O problema da sustentabilidade financeira tinha que inevitavelmente vir mencionado no programa do Governo.
O título usado no programa do Governo expressa desde logo um dos equívocos que terá de ser resolvido no detalhe da actuação.
Não é irrelevante escrever sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde ou sustentabilidade financeira do sistema de saúde.
O sistema de saúde é mais amplo que apenas o Serviço Nacional de Saúde. É duvidoso que a sobrevivência financeira das entidades privadas (com ou sem fins lucrativos) seja um objectivo do Ministério da Saúde, do Governo em geral. A ser lido de forma literal o título, qualquer clínica, consultório privado ou agrupamento legal de profissionais de saúde deveria ter a sua sustentabilidade financeira assegurada pelo Orçamento do Estado. Não só não é possível garantir na prática, como é desejável que a preocupação de sustentabilidade financeira por parte do Ministério da Saúde (do Governo) se limite ao Serviço Nacional de Saúde.
Estabelecido este ponto prévio, as diferentes actuações / medidas preconizadas sob este tema no programa do Governo podem ser agrupadas segundo o tempo que demoram a produzir efeitos.
A curto prazo (dois anos ou menos):
– revisão das taxas moderadoras, segundo os princípios acordados no memorando de entendimento com a troika (e que já tinham sido apontado no Relatório para a Sustentabilidade Financeira do Serviço Nacional de Saúde, em 2007).
– revisão das isenções das taxas moderadoras (que à semelhança da revisão do valor, também constava de propostas anteriores)
A médio prazo prazo (mais de 2 anos e até 5 anos):
– avaliar oportunidades de concessão de gestão a privados (incluindos nos privados, o chamado sector social). Aqui a grande questão a ser resolvida é a especificação das condições para que funcione, até porque não se consegue ter a certeza absoluta, à partida, de quando esta concessão de gestão será mais eficiente que a gestão pública. Há porém que resistir à tentação comum de especificar para a gestão privada condições tais que tenha de imitar tanto quanto possível a gestão pública. Esta tentação retira quase por definição a vantagem que a gestão privada possa trazer em termos de inovação e qualidade de gestão.
– melhorar os mecanismos de contratualização.
– actualizar o modelo de financiamento hospitalar.
Estas medidas destinam-se a conseguir um funcionamento mais eficientes das unidades prestadoras de cuidados de saúde. Vai ser relevante o modo e o valor das transferências que sejam acordadas, bem como os mecanismos de revisão dos mesmos.
A longo prazo (mais de 5 anos)
– programas de promoção da saúde e prevenção da doença
– sensibilizar os cidadãos para os custos associados com a prestação de cuidados de saúde
Coloco estes dois aspectos em longo prazo nos seus efeitos, mesmo que as medidas sejam aprovadas rapidamente. Estes dois aspectos implicam alteração de comportamentos, o que leva tempo e exige persistência e paciência. Mesmo que num prazo curto (algures entre 1 e 2 anos) se consiga dar a factura virtual a cada cidadão ou permitir a sua consulta via internet, o comportamento individual de cada cidadão levará tempo a mudar.
De natureza incerta, classifico as medidas com o “propósito de
-promover uma melhor articulação entre os sectores público, privado e social
-envolver as entidades do sector na necessária avaliação e clarificação da arquitectura organizativa do sistema”
Sendo o Serviço Nacional de Saúde a estrutura base do sistema de saúde português é inevitável que se tenha de relacionar com outros agentes económicos que prestam também cuidados de saúde, ou que assumem responsabilidades de garantir acesso a cuidados de saúde.
Mas sempre que o Serviço Nacional de Saúde comprar ou vender cuidados de saúde a outros agentes económicos, vai ter interesses divergentes num aspecto – quando compra, o SNS quer comprar barato; quando vende quer receber o mais possível (pelo menos cobrir os custos).
A articulação entre sectores promove-se não por palavras mas por clareza, objectividade e comportamento exemplar de parte a parte nas relações e contratos que sejam estabelecidos.
Não é razoável pedir a prestadores isolados que tenham uma visão sistémica. Tal visão pertence ao Ministério da Saúde. A pretensa ou pretendida colaboração das entidades do sector na dita clarificação da arquitectura organizativa do sistema de saúde tem que evitar que cada um defenda apenas e unicamente os seus interesses, mesmo que à custa do bem comum, no que os economistas denominariam corrida de “rent seeking”.
Talvez esteja enganado, mas creio que dificilmente se ouvirá um prestador privado (ou social) que se proponha sair do mercado por ser pouco eficiente ou por prestar algum serviço desactualizado. Se esse prestador privado ou social estiver em dificuldades argumentará certamente que a culpa é da falta de apoio do Ministério da Saúde.
Adicionalmente a todos estes aspectos, e este texto já vai longo, é fundamental que a discussão sobre a sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde não esqueça dois aspectos:
1) a sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde é uma restrição de recursos que se defronta, não é um objectivo ou um desígnio do Serviço Nacional de Saúde em si mesmo. É uma restrição, não é um fim. Quer-se obter a melhor saúde para a população, prestando os cuidados de saúde apropriados, dentro dos recursos disponíveis, isto é, sujeito a que o Serviço Nacional de Saúde tenha sustentabilidade financeira.
2) a restrição da sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde é definida no contexto do espaço orçamental do Estado. O Ministério da Saúde, quanto responsável pelo Serviço Nacional de Saúde, interage no seio do Governo com os restantes ministérios para obter fundos para o Serviço Nacional de Saúde, em vez de outros serviços noutros ministérios. Há, inevitavelmente, uma dimensão de escolha política, na definição das condições de sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde.