A semana passada na área da saúde ficou marcada pela substituição forçada do Diretor-Executivo do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que será acompanhada, segundo as notícias públicas, por uma redefinição do papel institucional da DE-SNS (Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde). Tal como argumentei (ver aqui), era desde o início antecipável essa reformulação.
Esta turbulência na DE-SNS abriu espaço para posições a favor da sua extinção (ver aqui uma discussão recente, bem como os comentários recebidos). Contudo, está longe de ser evidente a vantagem da extinção do DE-SNS, mesmo que ainda não tenha sido completamente claro o papel que irá assumir no SNS.
É por isso útil relembrar pontos essenciais para uma decisão quanto à forma como a DE-SNS deverá contribuir para um melhor funcionamento do SNS.
O ponto de partida para essa reflexão deverá ser, a meu ver, o documento produzido pelo Health Cluster Portugal em 2021, que explica os principais elementos de racionalidade para a criação da figura da Direção-Executiva do SNS (denominada Instituto SNS no reflexão do Health Cluster Portugal).
Esta entidade deverá ter como missão: 1) gestão do SNS, 2) otimização do percurso do doente, e, 3) articulação com envolvente. Destas três funções, apenas as duas primeiras estão presentes na DE-SNS.
Assim, contrariamente ao que alguns possam pensar, não foi uma posição criada para uma pessoa, e que com a saída do primeiro Diretor-Executivo, deixaria de haver razão para a DE-SNS existir. Esta é uma perspetiva redutora e simplista. Fernando Araújo estava a desenvolver um bom trabalho (as críticas que se podem apontar não impedem um saldo globalmente positivo do tempo que passou à frente do DE-SNS). Contudo, a existência da DE-SNS não é condicional a uma só pessoa ter capacidade para cumprir esse papel. Não é pela saída de uma pessoa que uma instituição deve ser desmantelada. Este argumento é por isso fraco.
Há uma lógica de coordenação da rede de unidades do SNS que continua a estar presente.
O segundo argumento baseia-se na duplicação de tarefas dentro da administração pública que a DE-SNS significa e no esvaziamento da liberdade de decisão do poder político. Este argumento tem subjacente uma clara visão de “comando e controlo” como forma de gestão do SNS do Ministro da Saúde. Esta perspetiva foi explicitada por Correia de Campos em entrevista ao jornal Público (ver aqui), em que expressa a preferência por uma condução do dia-a-dia do SNS pelo Ministro da Saúde tendo como interlocutores as entretanto extintas Administrações Regionais de Saúde, os grandes hospitais, e mantendo em pleno a decisão de nomear diretamente as administrações das unidades do SNS.
Em contrapartida, o modelo DE-SNS para a gestão do SNS faz com que o Ministro da Saúde tenha apenas um interlocutor, a DE-SNS, que por sua vez coordena, com algum “comando e controlo”, as unidades do SNS (agora organizadas em ULS).
É uma forma de organização diferente, que liberta o Ministério da Saúde para pensar as políticas de saúde de uma forma mais geral, e sem ter necessidade de responder por cada dia de urgência fechada (e se houver muitos serviços fechados, a responsabilidade recai sobre o Diretor Executivo, que responde perante o responsável político), ou um outro qualquer aspeto desses, deixando de lado a microgestão do SNS a partir do Ministério da Saúde.
Sendo assim, a pergunta natural é como se deve organizar os órgãos de cúpula do Serviço Nacional de Saúde. Uma “velha” discussão sobre a organização do SNS é a separação entre a função de “pagador” – gestão das verbas recebidas via Orçamento do Estado – e a função de “prestador” – a gestão das unidades de prestação de cuidados de saúde. A relação entre estas duas funções deverá garantir que os dinheiros públicos são bem utilizados, através de contratos internos ao SNS (já existentes, sob a figura de contratos programa).
A DE-SNS, neste modelo, tem o papel de “negociar” com a ACSS os orçamentos das diferentes unidades do SNS sob a sua alçada. A ACSS terá o papel de financiador/pagador realizando a monitorização da utilização do orçamento e dos resultados alcançados.
O Ministério da Saúde tem o papel de definição da política geral de saúde, incluindo sector público e sector privado (com e sem fins lucrativos). Neste quadro, a SPMS (Serviços Partilhados do Ministério da Saúde) deverá ficar sob a coordenação da DE-SNS, sendo esta entidade a interlocutora com a ACSS para assegurar o financiamento da SPMS.
