No estudo para a Ordem dos Médicos, baseado num inquérito às percepções dos médicos que responderam, há uma secção dedicada à prestação de cuidados, onde se apresentam as cautelas a ter (p. 13): “não ser possível perceber que motivos justificam as respostas dos médicos; (…) não se poder aferir a partir destas respostas conclusões relativas à menor autonomia da decisão médica; (…) não haver termos de comparação exatos face ao período anterior”. E a estes adiciona-se o problema de auto-selecção – se os médicos que ontem ter tido interferência no seu trabalho tiverem mais propensão a responder ao questionário, até como forma de expressar o seu desconforto ou desagrado, então as respostas não serão representativas. Sem essa análise sobre a presença de auto-selecção, é complicado fazer inferências. É como perguntar a 100 pessoas se estão satisfeitas com os últimos resultados da selecção nacional de futebol; se responderem apenas 8 e forem as únicas 8 insatisfeitas, então a conclusão é que 100% dos que respondem estão insatisfeitos. Mas são apenas 8% do total. Este exemplo mostra apenas que este aspecto de auto-selecção pode ser razoavelmente importante dado o tipo de perguntas que se faz, e por isso deveria ter sido analisado de algum modo (por exemplo, vendo se as características conhecidas dos médicos que respondem são similares às dos outros).
As conclusões obtidas, em termos de sentido, são plausíveis uma vez mais. Não se esperaria que durante este período tivessem diminuído as faltas de material, a pressão para gastar menos, etc. Mas os valores indicados não devem ser levados em conta, pois podem ou não corresponder à realidade. Voltemos à questão do desenho das perguntas – sendo de natureza qualitativa, um médico que responder que teve “falta recorrente de material” está-se a referir a quê exactamente? a todas as situações que teve? a 90%, 30%? na pergunta realizada, foi dito o que era “recorrente” (todas as vezes, muitas vezes, algumas vezes falta de material?). Também quanto à pressão para gastar menos com doentes, decorre de um ambiente geral ou há interferência com a decisão em cada doente? Sem uma noção quantitativa, é difícil ir mais longe.
Seria bom clarificar o que significa cada aspecto – por exemplo, “falta de medicamentos” na Tabela 2 – significa que não houve medicamentos para tratar os doentes nalguma situação, ou que não houve a disponibilização do medicamento preferido do médico e teve que optar por outro? são situações completamente distintas. E os valores da Tabela 2 também devem ser lidos como os anteriores casos de percepção: por exemplo, 40,7% dos médicos refere que teve pelo menos uma situação de “falta de medicamentos” que preferem usar, e não que faltaram medicamentos para 40,7% dos doentes tratados. (este último valor não se sabe qual é a partir das perguntas qualitativas que foram feitas, de acordo com a explicação apresentada no relatório).
Pelos aspectos de interpretação apontados, é difícil ver como os autores podem concluir “Este resultado corrobora a leitura a respeito do corte da despesa com medicamentos estar a criar barreiras ao acesso aos medicamentos considerados necessários”. A conclusão até pode ser verdadeira, mas não resulta de imediato da análise, sem se saber mais sobre o que foi e como foi perguntado. Por exemplo, será que se perguntou ao médico que se houve interferência no medicamento que queria usar, em quantos casos de doentes que estava a tratar isso sucedeu e se esse medicamento foi substituído por outro?
Apesar disso, e uma vez que a auto-selecção nas resposta mais natural será a de os médicos que tiveram mais restrições responderem para expressar o seu desagrado, os valores médicos globais na Tabela 1 nem surgem particularmente elevados nos aspectos de pressão para “não fazer”. Aliás, seria útil ter o número de respostas usadas em cada percentagem, pois a média global de médicos que mencionam “recusa de tratamentos inovadores” (9.9%) contrasta com os 52.5% de médicos da especialidade de urologia que referem como tendo ocorrido. Significa que haverá outras especialidades com valores muito baixos.
Seria interessante ter esta análise desdobrada por instituição – saber se a percepção dos médicos da mesma instituição mas de especialidades diferentes é a mesma ou não.
Também os valores da comparação entre tipo de instituição são plausíveis, embora seja difícil perceber que enviesamentos poderão estar incorporados na decisão de responder ao inquérito.
O que se pode inferir então? da Tabela 2, os médicos que trabalham em PPP parecem ter mais interferência no que seriam as suas decisões de que medicamentos usar, mas em compensação as cirurgias acontecem mais vezes a tempo e horas – poderá ser visto como uma gestão mais activa nas PPP. O aspecto das cirurgias é similar nas PPP e nos hospitais privados, mas maior percentagem de médicos diz que são adiadas no sector público.
Note-se que a crer na descrição das perguntas feitas, nesta secção pergunta-se a situação em 2013 e não como evoluiu de 2011 para 2013 (“Uma das questões lançadas aos médicos disse respeito à forma como têm exercido a sua atividade nas diferentes organizações de saúde, isto é, que interferências têm sentido, se algumas, na prestação habitual de cuidados de saúde” p. 13)
4 \04\+00:00 Julho \04\+00:00 2015 às 09:43
Bom dia Prof.,
Às “enfermidades” do estudo, gostaria de acrescentar:
1. Timing: e seriedade: Teria certamente maior interesse realizar um estudo sobre a percepção dos médicos no decurso deste ano – após 4 anos de austeridade no sector da saúde – para apresentar os seus resultados no início de 2016, fugindo à estiva política e de forma a que servisse de instrumento de navegação para futura governação do Ministério da Saúde;
2. A segmentação da população alvo: O inquérito deveria ser dirigido exclusivamente aos Diretores de Serviço das Instituições de Saúde, uma vez que se encontram numa posição privilegiada de proximidade para se pronunciarem sobre as dificuldades sentidas na interação com os Diretores Clínicos/Conselhos de Administração/tutela, grau de (in)satisfação dos seus colaboradores e gestão de recursos materiais escassos e certamente sob anonimato e pela responsabilidade do cargo haveria uma adesão muito mais representativa;
3. Os Diretores Clínicos deveriam ser excluídos da amostragem pelos viés relacionados com a proximidade aos objetivos dos CA (particularmente nas PPP), filiação partidária (mais no SNS) e principalmente na “instalação do medo” que o sector sofre. Neste sentido, recomendo a quem se interessa pela gestão da saúde que leia o livro homónimo do escritor Rui Zink, com a filtragem necessária que a leitura de Saramago a espaços também impõe, cujo desconcertante epílogo sirva de aviso à navegação…
4. Concordo que a análise das respostas obtidas no presente estudo deveriam ser devidamente segmentadas às diferentes especialidades e sectores público/privado/social e não apresentadas de forma generalizada.
5. Migração: Como avaliar as percepções de um médico que se encontrava insatisfeito com o sector público e no período do estudo migrou para o sector privado? Será que estes se autoexcluíram de responder ao Inquérito pela ambiguidade de percepções?
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