Momentos económicos… e não só

About economics in general, health economics most of the time


Deixe um comentário

Observatório mensal da dívida dos hospitais EPE, segundo a execução orçamental (nº 47 – Junho de 2018)

Retomando o Observatório, que desta vez em lugar de mensal foi trimestral, as principais novidades estão na injecção de capital, num plano acertado com o Ministério das Finanças, e que se traduziu num período de dois meses numa diminuição dos pagamentos em atraso. Naturalmente que havendo entrada de capital se procede a pagamento das dívidas em atraso e baixa o stock de pagamentos em atraso. Este efeito automático não reflete necessariamente uma alteração dos fundamentos que geram os pagamentos em atraso, e por isso mesmo não surpreende que o último número divulgado volte a ter um crescimento dos pagamentos em atraso, em linha com o que foi o ritmo de crescimento do ano de 2017, 46 milhões de euros por mês em média nesse período, e substancialmente mais baixo do que o verificado no inicio do ano de 2018 (onde se criou a expectativa de mais fundos para “resolver” o problema dos pagamentos em atraso). A figura 1 abaixo ilustra esses movimentos e tendências. Se a simples injecção de capital nos hospitais EPE para pagar dívidas resolvesse o problema, então as tendências não deveriam ser crescentes, mas decrescentes, após esses momentos de entrada de fundos. O que não sucede.

Foi entretanto criada uma Estrutura de Missão para a Sustentabilidade do Programa Orçamental da Saúde, liderada por Julian Perelman, da Escola Nacional de Saúde Pública/Universidade Nova de Lisboa. Dentro das competências desta nova estrutura de missão, está “Análise e acompanhamento mensal do impacto decorrente de medidas de reforço de capital, visando diminuir o stock da dívida.”  Contudo, não são perceptíveis quais os instrumentos disponíveis para atuação por parte desta estrutura de missão, sendo que a importância que terá será a importância que lhe for dada pelos dois ministérios, da saúde e das finanças, quanto a opiniões ou recomendações que faça. O principal aspecto a seguir nesta estrutura de missão, no que diz respeito às dividas dos hospitais, é perceber se entendem o problema como sendo uma questão de gestão (evitar o aparecimento da dívida em primeiro lugar) ou como uma questão orçamental (os hospitais não cumprirem o orçamento atribuído). Tal como detalhei em posts anteriores neste blog, sendo o problema das dívidas dos hospitais um problema sobretudo de gestão e de condições para que essa gestão seja feita de forma adequada, será de acompanhar o que a nova estrutura de missão diz e as consequências que os dois ministérios dai retiram

Declaração de interesses: o presidente da Estrutura de Missão é meu colega na Universidade Nova de Lisboa.

graf_divida

Screen Shot 2018-06-28 at 00.50.37.png

Nota técnica: a análise de regressão abaixo individualizou o mês de março de 2018 como sendo intermédio  tempo do processo de injeções de capital nos hospitais EPE, não contribuindo para qualquer tendência.

 


3 comentários

Lei de bases da saúde (#2)

Há um mês, ocorreu a apresentação, por parte de um grupo de reflexão, de “Princípios Orientadores para uma Lei de Bases da Saúde“, que traz mais uma contribuição para a discussão.

Numa visão rápida desses princípios propostos, a maior parte deles será consensual (julgo). Por exemplo, não haverá provavelmente grande discordância com “O sistema de saúde deve ser centrado no cidadão, e nas suas necessidades de saúde” (principio I). A sua operacionalização é que poderá lugar a diferentes opções.

O segundo princípio fala na maior participação dos cidadãos e representantes dos doentes. Aqui a pergunta que me surge é porquê? porque têm melhor informação? que é informação é necessária que não pode ser obtida de outra forma? que enviezamentos potenciais podem daqui resultar? haverá aqui a necessidade de um equilibrio entre maior informação sobre preferências dos cidadãos / doentes e ter em conta aspectos de custos de oportunidade nas decisões a tomar? e porquê “nomeadamente” na introdução da inovação?

O terceiro principio propõe dar mais atenção à educação para a saúde e à prevenção da doença. É também ele um principio pacífico, que reflete a evolução do pensamento global sobre o papel de um sistema de saúde. Mas será preciso depois saber a extensão da “educação” que se pretende dar – se é para criar conhecimento sobre o qual os cidadãos possam decidir, ou se é para informar os cidadãos de qual é a “decisão correta” que devem tomar?

