Momentos económicos… e não só

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a propósito das urgências hospitalares (no ano de 2022)

A pressão atual sobre os serviços de urgência hospitalar não é algo novo. É um problema cíclico (surgiu praticamente todos os anos em Dezembro, Janeiro e/ou Fevereiro, antes da pandemia alterar este padrão), e desse modo tem que receber uma resposta cíclica e pontual, durante o período de maior procura. Ter a posição de “culpar as falsas urgências” é uma falsa resposta.

Na decisão de recorrer a uma urgência hospitalar, as decisões individuais antes de ir à urgência são influenciadas por vários elementos: a) o que se pensa que possa ser o problema, com um desconhecimento sobre a real situação de cada um; b) a existência, ou não, de outra resposta, além da urgência hospitalar e que seja equivalente do ponto de vista do cidadão, seja em conforto de hora de atendimento e/ou facilidade de deslocação seja em termos de capacidade de resolução; c) custos que tenha, ou não tenha, cada uma das opções disponíveis; d) hábitos existentes de recurso a serviços de saúde.

O argumento das “falsas urgências” consiste em afirmar que um número razoável de casos não deverá ser tratado no contexto de urgência hospitalar. Essa afirmação é provavelmente verdadeira, só que esse conhecimento só se tem depois da pessoa ter sido observada. Uma falsa urgência depois de observação não é necessariamente uma falsa urgência antes de observação (pela falta de conhecimento que o cidadão terá para identificar o grau de gravidade da sua situação). De outro modo, se o cidadão souber que não deve ir à urgência hospitalar e mesmo assim tomar essa decisão, então será melhor chamar-lhe “urgência recreativa”.

A solução aparente para as falsas urgências, aquelas baseadas numa falta de informação do cidadão, será o recurso a outros pontos de contacto com o Serviço Nacional de Saúde, antes de ir à urgência hospitalar. Exemplos desses outros pontos de contacto são a linha de atendimento do SNS e os cuidados de saúde primários. 

Para perceber a dimensão das falsas urgências, uma forma possível de o fazer é olhar para os casos que são chamados de falsas urgências segundo a sua origem – pessoas que tenham sido remetidas (referenciadas) para a urgência hospitalar por decisão dos cuidados de saúde primários, depois de observadas, não deverão ser consideradas como “falsas urgências” se aceitarmos que a decisão clinica depois de observação é a adequada. Também pessoas que passam pela linha SNS24 e são referenciadas para a urgência hospitalar não serão “falsas urgências” unicamente por decisão própria, pois há um processo de avaliação mesmo que não seja de avaliação direta. Assim, se tomarmos como indicador de falsa urgência a atribuição de pulseira verde ou azul na triagem hospitalar à entrada, será de esperar, de acordo com estes argumentos, que a percentagem de pessoas com essas cores quando a decisão de ir à urgência é apenas da própria pessoa fosse muito superior do que é essa percentagem nos casos enviados a partir das observações nos cuidados de saúde primários, ficando eventualmente no meio as situações que têm origem na linha telefónica do SNS24. 

O trabalho de Patricia Alves da Rocha,  A Procura de Cuidados de Saúde Urgentes em Portugal, realizado na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, tem, para o ano de 2019 num hospital central do Porto, antes da pandemia, uma proporção de pulseiras verdes e azuis em pessoas que surgiram na urgência hospitalar por decisão própria de 35%, essa mesma proporção nas pessoas que foram à urgência hospitalar depois de terem ido aos cuidados de saúde primários foi de 31%, e nos casos que foram à urgência hospitalar por indicação da linha SNS24, essa proporção foi de 23%. Ou seja, mesmo nos casos em que há um contacto prévio com o Serviço Nacional de Saúde chegam às urgências hospitalares situações que recebem pulseiras com as cores normalmente usadas para falar de “falsas urgências”. Tal significa que não é assim tão simples designar o que seja “falsa urgência” (não se pode inferir destas proporções muito sobre as decisões de referenciar ou não para a urgência hospitalar, porque não se conhece, neste trabalho, quantas pessoas foram observadas nos cuidados de saúde primários ou atendidas na linha SNS24 e que não foram enviadas às urgências hospitalares; o trabalho da Patricia Alves da Rocha procura metodologicamente tratar esse aspecto, pelo que remeto para o texto o detalhe que o leitor quiser procurar). Não sei também quantos casos de urgência que surgem nos cuidados de saúde primários são referenciados para as urgências hospitalares (essa informação está, porém, de certeza algures no sistema informático do SNS), e poderá tentar perceber-se se depois das pessoas terem sido enviadas para a urgência hospitalar depois de terem ido aos cuidados de saúde primários, acabam por, na situação seguinte em que sentem necessidade de contacto com SNS, “saltar” o passo desse contacto com os cuidados de saúde primários e vão diretamente às urgências hospitalares. Naturalmente, o mesmo pode ser dito sobre o uso da linha SNS24.

