribuem em termos líquidos e unidades com doentes mais complexos recebem, sendo as contribuições calibradas pela eficiência de cada ULS. Para uma descrição de regras de cálculo possíveis, sugere-se a consulta de Pedro Pita Barros, Cream-skimming, incentives for efficiency and payment system, Journal of Health Economics, Volume 22, Issue 3, 2003, pages 419-443. Um exemplo de aplicação a um sistema de saúde é a Cuenta de Alto Costo (https://cuentadealtocosto.org), criada na Colômbia.
  12. Quanto à questão (colocada) de existência de fundo especifico para medicamentos inovadores, a experiência internacional de fundos específicos, nomeadamente no Reino Unido, sugere que não é uma alternativa interessante aos procedimentos atualmente em vigor em Portugal, sendo que no caso nacional será de contemplar uma intervenção mais ativa das ULSU na definição de preços e acordos de entrada no mercado de novos medicamentos, em cooperação com o Infarmed.
  13. Quanto à questão (colocada na audiência) de ajustamento para custos definidos com informação deferida, não é um aspeto específico das ULSU, e poderá seguir mecanismos automáticos de correção posterior (já usados oficialmente noutros contextos de definição de pagamentos em sistemas regulados).
  14. Quanto à questão (colocada na audiência) de pagamentos adicionais dirigidos a aspetos específicos, definidos de forma ad-hoc, não deverão ser uma regularidade na definição do financiamento das ULSU (ou de qualquer ULS) pelos efeitos de incentivos, contrários à procura de eficiência, que criam.
  15. Quanto à questão (colocada na audiência) de como medir o benefício do ensino e da investigação científica, não é claro em que medida essa informação deverá fazer parte do sistema de financiamento, por um lado. Por outro lado, se garantir esse benefício for um objetivo, então deverá procurar-se a melhor forma de o alcançar, o que dispensa a sua medição exata em termos de comparação das alternativas. 
  16. Quanto à questão (colocada na audiência) de como financiar as atividades associadas à formação pré-graduada, graduada e investigação, estas deverão ser financiadas por fórmulas próprias, depois de uma adequada valorização. Não deverão ser valores incluídos na capitação associada com as necessidades de cuidados de saúde da população abrangida pela ULSU.
  17. Quanto à questão (colocada na audiência) da relevância de uma carreira integrada com profissionais dedicados quer ao trabalho assistencial quer ao trabalho académico, sem prejuízo de opinião baseada em estudo adicional, considero ser adequado procurar-se a solução que oferecer maior flexibilidade quer às ULSU quer às Universidades, através de acordos bilaterais que sejam estabelecidos em termos de emprego. A existência de reconhecimento de competências específicas associadas a esta carreira integrada deverá ser independente dos vínculos laborais.
  18. Quanto à questão (colocada na audiência) de concorrência (na escolha do cidadão) entre unidades do SNS financiadas por capitação e unidades do SNS financiadas por produção que servem a mesma população, numa primeira abordagem, é, a meu ver, tratável numa lógica de preços internos do SNS (“Money follows the patient”), embora mereça reflexão adicional antes de uma posição definitiva.
  19. Globalmente, as características adicionais de uma ULSU face a uma ULS estão ligadas aos dois aspetos de integração vertical e de financiamento por capitação. O financiamento por capitação é sobretudo um problema técnico de definição do valor adequado, não um problema conceptual.
  20. Se o SNS não tiver a capacidade técnica de realizar os cálculos apropriados, o financiamento por capitação pode funcionar contra a ideia de ULSU. Se o financiamento por capitação não for credível nas suas implicações financeiras, então será essencialmente irrelevante para a discussão entre haver ou não ULSU. A complexidade adicional da estrutura vertical com ensino universitário tem de ser contrastada com os benefícios de coordenação entre níveis de cuidados de saúde através de elementos organizacionais. 
  21. Se houver uma atenção adequada à gestão da mudança, à conciliação das diferentes culturas existentes, e ao equilíbrio entre hospital universitário e cuidados de saúde primários em termos de poder de decisão, a integração em ULSU poderá ser preferível a manter as entidades em separado.
  22. Numa lógica global do SNS, será preferível a manutenção das ULSU face à alternativa de fragmentação de modelos organizativos dentro do SNS, com mecanismos distintos de financiamento para cada tipo de unidade.


