Este ano o Ministério da Saúde disponibilizou uma Nota Explicativa sobre o OE2019. Não deixa de ser um documento importante numa lógica de transparência (e que seria saudável ser seguida por todos os outros Ministérios, no grau de informação que transmite e de discussão que permite).
Nesta nota explicativa, surgem diversos elementos sobre as contas do SNS que merecem discussão adicional, pela confusão que possam gerar, até porque em alguns pontos se apresentam rácios que pretendem ilustrar a importância relativa do Serviço Nacional de Saúde. E não é fácil “navegar” nos vários números, nos conceitos subjacentes e no que deveremos olhar. É provável que não tenha percebido completamente todos os valores, e este comentário é nesse sentido também um pedido de esclarecimento.
Primeira pergunta, qual é a dimensão financeira do Serviço Nacional de Saúde? Temos aqui pelo menos dois candidatos na nota explicativa: medir pela despesa total do Serviço Nacional de Saúde e medir pela transferência do OE para o SNS. Como há um défice e há contribuições de outros pagadores (famílias, via taxas moderadoras, outras entidades, via serviços prestados pelo SNS), as duas magnitudes diferem substancialmente. Mas, a meu ver, nenhuma delas traduz a dimensão financeira do Serviço Nacional de Saúde – se a definirmos como a despesa que é realizada que tem como base decisões de entidades e agentes do SNS, então aos valores da despesa do SNS devemos adicionar todos os pagamentos das famílias que complementam a comparticipação ou a provisão de serviços do SNS – inclui a despesa do SNS, acrescida dos pagamentos das famílias a prestadores privados que resultem de decisões do SNS. Por exemplo, a parte do custo de medicamentos que é suportada pelas famílias em medicamentos prescritos no âmbito do SNS são parte da dimensão financeira do SNS, tal como o são co-pagamentos associados com análises e exames realizados em entidades privadas determinadas pelo SNS e com algum pagamento das famílias. Este valor não está disponível em lugar algum (e concedo que não será fácil o seu cálculo, mas hoje em dia com tudo a ser registado para efeitos de pagamento e facturação, deveria ser possível passar a ter este valor de forma regular).
Segunda pergunta, é importante o défice do SNS? Sim, e não. Como o Estado é o “dono” do SNS e como não é credível que o SNS vá fechar, qualquer défice acabará por ter que ser absorvido, isto é, pago, pelo Estado. A menos que o Estado anuncie outra forma de reequilibrar as contas do SNS, ou com redução do que paga a prestadores ou com aumento dos pagamentos das famílias. Logo, qualquer défice deve ser considerado como “receita adiada”, na ausência de qualquer informação. Este mesmo aspecto faz com que indicadores financeiros habituais nas entidades privadas tenham muito menos significado no caso do SNS – não controla as receitas que tem, logo o défice não revela apenas o seu desempenho, como seria o caso numa empresa privada, mas também a disponibilidade do Estado em dar-lhe receitas para as exigências de atividade que faz ao SNS. Ou seja, o défice, na forma atual de financiamento do SNS, não tem grande relevância. Mas então porque faz diferença? Na medida em que o défice resulta de serem (eventualmente) atribuídos orçamentos às entidades do SNS que se antecipa serem insuficientes para cumprir com os objetivos assistenciais pretendidos, está-se a estimular uma gestão desligada de rigor, limitada à última emergência financeira a que ocorrer, numa poupança imediata de custos que resulta frequentemente em maiores custos no futuro (mas depois, logo se resolve – o ciclo de dívida a acumular com injeções extraordinárias de verbas constitui o resultado deste processo, aumentando certamente a despesa total do SNS).
Terceiro, como era previsível desde 2014, há um crescimento da despesa com recursos humanos, resultante da reversão de cortes salariais e de horários de trabalho (com novas contratações, logo mais despesa). Finalmente, em 2019, estará completo esse processo. É importante assinalar que este aumento de despesa ocorre mesmo que o SNS faça exatamente o mesmo que fez no ano anterior. É um efeito totalmente monetário, e que não traduz um aumento da capacidade do SNS. Claro que também haverá, muito provavelmente, um aumento dos recursos humanos disponíveis, e por aí um aumento de despesa que tem efeitos reais na capacidade do SNS satisfazer as necessidades da população. Mas é errado olhar para o aumento de despesa como sendo sinónimo automático de maior capacidade do SNS.
Quarto, a dívida a fornecedores tem direito a 8 linhas e um gráfico, que por usar valores trimestrais torna a sua evolução mais suave, diluindo o que é o efeito de queda nos meses onde há injeções de capital por todo o trimestre. É uma forma, propositada ou não, de dar uma visão menos negativa da dinâmica subjacente (permite que o “olhar” aperceba uma redução dos pagamentos em atraso no trimestre, quando na verdade o é apenas num dos meses). Se fossem usados valores anuais, a diluição seria ainda maior, com as verbas adicionais de cada ano a “esconderem” a pressão para crescimento dos pagamentos em atraso.
Quinto, a única consideração apresentada é a de que o reforço de 500 milhões de euros já aprovado para os hospitais EPE permitirá que o stock de dívida no final do ano de 2018 seja inferior (se não houver um crescimento adicional muito significativo até ao final do ano, como hipótese assumida) ao valor do final do ano anterior. Como já argumentei em textos prévios neste blog, esta é a forma errada de olhar para o problema. O stock de dívida no final do ano não transmite qualquer informação sobre a capacidade de controlar a despesa hospitalar quando se sabe que houve injeções de fundos substanciais ao longo do ano. Insistir nessa comparação do valor do final do ano neste contexto de reforços extraordinários não é adequado. O frisar que apenas estas linhas foram dedicadas a este tema na nota explicativa serve para ressaltar o que parece ser uma sistemática deficiência de entendimento sobre a relevância e a raiz do problema das dívidas dos hospitais EPE. Esta pouca atenção formal é ainda mais surpreendente dado que foi criado pelo Ministério das Finanças e pelo Ministério da Saúde um mecanismo, a Estrutura de Missão, que nesta mesma nota explicativa recebe algumas linhas de atenção. As recomendações desta Estrutura de Missão, apresentadas aos dois Ministérios (suponho), e que se encontram descritas no Relatório do Orçamento do Estado para 2019 ocupam bastante mais espaço nesse relatório. Não se fazer aqui qualquer referência ao trabalho dessa estrutura de missão é uma desvalorização da sua ação, voluntária ou involuntariamente. Se os mecanismos criados pelo próprio Governo para procurar uma solução para os pagamentos em atraso (dívidas) não são levados a sério pelos principais intervenientes, como se espera ter credibilidade para resolver este (antigo) problema?
Como o crescimento dos pagamentos em atraso dos hospitais EPE tem tido um ritmo superior a 40 milhões de euros por mês, a despesa do SNS será certamente superior ao que está a ser previsto (na ausência de atuação que altere esta dinâmica), e o défice do SNS (falta de receitas para cobrir as despesas) será certamente mais elevado. Ou seja, há aqui passos adicionais que têm de ser dados e explicitados.
Sendo fortemente louvável a publicação desta nota explicativa, a discussão que se segue deverá estar à altura do passo de transparência que ela constitui (até como exemplo para outras áreas da governação, fora da saúde).
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