A mensagem central é que provavelmente as pulseiras azuis e verdes não devem ser tidas como sendo todas “falsas urgências”, e que provavelmente será necessário um trabalho mais detalhado sobre os processos de decisão das pessoas, das possibilidades de atendimento noutros locais, e da análise das práticas de referenciação para a urgência hospitalar, para se perceber como poderão essas decisões serem alteradas. Também será importante compreender se estes decisões são diferentes em períodos de pico de gripe ou nos meses mais frios. 

Antes do próximo Inverno ainda há tempo para se analisar isto tudo, e permitir ao SNS procurar as respostas que ciclicamente tenham que ser montadas para evitar as situações de maior congestão. 


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a propósito do dia mundial da saúde

completando o post anterior, e aproveitando algumas ideias expressas na SIC Noticias desta manhã, e por o Presidente da República ter focado o sector da saúde no discurso de tomada de posse do novo governo, deixo aqui mais alguns comentários.

Para resolver, ou tentar resolver, há dois problemas centrais no SNS que vêm de antes da COVID-19, e uma oportunidade importante com o PRR.

Os problemas são os habitualmente reconhecidos: a) ter capacidade necessária para o SNS cumprir os seus objetivos – ter equipamentos, unidades abertas à população, e sobretudo profissionais de saúde no número certo e no sítio certo (nada de novo); b) ter capacidade financeira e capacidade de gestão – evitar a política de dar pouco para que não seja mal gasto – uma melhoria de gestão e orçamentos realistas é o par necessário para a dança, sendo que o problema tem sido de quem aparece primeiro, a galinha ou o ovo. O tempo da pandemia mostrou que pelo menos alguns hospitais (é no sector hospitalar que a pressão financeira é maior, captada pelo volume de pagamentos em atraso) é possível ter maior autonomia e boa gestão.

É natural que nas próximas semanas se volte a falar, na discussão à volta do orçamento do estado, no acesso da população a cuidados de saúde e na necessidade de médicos de família. A principal dificuldade é que não é de agora o problema de garantir que o SNS tem a sua espinha dorsal de médicos de familia reforçada e a funcionar plenamente. Creio que já se aprendeu (espero que se tenha aprendido) que não é uma questão de abrir concursos para recrutamento. E por isso não basta pensar que há dinheiro do PRR (que tem limitações quanto a ser usado em recursos humanos).

O paradoxo potencial nesta discussão é ter fundos para equipamentos e estruturas e não ter depois os profissionais de saúde essenciais para prestar apoio à população de forma continuada (não nos próximos 6 meses ou dois anos, e sim nas próximas décadas).

O PRR permite aproveitar oportunidades importantes, mas não no recrutamento de médicos de família. Talvez, no campo da saúde, a oportunidade mais importante seja o espaço digital de dados de saúde. numa lógica também de esforço europeu, procurando-se ter um registo eletrónico de saúde global para cada cidadão (e não apenas na relação do cidadão com o Serviço Nacional de Saúde). Aqui, do lado do SNS, a SPMS tem as competências e provavelmente a ambição de participar e desenvolver esta área. Mas vai ter a pressão de necessitar de especialistas técnicos que cruzem saúde com sistemas digitais de dados, software e hardware, comunicações e compressão de informação, cibersegurança, interface com os utilizadores, etc. Esses profissionais vão ter um acréscimo de procura dos seus serviços no sector privado também, e para eles o “mercado de trabalho” será pelo menos europeu. É mais um desafio ainda não totalmente destapado.


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A propósito do novo Governo

Recebi há poucos dias algumas perguntas a propósito do novo Governo, e decidi partilhar aqui as respostas, para discussão com quem quiser (e ainda antes de ler com cuidado o programa de Governo)

a) qual é a tua visão sobre a realidade atual da saúde no nosso país (após mais de dois anos de pandemia e com uma guerra a decorrer na Europa)?

Os problemas de antes da pandemia continuam depois da pandemia, não há grande alteração neste campo. Continua-se com as mesmas dificuldades, acrescidas com um “cansaço” adicional dos profissionais de saúde decorrente do esforço da pandemia, e a necessidade cada vez maior de renovação de equipamentos.Também a componente financeira do SNS não teve melhorias, apesar do esforço financeiro realizado (que seria melhor fazer no inicio do ano e não através de verbas extraordinárias no final do ano).