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Lançamento do Nova SBE Institute of Public Policy e duas perguntas

DoI: trabalho na Nova SBE. Este post não é publicidade institucional.

Decorreu na passada sexta-feira, 20 de setembro, o lançamento do Nova SBE Public Policy Institute. Quem quiser saber mais detalhes pode consultar o link.

Na sessão de lançamento, houve duas perguntas que me foram dirigidas e às quais não houve tempo de dar resposta. Conforme prometido, venho dar aqui as respostas curtas (qualquer das perguntas merece uma resposta mais longa e detalhada):

  1. Is there any major incentive misalignment in the Portuguese healthcare system?
  2. Can Public Policy foster economic growth via exports of Healthcare, CRO, Biopharma and Med Tech?

Para a primeira pergunta, Is there any major incentive misalignment in the Portuguese healthcare system?, a resposta é sim, existem vários problemas de desalinhamento de incentivos. E é possível dar exemplos desde elementos micro até elementos macro. Para dar dois destaques, um de natureza mais micro e outro de natureza mais macro, escolho, na parte micro, os incentivos internos às Unidades Locais de Saúde, na ligação entre cuidados de saúde primários e hospitais. Na parte macro, o desalinhamento de incentivos mais relevante está em as Unidades Locais de Saúde (tal como os hospitais antes delas) terem em geral mais preocupação com o que a “tutela” do que com a satisfação dos utentes (ainda que a retórica oficial diga o contrário, a prática é suficientemente clara). Há muitos outros exemplos, seja no sector público, seja no privado (com ou sem fins lucrativos), seja na ligação entre os dois.

para a segunda pergunta, “Can Public Policy foster economic growth via exports of Healthcare, CRO, Biopharma and Med Tech?”. Também aqui a resposta é sim, mas não as políticas públicas na área da saúde. São as políticas públicas da área da economia, o que dantes se chamava política industrial, que deverão ter essa missão. Não faz, a meu ver, muito sentido distorcer o funcionamento do sistema de saúde, em particular o SNS, para promover o desenvolvimento de empresas. Adicionalmente, a dimensão do sistema de saúde português dificilmente será suficiente para o desenvolvimento sustentado de empresas. A dimensão nacional é demasiado pequena para garantir essa sustentabilidade de negócios. Dito isto, há possibilidades mutuamente vantajosas de usar o sistema de saúde português, SNS incluído, para encontrar oportunidades de inovação, e de testar soluções, envolvendo as unidades de saúde, as empresas, e as universidades e centros de investigação. Para dar uma resposta mais completa recorro a um post com mais de três anos (de 21.07.2021), onde detalho um pouco mais como penso que se poderia atuar neste sentido:

“A sugestão é pensar na relação das entidades do SNS com os seus fornecedores de um modo que ajude à identificação de oportunidades de inovação, que começando localmente possam, algumas pelo menos, alcançar escala internacional. Tal poderá suceder na prestação direta de serviços à população, mas será muito mais provável que ocorra na criação ou aperfeiçoamento de bens e serviços utilizados por prestadores de cuidados de saúde (públicos ou privados). Por exemplo, um hospital ao identificar uma necessidade específica tem de ter disponíveis os mecanismos formais e de apoio que lhe permitam estabelecer uma relação com um ecossistema de inovação de base local ou próxima (universidades/centros de investigação) para encontrar uma solução para o problema encontrado. O desenvolvimento, inicialmente na esfera local, dessa solução poderá depois, através de instrumentos de política industrial, receber as condições necessárias para ganhar escala e operar no mercado internacional (vender a outros prestadores, públicos ou privados, de outros países essa mesma solução).  