A DE-SNS para realizar a sua coordenação de forma eficaz junto das ULS necessita de ter “instrumentos” que façam a diferença e não possam ser ultrapassados por relações diretas das ULS com a ACSS ou mesmo com o Ministério da Saúde. Ou seja, o orçamento das ULS é negociado com a DE-SNS e a nomeação dos dirigentes das ULS deverá ser feita pela DE-SNS (o que tem a vantagem, para o bom funcionamento do SNS, de ser menos permeável à influência política para nomeações de dirigentes)..
A definição de instrumentos de financiamento do SNS, como os valores da capitação ajustada e índices de desempenho e de qualidade, deverão ser responsabilidade da entidade pagadora, a ACSS.
A DE-SNS deverá produzir, neste processo, um orçamento do Serviço Nacional de Saúde, que espelhe as opções de funcionamento do SNS e de cumprimento das políticas de saúde globalmente definidas pelo Ministério da Saúde.
Essencialmente, o que é necessário é encontrar a formulação que substitua a “articulação” entre duas ou mais entidades, como estava previsto no contexto dos estatutos da DE-SNS, por uma responsabilidade clara de cada uma das entidades.
O principal desafio para a nova equipa da DE-SNS é conseguir definir o tom certo de coordenação e liderança do processo de funcionamento de todas as ULS, sendo que a coordenação entre unidades intra-ULS tem de ser conseguida ao nível da gestão de cada ULS e a coordenação inter-ULS poderá necessitar de intervenção explicita da DE-SNS (o que para algumas situações poderá requerer “músculo” técnico e “músculo” político).
Outro desafio é a continuação do processo de simplificação burocrática iniciado pela primeira DE-SNS. Um terceiro desafio está associado à definição de novos modelos de trabalho, incluindo as novas oportunidades trazidas pela transformação digital e pelo aproveitamento de competências alargadas para as profissões de saúde (enfermeiros, farmacêuticos, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, etc) e de eventualmente antecipar novas profissões na área da saúde.
Para isso, é necessário que a DE-SNS tenha a autoridade de gestão que resulta da capacidade de estabelecer orçamentos e direcionar verbas intra-SNS (depois de negociada a verba global com a ACSS) e de nomear dirigentes.
Um outro ponto de clarificação é as relações com prestadores fora do SNS a que as unidades do SNS desejem recorrer. Neste caso, a oportunidade de utilização (disponibilidade e preço) poderá ser estabelecida por negociação centralizada por parte da ACSS, e o uso decidido por cada ULS e paga a partir do respetivo orçamento.
É também aqui aplicável o comentário recebido num post anterior, de que vale a pena reproduzir parte, pois corresponde a um bom sumário de uma tensão fundamental que está presente e que diferentes modelos gerem de forma distinta: “Finalmente, a importância da autonomia do SNS, como Instituto Público Especial, também uma “velha aspiração”, muito dependente de 2 fatores: (a) a cultura política predominante que tende a equacionar “o poder real do Ministério da Saúde” com a sua capacidade de intervenção direta na gestão do SNS e (b) a capacidade da DE-SNS de configurar e desenvolver as competências requeridas para liderar as transformações necessárias. Em relação a estes 2 aspetos, não é necessária uma argúcia extraordinária para ver exatamente onde estamos.” N
Em termos gráficos simplificados, na figura da esquerda encontra-se a situação atual, em que a “articulação” está é definida pelos círculos de cor azul. No lado direito, é representada uma alternativa com relações estabelecidas de forma mais clara. Qualquer que venha a ser o arranjo final definido será desejável estar mais próximo da figura da direita do que da esquerda.


27 \27\+00:00 Janeiro \27\+00:00 2025 às 11:57
Bom dia
Comentários
O Modelo DE com fim das ARSs não me choca
Mas precisava de ser feito com tempo e não de supetão como foi feito sem dar tempo à passagem de competências e pessoal das ARSs para a DE
Acompanhado com a DE veio as ULSs. E isso foi errado. Ere preferível autonomizar os ACES e pô-los na dependência da DE
ACES e Hospital são duas partes que se devem entender, articular, mas não fundir
Fernando Araujo ficou-se pelo desenho do novo modelo, não chegou a ter tempo de ser o DE
A mudança só por si não resolve os problemas básicos do SNS: Financiamento, Investimento, Modelo de Administração Pública, e pessoal insuficiente
https://observador.pt/opiniao/uls-a-nova-falsa-reforma-do-sns/
https://observador.pt/opiniao/ceo-do-sns-olhem-para-o-presidente-do-acss/
Teria a vantagem de servir para raios e evitar https://saudeonline.pt/triturar-ministros-e-a-formula-de-sucesso-para-a-subsistencia-de-um-sns-universal/
Abraço
António Alvim
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