Recebi há poucos dias algumas perguntas a propósito do novo Governo, e decidi partilhar aqui as respostas, para discussão com quem quiser (e ainda antes de ler com cuidado o programa de Governo)
a) qual é a tua visão sobre a realidade atual da saúde no nosso país (após mais de dois anos de pandemia e com uma guerra a decorrer na Europa)?
Os problemas de antes da pandemia continuam depois da pandemia, não há grande alteração neste campo. Continua-se com as mesmas dificuldades, acrescidas com um “cansaço” adicional dos profissionais de saúde decorrente do esforço da pandemia, e a necessidade cada vez maior de renovação de equipamentos.Também a componente financeira do SNS não teve melhorias, apesar do esforço financeiro realizado (que seria melhor fazer no inicio do ano e não através de verbas extraordinárias no final do ano).
Do lado positivo, o esforço realizado durante a pandemia mostrou algumas possibilidades interessantes de evolução, que devem ser experimentadas mesmo fora do contexto de emergência criado pela pandemia: autonomia na gestão hospitalar (retomando uma vez mais o bom exemplo do H. São João, do qual se devia aprender os fatores de sucesso para replicar noutros locais o que for replicáveis), a capacidade dos cuidados de saúde primários aguentarem na sua capilaridade o seguimento da população, o desenvolvimento da telemedicina (requerendo uma clarificação do SNS quanto ao que e como paga), o desenvolvimento da hospitalização domiciliária.
b) Quais são os passos que não se deviam falhar agora sob pena de mais tarde pagarmos um preço muito elevado (como termos que escolher que a partir de determinada idade não se fazem determinados tratamentos inovadores e dispendiosos)?
Tocando apenas em três prioridades essenciais, porque ter muitas prioridades significa não dar prioridade: atribuição de médico de familia a todos os residentes em Portugal. Medida sistematicamente anunciada por praticamente todos os ministros quando tomam posse, mas que depois desaparece da atenção na sucessão de concursos abertos, que preenchem vagas, e em que as saídas subsequentes voltam a fazer crescer o problema. É necessária uma atenção mais contínua, no recrutamento e na retenção das pessoas. Procurar novas formas de resolver a falta de acompanhamento regular da população, explorando a possibilidade de equipas de família e ouvindo propostas de solução por parte dos médicos de família (incluindo pedindo ideias que não impliquem gastar mais). Segunda prioridade, contas certas na saúde – significando fechar de vez o ciclo de pagamentos em atraso, talvez seja altura de finalmente reconhecer a boa gestão que seja feita, desde que lhe sejam dadas as condições de gestão, e substituição rápida de equipas de gestão que se revelem desadequadas. Terceira prioridade, definir uma política de recursos humanos, para os vários grupos profissionais da saúde, que passem mais pela definição de uma trajetória profissional atraente nas unidades públicas (e que não se resume a pagar mais).
c) Como tornar o SNS sustentável é a pergunta de mil milhões de dólares ou 12 mil milhões de euros, o valor inscrito na proposta na última proposta de OE. Basta mudar a forma como se financia a saúde, adotando, por exemplo, um modelo baseado em value based healthcare?
Não basta pensar em termos de “value based healthcare”, que pode ajudar, definindo até atividades que não devam ser feitas e identificando melhores práticas. Mas qualquer técnica de gestão, como é o movimento de “value based healthcare”, não conseguirá produzir grandes resultados se não for acompanhado de uma mudança cultural nas organizações (aqui, neste caso concreto, ganhar o hábito de discutir abertamente os resultados obtidos e o que melhor se pode fazer). Neste momento, o SNS enfrenta dois desafios de sustentabilidade – uma sustentabilidade técnica, de ter os recursos humanos necessários para cumprir o seu papel, e uma sustentabilidade financeira, ter as verbas necessárias para cumprir as metas assistenciais de forma eficiente. É necessário levar mais a sério mecanismos de substituição de unidades de saúde que não consigam prestar os serviços de saúde pretendidos com custos adequados.
d) Como é que se reduz a ineficiência no SNS?