O quarto princípio reporta a proposta de criação de uma lei de meios para  o Serviço Nacional de Saúde. Esta proposta parece ter duas componentes. Por um lado, a criação de algum tipo de “Orçamento do SNS” que explique as opções tomadas quanto à utilização de fundos. É algo que haverá, concordo, vantagem em ter. Mas por outro lado, não é claro que mais se ganha, como é que a lei de meios contribui para a racionalidade da despesa, e para a prossecução dos fins do Serviço Nacional de Saúde, respeitando as disponibilidades de fundos do sector público. Pretende dar apenas um quadro mais estável através da programação plurianual de receitas, que é retomada no principio seguinte, onde se fala em orçamentos plurianuais?

Neste quinto princípio, há que ter em atenção dois aspectos. Ter orçamentos plurianuais não garante, por si só, que deixe de haver subfinanciamento crónico do Serviço Nacional de Saúde (será ainda de esperar que no desenvolvimento futuro das fundamentações desta proposta de princípios orientadores seja apresentada uma estimativa desse subfinanciamento – a diferença entre o financiamento atual e o que seria suficiente para garantir a mesma atividade assistencial). O invocar o envelhecimento da população é insistir num problema que não é de orçamento – apesar de popular, a visão de que o envelhecimento da população é um elemento de grande crescimento das despesas do SNS não é correta. A regularidade encontrada na literatura de economia da saúde é que o envelhecimento da população contribui para o crescimento das despesas, mas de uma forma muito menor que outros fatores, estando à cabeça a introdução de inovação.

O sexto princípio propõe que o sistema de saúde aproveite a prestação e gestão de serviços de saúde independente da sua natureza pública, privada ou social. Neste ponto difere de outras propostas de revisão da lei de bases da saúde que têm surgido na discussão pública. A este respeito, é importante clarificar que o sistema de saúde tem dois lados distintos: a parte de proteção (financeira) da população (seguro, em termos técnicos) e a parte de prestação de cuidados de saúde. Um mecanismo de proteção público como o Serviço Nacional de Saúde (seguro público, com verbas baseadas em impostos gerais, logo em solidariedade no financiamento via impostos) é compatível com diferentes configurações da prestação, em termos da natureza desses prestadores. Convém perceber as vantagens e desvantagens de cada tipo de prestador, em cada contexto. A prestação de cuidados de saúde é um instrumento e não um fim em si mesmo, sendo por isso razoável que se procure não limitar à partida os diferentes formatos que possa ter. Este será um principio que terá diferenças entre grupos de proponentes de revisão da lei de bases da saúde.

O sétimo principio vem falar explicitamente da complementaridade entre sector público, por um lado, e sector privado e sector soclal, por outro lado, na prestação de cuidados de saúde. Não me parece que o termo “complementaridade” venha dizer muito, pois não parece fácil definir de uma forma global as fronteiras de intervenção na prestação segundo a natureza do prestador. Mais relevante será o enquadramento para as atividades do prestador. Ser privado não é automaticamente sinónimo de eficiência, tal como ser prestador público também não o é. Ser prestador público não significa dar automaticamente mais atenção às necessidades dos cidadaõs do que ser prestador privado, se o primeiro estiver voltado para os objectivos dos profissionais de saúde e o segundo tiver como elemento central para ser escolhido pelos cidadãos satisfazer as necessidades destes. Este é um campo onde a procura de verdades absolutas quanto ao domínio de um tipo de prestador sobre outro não se joga na natureza pública, privada ou social, e sim no quadro de funcionamento que é adoptado.

O oitavo principio fala na “efectivação do direito à saúde”, que é uma forma usual, mas na realidade pouco exacta de referir o que o Estado consegue assegurar, o acesso a cuidados de saúde, e não a saúde propriamente dita.

O nono principio toca em três elementos chave de evolução do sistama de saúde: envelhecimento saudável, acompanhamento e tratamento da doença crónica, e doença mental. O grande traço comum a estes três desafios é que exigem uma organização diferente do sistema de saúde, e do Serviço Nacional de Saúde. Exige menos standardização e maior adaptação das intervenções do sistema de saúde às diferenças, incluindo diferenças de preferências, entre cidadãos/doentes. É uma linha de desenvolvimento que naturalmente se cruza com muitos dos outros principios.

Sendo muitos dos subscritores destes princípios orientadores pessoas com longo trajeto no campo da saúde, em vários domínios, é de esperar que ao longo do processo de discussão à volta da lei de bases da saúde, surjam as propostas concretas e sua justificação (argumentativa ou baseada em dados reais). É um contributo bem vindo.