O Documento de Estratégia Orçamental estabelece – suponho que o podemos tomar como compromisso – uma agenda de transformação estrutural da economia portuguesa.
Tenho desde logo problemas com o título – o Estado NÃO consegue transformar estruturalmente a economia, excepto nas direcções erradas – pode certamente nacionalizar tudo ou contratar funcionários públicos, mas não pode assegurar que serão criadas novas empresas privadas, ou que volume de emprego privado será criado.
O Estado pode criar as condições necessárias para essa transformação estrutural possa ter lugar. E pensar deste modo retira das mãos do Estado o poder de controlar e dirigir directamente a economia, para o poder de enquadrar e permitir direcções de exercício de liberdade económica.
Mas vejamos a agenda de transformação:
– privatizações – a redução do Estado empresário é fundamental em várias dimensões, de financiamento, de falta de concorrência, de protecção implícita, e vai obrigar em alguns sectores a um maior rigor de acompanhamento regulatório e ou de defesa da concorrência. Resta saber se o Estado, nas suas diferentes vertentes, não será “capturado” pelas grandes empresas privatizadas. É um risco a acautelar.
– aumento da concorrência – apenas publicar uma nova lei será pouco eficaz, não são a actuação da Autoridade da Concorrência terá de corresponder à nova lei (ainda desconhecida), como o sistema judicial terá que dar resposta. O novo tribunal especializado é uma incógnita.
– desvalorização fiscal – claramente, só cá está porque foi explicitamente mencionada pela troika. É claro do documento que não se acredita no poder da desvalorização fiscal. Uma desvalorização fiscal faseada é uma boa forma de dizer que não produz efeitos, e deixar cair na primeira oportunidade (se vier a existir de todo).
– liberalização das profissões reguladas – não é claro, neste documento, quais são, mas pelo menos fica a intenção de maior acesso ao exercício destas profissões por profissionais qualificados de outros países da União Europeia. A melhor forma de introduzir concorrência é abrir a entrada. Assim se concretizem as intenções. Não faltarão os protestos das profissões.
– reforma do sistema judicial – é dos aspectos mais essenciais a serem resolvidos, o mais rapidamente possível. Gostava de começar por ver discutido porque é que no entender deste Governo as reformas anteriores não resultaram, e apoiar esse diagnóstico com dados. Isto porque temos ouvido repetidas vezes falar da importância desta reforma, sucessivos governos anunciaram várias reformas (ou remendos), mas em cada momento que se inicia uma nova reforma / remendo esquece-se a evidência sistemática, e tudo aparenta ser baseado em palpites ou esperanças (mais ou menos informados). O que é pouco para uma área central.
– funcionamento do mercado de trabalho – dada a importância política e junto da população, bem como da demagogia na discussão à sua volta, é dito surpreendentemente pouco nesta parte do documento.
Depois desta agenda de transformação, o documento entra no cenário macroeconómico, e a maior surpresa desse cenário macroeconómico é não se ter a mínima ideia de como cada elemento da agenda de transformação contribui em termos de recuperação orçamental e em termos de crescimento económico. Não era suposto as duas coisas estarem ligadas? A agenda de transformação não é para crescer mais? Só sabendo a contribuição de cada medida, isoladamente e em conjunto, se poderá falar de prioridades e contributos.
Na discussão do cenário macroeconómico a evolução das grandes rubricas habituais, consumo, investimento, exportações, etc…, é completamente desligada dos efeitos da agenda de transformação. Ou esta só tem efeitos depois do prazo do cenário (e devia ser dito), e ficamos sem saber o que nos guia durante os próximos anos; ou não se tem qualquer ideia dos seus efeitos, e nesse caso damos um passo em frente com base na fé.
Tenho que reconhecer, honestamente, que não é fácil fazer a ligação entre as medidas da agenda da transformação e o crescimento da economia, efectivo e do produto potencial. No entanto, a dificuldade de o fazer significa que provavelmente apenas o Governo terá os recursos técnicos e de informação para estabelecer alguma presunção de efeitos. O Estado deve ter consigo uma exigência de rigor técnico que lhe permita responder a estas questões, de uma forma tecnicamente sustentada. Se existe essa análise e é considerada demasiada técnica para uma comunicação geral, então poderia ser disponibilizada em documentos técnicos para quem quisesse ver.