O principal contributo do Serviço Nacional de Saúde está na identificação e eventual exploração de oportunidades de inovação e não no fornecimento de escala de longo prazo (que é limitada pela dimensão do país) ou na criação de “mercado protegido” (que seria prejudicial ser for uma estratégia seguida por todos os países). 

Partindo deste princípio genérico, o passo seguinte é a definição de medidas concretas que permitam às entidades do SNS ter este papel. Sem preocupação de exaustividade, sugerem-se para discussão as seguintes propostas: 

Usar os processos de contratação pública (e privada) para desenvolver inovação. A natureza particular dos bens e serviços de saúde criam barreiras específicas, entre elas a informação sobre as necessidades que possam ser inspiradoras de inovação e a estabilidade de decisões de aquisição (para permitir o tempo de realizar a inovação). Os processos de contratação e aquisição de bens e serviços deverão ser conhecidos, regulares (estabilidade no tempo) e serem claros nas dimensões de inovação que permitem (não serem apenas determinados pelo preço mais baixo). A existência de plataformas de diálogo local sobre a evolução das necessidades sentidas pelos prestadores de cuidados de saúde e sobre as capacidades existentes nas empresas e nos centros de inovação será um elemento facilitador importante. A definição dos termos de contratação ou de aquisição de bens e serviços deverá ter em conta estes diálogos, sem criarem mercados protegidos. As parcerias para a inovação entre prestadores de cuidados de saúde do SNS, empresas e universidades/centros de investigação poderá ser facilitada pela disponibilização de minutas de contratos tipo de parceria que reduzam os custos da sua elaboração (estes contratos tipo devem ser facilmente monitorizáveis e procederem a uma divisão dos ganhos de inovação que ocorram, não sendo obrigatória a sua utilização). Mais ainda, a utilização das compras públicas poderá ser utilizada para fomentar inovação sustentável do ponto de vista ambiental, alinhando assim com mais do que um dos objetivos definidos no Regulamento do Mecanismo de Recuperação e Resiliência.

Criação de apoio à formação de profissionais de saúde em investigação e desenvolvimento, tecnologia, evolução digital e empreendedorismo, na ótica de fornecer os conhecimentos necessários para a identificação de oportunidades, por um lado, e para uma adequada gestão das relações de parceria, por outro lado. Idealmente, deverá utilizar-se uma entidade existente para organizar esta iniciativa, sendo avaliada pelos resultados produzidos em termos de parcerias de inovação realizadas a três anos envolvendo profissionais que tenham participado nestas ações. 

Promoção de exercício anual de “horizon scanning” e elaboração de cenários a médio e longo prazo (prospetiva) para a prestação de cuidados de saúde a nível global, divulgados dentro do sistema de saúde português, como serviço público de informação sobre a qual ideias possam ser desenvolvidas. Por exemplo, um primeiro exercício poderá ser sobre o papel da inteligência artificial na prestação futura de cuidados de saúde (promessas, becos-sem-saída, áreas desconhecidas, etc.). 

Definir mecanismos que facilitem a inovação para aplicações na área da saúde por parte de sectores tradicionais da economia portuguesa (por exemplo, mobiliário). 

Criar formas de divulgação e programas de apoio que vençam barreiras iniciais para levar a que inovações desenvolvidas no âmbito da saúde possam ter aplicações noutras áreas.  

Colocando a inovação no centro da relação do SNS com a atividade empresarial torna-se relevante conhecer como atualmente se caracterizam os vários potenciais intervenientes. Em particular, saber como as diferentes entidades do SNS pensam, se é que pensam, nas suas necessidades que requeiram elementos de inovação; saber como as universidades, centros de investigação, centros de incubação de novas empresas e empresas encaram estas relações; saber como as entidades públicas de apoio à inovação olham para a adequação dos instrumentos que disponibilizam, etc.

No que respeita à capacidade das unidades do SNS terem este papel adicional à sua atividade assistencial, é necessário ter em mente que não há nem investigação nem inovação sem um corpo clínico altamente diferenciado e motivado. É necessário um programa de retenção e atração destes profissionais, pela possibilidade de meios e tempo para investigar e inovar. Como instrumento complementar aos investimentos que sejam realizados, é essencial criar os enquadramentos (legais e funcionais) para esta investigação tenha lugar. Sugere-se a criação de mecanismos que permitam sequências de carreiras profissionais com períodos passados em universidades e em unidades de saúde, sem que haja necessidade do profissional de saúde ter que permanentemente negociar com cada um dos lados (universidade e/ou unidade de saúde) a sua situação.”


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Nomeações para as Unidades Locais de Saúde, transparência, mérito e credibilidade

A atual situação política veio trazer obstáculos inesperados às mudanças em progresso no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Em particular, o processo de criação das novas unidades locais de saúde e as nomeações das equipas dirigentes parecerem ficar, inicialmente, num “limbo burocrático”. A solução encontrada, a de colocar no Lei do Orçamento do Estado, a capacidade de “designação dos membros dos órgãos de gestão” na Direção-Executiva do SNS (DE-SNS), é um mal menor. Numa lógica do papel da DE-SNS, esta deveria ter, pelos seus estatutos, a capacidade de fazer estas nomeações e assumir a responsabilidade pelos resultados das mesmas.

A preocupação com as nomeações, nesta altura de incerteza política, resulta dos riscos de nomeação por critério político e não por mérito profissional. A “carambola” de nomeações, com a rotação de pessoas, por vezes para haver espaço para acomodar quem sai de funções em ministérios, é possível de acontecer. Mas adiar as nomeações iniciais das Unidades Locais de Saúde criará, provavelmente, mais problemas, com consequências reais, mas frequentemente dificilmente observáveis no imediato, para a capacidade de atendimento às necessidades das populações.

A preocupação com os critérios de nomeação é facilmente resolvida pela DE-SNS se, conjuntamente com a nomeação de cada equipa dirigente, disponibilizar no seu site de internet uma nota justificativa do mérito profissional de cada nomeação realizada. A mera informação de que se nomeou é pouco para se conhecer melhor os motivos e as expectativas associadas à nomeação (como exemplo, aqui, o último conjunto de nomeações divulgado pela DE-SNS no momento de escrita deste texto). 

Não sendo um elemento obrigatório do processo de nomeação, a apresentação voluntária e pública desta nota justificativa dá força técnica a quem é nomeado e promove a transparência e a responsabilização da DE-SNS pelas nomeações que faz. 

Será também interessante perceber se a DE-SNS irá aproveitar esta possibilidade de nomear as estruturas dirigentes das Unidades Locais de Saúde para transmitir sinais claros sobre a importância relativa do hospital e das unidades de cuidados de saúde primários que fazem parte da Unidade Local de Saúde. Uma predominância acentuada de dirigentes das novas ULS com origem em hospitais transmitirá uma imagem, indesejada a meu ver, de maior importância do hospital face aos cuidados de saúde primários.

Ou seja, é bom que seja a DE-SNS a fazer em tempo útil as nomeações das equipas dirigentes das ULS, assumindo a responsabilidade das escolhas que faz. Tem também a oportunidade de concretizar essas nomeações num contexto de transparência voluntária quanto papel do mérito profissional das pessoas escolhidas.

Sendo provável, estatisticamente, que algumas das novas ULS venham a funcionar pior do que outras, esta transparência, à partida, das nomeações feitas é igualmente uma forma de defesa contra futuras acusações de nomeação por critérios políticos. 

(created with Dall-E)