Cumprindo o que se promete, prometendo o que se pode cumprir, e criando os enquadramentos adequados. Traduzindo num exemplo, se uma unidade de saúde assinar um compromisso de atividade assistencial contra determinado orçamento, então esse orçamento deve ser dado, e depois se não forem alcançados os compromissos assumidos, a unidade em causa deve fechar, se for possível, ou ser substituída a sua gestão sem mais perguntas ou “últimas oportunidades”.
As unidades do SNS nunca recebem o dinheiro de que necessitam para funcionar o ano inteiro, sendo que no final lá entra mais um extra para pagar dívidas em atraso. Isto repete-se ano após ano. De que forma esta situação condiciona os gestores hospitalares?
Esta situação só pode criar perturbação na gestão. Torna também mais importante a capacidade de influenciar a atribuição de verbas adicionais do que a capacidade de realizar boa gestão. Pode até criar efeitos perversos se ficar instalada a ideia de quem mais dívida gera, mais verba extraordinária recebe no futuro.
e) Qual é o incentivo que os administradores hospitalares têm para serem eficientes a gerir o dinheiro do Orçamento do Estado que lhes é transferido se, no final, bem ou mal gerido, o hospital recebe sempre o valor necessário para pagar o que deve?
Só têm o espirito de missão para contrariar o incentivo negativo criado pela necessidade de negociação anual (talvez até mesmo permanente para alguns) de mais verbas.
f) e ainda mais alguma coisa?
Outros dois aspetos normalmente fora do radar e que julgo merecerem mais atenção: a) promoção da saúde, com criação de uma entidade própria que seja julgada pelo que fizer nesse campo (e se não fizer, é extinta ao fim de três ou cinco anos, pode ficar definido desde já), para evitar que essa atividade seja diluída no meio de muitas outras, e que seja desenvolvida de uma forma que seja útil à população e de modo que não seja paternalista; b) revisão da comparticipação dos medicamentos, tendo em conta o peso que têm nos orçamentos familiares dos grupos populacionais de menores rendimentos.
3 \03\+00:00 Abril \03\+00:00 2022 às 22:26
Com a opção por medicos tarefeiros, houve uma excessiva preocupação por reduzir as despesas de pessoal nas rubricas contabilisticas mas aumentou os custos operacionais e comprometeu a sustentabilidade dos quadros de pessoal. Para além disso custa-me a compreender que os centros de saude e os hospitais não têm a mesma gestão. Esta situação cria incentivos perversos na gestão dos utentes
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7 \07\+00:00 Abril \07\+00:00 2022 às 08:44
Olá Nuno, os incentivos perversos podem ser controlados através de modelos de pagamento que envolvam elementos observáveis de desempenho – por exemplo, referenciação para os hospitais a partir dos cuidados de saúde primários, ou carga de urgências evitada pelos cuidados de saúde primários. Não é fácil mas é possível. O integrar na mesma gestão hospitais e centros de saúde também não está isento de problemas (de cultura, de perspetiva, de equilíbrio interno dentro das organizações). Deixo aqui um link para um trabalho antigo que evidenciava algumas dessas dificuldades de gestão conjunta – https://run.unl.pt/handle/10362/9862?locale=en, não tenho atualização que permita dizer se mudou muito ou não.
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4 \04\+00:00 Abril \04\+00:00 2022 às 12:25
Acompanho seus posts sobre economia e em especial sobre saúde. Uso esse canal para lhe perguntar como o governo brasileiro deveria proceder para harmonizar os gastos públicos de saúde com os gastos privados? É certo que, se melhorarmos os gastos publicos com saúde, os gastos privados em saúde diminuiriam. O mesmo vale para Educação.
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7 \07\+00:00 Abril \07\+00:00 2022 às 09:02
Não sei muito bem como responder, pois a resposta depende também dos objetivos que queira ter. O primeiro ponto é obviamente que os gastos públicos em saúde devem ser acompanhados da verificação dos resultados que produz. E num sistema de saúde que possa ter algumas ineficiência, o reforço da despesa pública, se aumentar a disponibilidade de serviços de saúde que a população quer usar pode reduzir a necessidade de recurso ao sector privado que presta cuidados de saúde, seja por oferta de alternativa seja, a prazo, por menor necessidade de recorrer a serviços de saúde. Também podemos pensar em termos de seguro de saúde privado versus cobertura dada pelo sector público. E aqui não conheço o suficiente do mercado brasileiro para saber se os seguros privados de saúde que existem duplicam o que o serviço público (cobrem os mesmos serviços), se complementam (cobrem aqueles serviços que o sector público não cobre) ou se suplementa (cobre a parte financeira que é deixada em aberto pela cobertura do serviço público).
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4 \04\+00:00 Abril \04\+00:00 2022 às 13:48
Excelente artigo Pedro, como sempre.
Em relação à prioridade “atribuição de médico de familia a todos os residentes em Portugal”, o que teremos que fazer para poder cumprir esse desiderato através de médico de família não-SNS?
Por outro lado, e em relação a revisão da comparticipação de medicamentos, estás a defender uma redução do co-pagamento efectuados pelos cidadãos de menores recursos?
Abraço
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7 \07\+00:00 Abril \07\+00:00 2022 às 08:57
Olá João, os médicos de familia do SNS serão sempre do… SNS. Mesmo que se evolua para o modelo C das unidades de saúde familiar – com médicos, enfermeiros e outros profissionais que não seriam necessariamente funcionários do SNS, os serviços prestados não deixariam de ser pago pelo SNS e por isso serão sempre parte integrante da cobertura do SNS. Diferente ainda é saber se é possível ou desejável ter uma prestação privada de cuidados de saúde primários que cubra as falhas que existam no SNS. Não defendo isso como desejável, porque retira uma lógica de rede global dentro do SNS que é importante preservar para melhor resposta. O Serviço Nacional de Saúde tem que possuir capacidade de ter respostas diferentes quando os problemas são diferentes. Ter prestadores privados de cuidados de saúde primários numa lógica de contrato não é fácil – pretende-se com o seguimento em cuidados de saúde primários ter uma ligação de tempo longo entre o médico e a pessoa seguida, o que obrigaria a contratos de longo prazo complexos. Não sendo fácil prever todas as contingências futuras dessas contratos, é preferível manter dentro da organização (do SNS) do que contratar fora. Claro que não é impossível de fazer porque noutros países os cuidados de saúde primários são prestados pelo setor privado. É uma questão de não termos tradição e prática de trabalhar dessa forma em termos de gestão de relações contratuais. É uma resposta técnica, mas aqui é importante que o argumento seja o técnico e não o ser-se a favor ou contra os médicos (e outros profissionais de saúde) que trabalham no sector privado.
Sobre medicamentos, a resposta é afirmativa – defendo que deverá existir uma revisão do sistema de comparticipações. Não sei dizer, sem olhar com todo o detalhe para os números, em que deve consistir, mas claramente deve ser procurada uma solução para reduzir o peso da despesa com medicamentos em ambulatório nos orçamentos das famílias com menores rendimentos. Não é um problema português, pelo que não é uma questão de ir copiar uma solução de outro país. Há mesmo que pensar no assunto. Não sei se passa por apoio direto direcionado a essas famílias, ou se passa por rever o valor da comparticipação do SNS, ou se passa pela própria prescrição que é feita, ou se passa pelo preço dos medicamentos (as várias opções que me surgem mais automaticamente), sendo que se no período da troika os preços dos medicamentos baixaram consideravelmente, em larga medida a opção de baixar preços foi usada nesse momento. E talvez para produtos diferentes se tenham que procurar soluções diferentes (por exemplo, apoio específico financeiro a quem tenha certa doença crónica, numa conta farmácia que só possa ser usada para esse fim, ou outras ideias a explorar).
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