Na última semana, o ULS Amadora Sintra esteve no foco mediático (dia 03/02 – dificuldades nos serviços de urgência, dia 05/02 reunião do conselho de administração da ULS Amadora Sintra com a Ministra da Saúde, dia 06/02 conselho de administração apresenta demissão que é aceite).
Há assim mais uma mudança de um conselho de administração de uma ULS, o que vai levar a um acentuar da discussão em torno das substituições que têm ocorrido no sector público da saúde.
A mudança de conselhos de administração de hospitais, Unidades Locais de Saúde (ULS) na atual configuração do Serviço Nacional de Saúde (SNS), não é uma novidade deste governo. Os dados, recolhidos há cerca de 5 anos, sobre nomeações de conselhos de administração de hospitais do SNS, por Alexandre Lourenço, e disponíveis na sua dissertação de doutoramento, terminam em 2020 e referem-se à década 2010-2020, mas suspeito que não se tenham alterado muito: em 2016 houve 17 nomeações, em 2017 atingiriam o valor de 21 novas nomeações de administrações, em 2018 foram 11, em 2019 foram 16,e em 2020 foram 15 nomeações. Assim, as 11 novas administrações nomeadas em 2024 pelo novo Governo (acreditando no que tem sido uma contagem feita na comunicação social) não são um valor fora do habitual. Porém, mais importante do que saber se o número de mudanças é uma mudança radical face ao passado (e quantitativamente, não se distingue) é saber se o atual momento propícia. ou é adequado a, fazer essas mudanças.
A substituição de uma administração após pouco tempo torna mais vulnerável essa decisão à acusação de ser por motivos partidários. Essa acusação em si mesma não é nova. Numa busca rápida pelo passado, em 2011 o PS acusava o PSD de fazer nomeações de natureza política para os conselhos de administração dos hospitais, em 2007 era o Bloco de Esquerda que acusava o PS, em 2023 o PSD acusava o PS, em 2018 em entrevista Correia de Campos, antigo ministro da Saúde por duas vezes, indicava que, talvez, cerca de 1/3 dos gestores hospitalares eram escolhidos politicamente (entrevista a 23/09/2018).
Há uma característica que torna o atual momento diferente. A criação das novas ULS no início de 2024 deu lugar a nomeações das respetivas administrações nessa altura (o que deve ter correspondido a várias centenas de pessoas nomeadas), estando algumas delas a ser agora substituídas após pouco tempo em funções, e por um governo diferente do existente em finais de 2023.
Se houve, com a criação das 31 novas ULS, muitas mudanças de equipas dirigentes, é de esperar que um ano de funcionamento não seja suficiente para que tenham conseguido estabilizar o funcionamento regular dessas novas organizações. A substituição de um conselho de administração tendo por justificação insuficiente desempenho tem por isso uma exigência grande: como distinguir o que resulta da capacidade de gestão do que resulta da transformação imposta com a constituição da ULS? Naturalmente, nas mudanças que ocorram nas 8 ULS que existiam, torna-se mais simples avaliar se é o desempenho da gestão o motivo da mudança.
Adiciona-se a este contexto a visão, expressa por um deputado PSD, de sintonia “com a tutela”, o que naturalmente abre a possibilidade de nomeações por motivos políticos, e implicitamente, a posição de dever ser quem for titular da pasta do Ministério da Saúde a fazer essas nomeações de forma direta.
Há, a meu ver, dois erros sucessivos nesta posição. Primeiro, os cargos de gestão das ULS são inerentemente técnicos. O que se pretende é capacidade de gestão das unidades, e não capacidade política de falar “com a tutela”. A gestão das ULS é, naturalmente, enquadrada pelas políticas gerais para a área da saúde, sendo estas definidas pelo Ministério da Saúde, e os gestores devem encontrar, na sua atividade específica, a forma de seguir essas políticas gerais. Não os torna em agentes políticos (se fossem atores políticos, então talvez devessem ser eleitos pelas populações das respetivas ULS?). O segundo erro que vejo é considerar que deve ser quem estiver à frente do Ministério da Saúde a fazer essas nomeações quando se tem uma Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS). Um conselho de administração sente-se responsabilizado perante quem o nomeia. Assim, sempre que uma equipa dirigente de um ULS discordar de alguma decisão da DE-SNS irá ter a tentação, e possivelmente a prática, de se ir “queixar” e procurar reverter essa decisão junto de quem a nomeou. Subverte-se inevitavelmente a capacidade da DE-SNS ser executiva. Vai-se repetir com as ULS e a DE-SNS o que anteriormente sucedia com as Administrações Regionais de Saúde e os grandes hospitais de cada região, e coloca-se novamente o topo do Ministério da Saúde a tratar da micro gestão das ULS?
Dentro deste contexto geral, colocou-se nos últimos dias a demissão, e consequente substituição, do conselho de administração da ULS Amadora-Sintra, que tem dentro de si o Hospital Fernando Fonseca. A discussão que se tem gerado à sua volta é um exemplo do que facilmente pode suceder de modo mais sistemático nos próximos tempos.
Teria sido certamente melhor para a população servida pela ULS que não estivesse neste momento a ocorrer uma mudança da equipa de gestão. Tanto mais que a ULS de Amadora-Sintra tem o hospital subdimensionado para a população que serve na sua zona de abrangência, sendo uma população de considerável diversidade e complexidade nas questões de saúde, e o novo hospital de Sintra, que deverá vir trazer algum alívio da pressão existente, já se encontra construído, mas ainda não está em funcionamento.
