A pressão atual sobre os serviços de urgência hospitalar não é algo novo. É um problema cíclico (surgiu praticamente todos os anos em Dezembro, Janeiro e/ou Fevereiro, antes da pandemia alterar este padrão), e desse modo tem que receber uma resposta cíclica e pontual, durante o período de maior procura. Ter a posição de “culpar as falsas urgências” é uma falsa resposta.
Na decisão de recorrer a uma urgência hospitalar, as decisões individuais antes de ir à urgência são influenciadas por vários elementos: a) o que se pensa que possa ser o problema, com um desconhecimento sobre a real situação de cada um; b) a existência, ou não, de outra resposta, além da urgência hospitalar e que seja equivalente do ponto de vista do cidadão, seja em conforto de hora de atendimento e/ou facilidade de deslocação seja em termos de capacidade de resolução; c) custos que tenha, ou não tenha, cada uma das opções disponíveis; d) hábitos existentes de recurso a serviços de saúde.
O argumento das “falsas urgências” consiste em afirmar que um número razoável de casos não deverá ser tratado no contexto de urgência hospitalar. Essa afirmação é provavelmente verdadeira, só que esse conhecimento só se tem depois da pessoa ter sido observada. Uma falsa urgência depois de observação não é necessariamente uma falsa urgência antes de observação (pela falta de conhecimento que o cidadão terá para identificar o grau de gravidade da sua situação). De outro modo, se o cidadão souber que não deve ir à urgência hospitalar e mesmo assim tomar essa decisão, então será melhor chamar-lhe “urgência recreativa”.
A solução aparente para as falsas urgências, aquelas baseadas numa falta de informação do cidadão, será o recurso a outros pontos de contacto com o Serviço Nacional de Saúde, antes de ir à urgência hospitalar. Exemplos desses outros pontos de contacto são a linha de atendimento do SNS e os cuidados de saúde primários.
Para perceber a dimensão das falsas urgências, uma forma possível de o fazer é olhar para os casos que são chamados de falsas urgências segundo a sua origem – pessoas que tenham sido remetidas (referenciadas) para a urgência hospitalar por decisão dos cuidados de saúde primários, depois de observadas, não deverão ser consideradas como “falsas urgências” se aceitarmos que a decisão clinica depois de observação é a adequada. Também pessoas que passam pela linha SNS24 e são referenciadas para a urgência hospitalar não serão “falsas urgências” unicamente por decisão própria, pois há um processo de avaliação mesmo que não seja de avaliação direta. Assim, se tomarmos como indicador de falsa urgência a atribuição de pulseira verde ou azul na triagem hospitalar à entrada, será de esperar, de acordo com estes argumentos, que a percentagem de pessoas com essas cores quando a decisão de ir à urgência é apenas da própria pessoa fosse muito superior do que é essa percentagem nos casos enviados a partir das observações nos cuidados de saúde primários, ficando eventualmente no meio as situações que têm origem na linha telefónica do SNS24.
O trabalho de Patricia Alves da Rocha, A Procura de Cuidados de Saúde Urgentes em Portugal, realizado na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, tem, para o ano de 2019 num hospital central do Porto, antes da pandemia, uma proporção de pulseiras verdes e azuis em pessoas que surgiram na urgência hospitalar por decisão própria de 35%, essa mesma proporção nas pessoas que foram à urgência hospitalar depois de terem ido aos cuidados de saúde primários foi de 31%, e nos casos que foram à urgência hospitalar por indicação da linha SNS24, essa proporção foi de 23%. Ou seja, mesmo nos casos em que há um contacto prévio com o Serviço Nacional de Saúde chegam às urgências hospitalares situações que recebem pulseiras com as cores normalmente usadas para falar de “falsas urgências”. Tal significa que não é assim tão simples designar o que seja “falsa urgência” (não se pode inferir destas proporções muito sobre as decisões de referenciar ou não para a urgência hospitalar, porque não se conhece, neste trabalho, quantas pessoas foram observadas nos cuidados de saúde primários ou atendidas na linha SNS24 e que não foram enviadas às urgências hospitalares; o trabalho da Patricia Alves da Rocha procura metodologicamente tratar esse aspecto, pelo que remeto para o texto o detalhe que o leitor quiser procurar). Não sei também quantos casos de urgência que surgem nos cuidados de saúde primários são referenciados para as urgências hospitalares (essa informação está, porém, de certeza algures no sistema informático do SNS), e poderá tentar perceber-se se depois das pessoas terem sido enviadas para a urgência hospitalar depois de terem ido aos cuidados de saúde primários, acabam por, na situação seguinte em que sentem necessidade de contacto com SNS, “saltar” o passo desse contacto com os cuidados de saúde primários e vão diretamente às urgências hospitalares. Naturalmente, o mesmo pode ser dito sobre o uso da linha SNS24.
A mensagem central é que provavelmente as pulseiras azuis e verdes não devem ser tidas como sendo todas “falsas urgências”, e que provavelmente será necessário um trabalho mais detalhado sobre os processos de decisão das pessoas, das possibilidades de atendimento noutros locais, e da análise das práticas de referenciação para a urgência hospitalar, para se perceber como poderão essas decisões serem alteradas. Também será importante compreender se estes decisões são diferentes em períodos de pico de gripe ou nos meses mais frios.
Antes do próximo Inverno ainda há tempo para se analisar isto tudo, e permitir ao SNS procurar as respostas que ciclicamente tenham que ser montadas para evitar as situações de maior congestão.