Do lado positivo, o esforço realizado durante a pandemia mostrou algumas possibilidades interessantes de evolução, que devem ser experimentadas mesmo fora do contexto de emergência criado pela pandemia: autonomia na gestão hospitalar (retomando uma vez mais o bom exemplo do H. São João, do qual se devia aprender os fatores de sucesso para replicar noutros locais o que for replicáveis), a capacidade dos cuidados de saúde primários aguentarem na sua capilaridade o seguimento da população, o desenvolvimento da telemedicina (requerendo uma clarificação do SNS quanto ao que e como paga), o desenvolvimento da hospitalização domiciliária. 

b) Quais são os passos que não se deviam falhar agora sob pena de mais tarde pagarmos um preço muito elevado (como termos que escolher que a partir de determinada idade não se fazem determinados tratamentos inovadores e dispendiosos)?

Tocando apenas em três prioridades essenciais, porque ter muitas prioridades significa não dar prioridade: atribuição de médico de familia a todos os residentes em Portugal. Medida sistematicamente anunciada por praticamente todos os ministros quando tomam posse, mas que depois desaparece da atenção na sucessão de concursos abertos, que preenchem vagas, e em que as saídas subsequentes voltam a fazer crescer o problema. É necessária uma atenção mais contínua, no recrutamento e na retenção das pessoas. Procurar novas formas de resolver a falta de acompanhamento regular da população, explorando a possibilidade de equipas de família e ouvindo propostas de solução por parte dos médicos de família (incluindo pedindo ideias que não impliquem gastar mais). Segunda prioridade, contas certas na saúde – significando fechar de vez o ciclo de pagamentos em atraso, talvez seja altura de finalmente reconhecer a boa gestão que seja feita, desde que lhe sejam dadas as condições de gestão, e substituição rápida de equipas de gestão que se revelem desadequadas. Terceira prioridade, definir uma política de recursos humanos, para os vários grupos profissionais da saúde, que passem mais pela definição de uma trajetória profissional atraente nas unidades públicas (e que não se resume a pagar mais). 

c) Como tornar o SNS sustentável é a pergunta de mil milhões de dólares ou 12 mil milhões de euros, o valor inscrito na proposta na última proposta de OE. Basta mudar a forma como se financia a saúde, adotando, por exemplo, um modelo baseado em value based healthcare?

Não basta pensar em termos de “value based healthcare”, que pode ajudar, definindo até atividades que não devam ser feitas e identificando melhores práticas. Mas qualquer técnica de gestão, como é o movimento de “value based healthcare”, não conseguirá produzir grandes resultados se não for acompanhado de uma mudança cultural nas organizações (aqui, neste caso concreto, ganhar o hábito de discutir abertamente os resultados obtidos e o que melhor se pode fazer). Neste momento, o SNS enfrenta dois desafios de sustentabilidade – uma sustentabilidade técnica, de ter os recursos humanos necessários para cumprir o seu papel, e uma sustentabilidade financeira, ter as verbas necessárias para cumprir as metas assistenciais de forma eficiente. É necessário levar mais a sério mecanismos de substituição de unidades de saúde que não consigam prestar os serviços de saúde pretendidos com custos adequados. 

d) Como é que se reduz a ineficiência no SNS?

Cumprindo o que se promete, prometendo o que se pode cumprir, e criando os enquadramentos adequados. Traduzindo num exemplo, se uma unidade de saúde assinar um compromisso de atividade assistencial contra determinado orçamento, então esse orçamento deve ser dado, e depois se não forem alcançados os compromissos assumidos, a unidade em causa deve fechar, se for possível, ou ser substituída a sua gestão sem mais perguntas ou “últimas oportunidades”. 

As unidades do SNS nunca recebem o dinheiro de que necessitam para funcionar o ano inteiro, sendo que no final lá entra mais um extra para pagar dívidas em atraso. Isto repete-se ano após ano. De que forma esta situação condiciona os gestores hospitalares?

Esta situação só pode criar perturbação na gestão. Torna também mais importante a capacidade de influenciar a atribuição de verbas adicionais do que a capacidade de realizar boa gestão. Pode até criar efeitos perversos se ficar instalada a ideia de quem mais dívida gera, mais verba extraordinária recebe no futuro.

e) Qual é o incentivo que os administradores hospitalares têm para serem eficientes a gerir o dinheiro do Orçamento do Estado que lhes é transferido se, no final, bem ou mal gerido, o hospital recebe sempre o valor necessário para pagar  o que deve?

Só têm o espirito de missão para contrariar o incentivo negativo criado pela necessidade de negociação anual (talvez até mesmo permanente para alguns) de mais verbas. 

f)  e ainda mais alguma coisa?

Outros dois aspetos normalmente fora do radar e que julgo merecerem mais atenção: a) promoção da saúde, com criação de uma entidade própria que seja julgada pelo que fizer nesse campo (e se não fizer, é extinta ao fim de três ou cinco anos, pode ficar definido desde já), para evitar que essa atividade seja diluída no meio de muitas outras, e que seja desenvolvida de uma forma que seja útil à população e de modo que não seja paternalista; b) revisão da comparticipação dos medicamentos, tendo em conta o peso que têm nos orçamentos familiares dos grupos populacionais de menores rendimentos.