A adicionar à pressão assistencial, encontra-se a tensão interna no hospital, que obviamente em nada ajuda a conseguir dar uma resposta adequada à população. Não é para mim claro que a saída do conselho de administração do hospital tenha qualquer efeito automático na resolução das tensões internas (pelo menos, as que têm sido relatadas na comunicação social).
Os problemas de gestão interna, e de recrutamento para colmatar saídas simultâneas de médicos, deveriam ter sido antecipados e se necessário deveria ter sido procurada ajuda em soluções, ainda que fossem temporárias e de transição, no contexto da rede do SNS na zona de Lisboa.
É uma situação clara onde uma intervenção da DE-SNS poderia ajudar a gestão de uma ULS a encontrar soluções e transições envolvendo outras ULS próximas. Aqui, antes de um envolvimento direto da Ministra da Saúde, deveria ter surgido uma atuação da DE-SNS. O provável é a entrada em funções de uma nova equipa de gestão atrasar a resolução de alguns dos problemas que estiveram na origem da saída do anterior conselho de administração, dado que terão de “aprender” o que se passa.
Focando um pouco mais no que tem sido apontado como motivo imediato do agravamento rápido da capacidade de resposta nas urgências (o ponto mais visível de efeitos sobre a população): a reintegração de dois médicos, que levou à demissão e saída de uma dezena de médicos (conhecida desde novembro de 2024). Nem a reintegração desses dois médicos nem a saída da outra dezena surgiu de surpresa nos últimos quinze dias.
Cabia à gestão do hospital procurar uma solução para evitar uma rotura da capacidade assistencial (em novembro ativou um plano de contingência, e nas escolhas para formação o hospital apresenta-se como tendo uma boa capacidade de atração e tem atraído números substanciais de internos). Aparentemente, os esforços desenvolvidos pela equipa de gestão não tiveram os resultados desejados. E é aqui que se deve colocar a pergunta de qual a etapa seguinte. Nos últimos dias tem-se colocado a atenção na relação entre o conselho de administração da ULS e a Ministra da Saúde.
Pergunto-me se é a este nível que a etapa seguinte da procura de soluções deve ser colocada.
Dentro da área de Lisboa não haveria possibilidade de ter soluções temporárias de colaboração de outros profissionais de saúde, sob a forma de cooperação institucional entre ULS ou de forma individual? Não houve a possibilidade de reorganização de trabalho dentro da ULS que conseguisse acomodar a reintegração dos dois médicos sem gerar saídas? Não haveria aqui espaço para um DE-SNS procurar ajudar, seja na parte de profissionais de saúde seja até em formas de aliviar a pressão assistencial sobre o hospital? Desconheço os detalhes concretos, mas o que se vai conhecendo sugere uma questão de gestão, e não uma questão de política geral a ser decidida pelo Ministério da Saúde (a atual equipa de gestão sai com o argumento de não querer dificultar a procura pela tutela de soluções).
Como a “solução” vai passar pela nomeação de uma nova equipa de gestão, é um bom momento para dar um sinal institucional diferente do que realizar uma nomeação por “alinhamento político” (que não será certamente assumido como tal).
A minha preferência é que a nomeação fosse feita pelo Diretor-Executivo do SNS, para ser claro perante quem o conselho de administração responde, e colocando essa responsabilidade no patamar técnico e não no patamar de “alinhamento político”. Como muito provavelmente não vai suceder dessa forma dadas as decisões recentes sobre as competências da DE-SNS, esta nomeação, e todas as que se venham a realizar com nomeação direta por parte do Governo, deverá estar acompanhada de uma carta de compromisso, onde constem os grandes objetivos de gestão que são assumidos pelo conselho de administração que entra, e que constituirão o ponto de referência para aferir o desempenho da equipa de gestão que entra em funções.
A DE-SNS deverá ser parte integrante da criação dessa carta de compromisso, publicamente conhecida, e nela deverá ficar claro a responsabilidade técnica dos compromissos assumidos perante a DE-SNS. A habitual publicação dos percursos profissionais das pessoas nomeadas e o terem sido propostas aprovadas pela CReSAP não é suficiente.
O atual momento exige um maior grau de compromisso dos decisores políticos com o que é o trabalho técnico das nomeações que fazem (e é um aspecto que deveria estar presente em todo o sector público, não é particular da área da saúde).
Será também adequado que futuras saídas de conselhos de administração tenham uma justificação clara e detalhada, mesmo que fique reservada para a relação entre quem sai e quem decidiu essa saída (que, como referi acima, preferia que fosse a DE-SNS e com base em motivos estritamente técnicos, que não incluem “alinhamento com a tutela”). A clareza e lealdade mútuas nessas decisões de saída são também um elemento importante para atrair quem queira exercer estas funções com uma visão eminentemente técnica. E do ponto de vista do cidadão de qualquer ULS, será provavelmente preferível que o conselho de administração esteja mais preocupado com a sua saúde do que com satisfazer as vontades “da tutela”, isto é, ter mais preocupação com a saúde da população do que em agradar a quem estiver à frente do Ministério da Saúde.

(image created with AI tool)
20 \20\+00:00 Fevereiro \20\+00:00 2025 às 14:03
Parece que não iremos nunca resolver estas questões, seja na saúde ou na administração em geral, enquanto nao encontrarmos outras formas não partidarizadas de momear o pessoal dirigente.
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