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a propósito de “oportunismo de saúde”

Foi recentemente aprovada uma alteração às regras de acesso de migrantes aos serviços de saúde do SNS (noticia aqui, por exemplo). A discussão que tem estado à volta do tema tem sido desordenada e desorganizada, em parte por falta de informação, em parte por falta de sistematização, revelada pela má utilização de conceitos. Se propositadamente ou se por ignorância, não sei.

Há três pontos centrais a clarificar : a) de que problema se fala? b) que informação há sobre esse problema em Portugal? c) que exemplos de outros países nos podem ajudar? Só depois de responder a estas perguntas é razoável colocar opções de medidas (incluindo não fazer nada) para definição de objetivos pretendidos, discussão e decisão.

a) de que problema se fala?

Aparentemente, pelo discurso público mais sonoro, a preocupação será com a utilização abusiva do Serviço Nacional de Saúde por estrangeiros. Coloco estrangeiros propositadamente. Pretende-se evitar que pessoas de outros países, de nacionalidade que não é a portuguesa, venham ao Serviço Nacional de Saúde aproveitar serviços gratuitos de elevado custo, por vezes com grande elaboração e preparação dessa visita.

Se é esse o problema, é muito diferente da utilização do Serviço Nacional de Saúde por residentes que não tenham nacionalidade portuguesa, estejam em situação legal ou não, por turistas que por motivos acidentais necessitam de recorrer a cuidados de saúde, ou por “turistas de saúde”. Por “turismo de saúde” deve-se entender uma atividade organizada, e paga ao sistema de saúde, de pessoas de um país recorrerem a prestadores de cuidados de saúde noutro país. Para uma clarificação do conceito veja-se como introdução este texto de Neil Lunt, este livro sobre o tema, as iniciativas do Health Cluster Portugal para fazer de Portugal um destino de turismo de saúde (com financiamento de programas comunitários), e até no Serviço Nacional de Saúde se procurou estar ativo (notícia com mais de uma década, relativa a um hospital grande de Portugal). Nenhuma destas últimas três situações é, de acordo com o que me parece estar na discussão público, o alvo das medidas propostas.

É então preciso focar a atenção no “uso abusivo”, o que se chamar de “oportunismo de saúde” (uma vez que a expressão “turismo de saúde” significa algo completamente diferente).

b) que evidência existe sobre “oportunismo de saúde”?

As informações sobre utilização dos serviços de saúde por residentes de outras nacionalidades, qualquer que seja o seu estatuto legal em Portugal (propositado, ou por falta de capacidade dos serviços públicos portugueses de o regularizarem) não respondem a essa pergunta. Até porque o “oportunismo de saúde” poderá ser feito de forma completamente legal à luz das regras existentes (o célebre caso de acesso a medicamentos de preço muito elevado não é uma situação de um residente não nacional em situação irregular…). O que é preciso conhecer é que situações de tratamento de custo muito elevado, associadas com pessoas não residentes em Portugal, e correspondendo a casos programados (e não fortuitos, de acidente), existem. A informação de atendimentos em serviços de urgência do Serviço Nacional de Saúde (como parece ser o caso da informação que está a ser recolhida, a atender a esta noticia) é irrelevante para essa caracterização. Mais relevante será saber o valor do tratamento de problemas crónicos de custo elevado, ou programados (como eventualmente partos), associados com não residentes em Portugal e que vão continuar a ser não residentes.

A falta de clareza sobre o problema que se quer discutir faz com que se usem os dados (eventualmente) disponíveis, e não a informação que é relevante para o problema. É uma versão da célebre anedota sobre procurar as chaves onde há luz e não onde foram perdidas (versão banda desenhada, para mais informação basta usar o google com “streetlight effect”).

Conclusão a retirar: sem clareza quanto ao que se identifica como problema vai-se estar a procurar informação que não é relevante, e com isso distorce-se a discussão e até se muda o problema (significa que provavelmente a “solução” não será adequada para o verdadeiro problema, e terá apenas efeitos negativos sobre quem não se pretendia atingir).

c) O que sabemos sobre restrições no acesso a cuidados de saúde por parte de residentes não nacionais, em situação irregular, aqueles a que presumivelmente se quer cobrar o uso do Serviço Nacional de Saúde?

Este tipo de medida foi introduzido em 2012 em Espanha (Real Decreto-ley 16/2012), excluindo migrantes não documentados do acesso a cuidados de saúde, e a decisão foi posteriormente revogada.

Uma análise desta medida, realizada por L. Peralta-Gallego, J. Gené-Badia, P. Gallo, em Effects of undocumented immigrants exclusion from health care coverage in Spain, Health Policy, 122 (2018) 1155–1160, está disponível aqui. Outra análise realizada em Barcelona revelou que os migrantes não documentados , por falta de acesso a serviços de saúde, tiveram menos uso de cuidados de saúde primários mas mais situações de doença contagiosa (ver aqui: Lancet Planetary Health), o que sugere a importância de manter o acesso a todos os residentes, mesmo que sejam migrantes sem documentação. Uma análise sobre os efeitos decorrentes desta medida na saúde dos migrantes indica que houve um aumento importante da mortalidade entre estes migrantes não documentados (A. Juanmarti Mestres, G. López Casasnovas, J. Vall Castelló, 2021, The deadly effects of losing health insurance, European Economic Review, 131, ver aqui). Há também informação sobre um maior uso dos serviços de urgência por falta de acesso a outros serviços.

A política foi alterada em 2018, seis anos depois, alargando a cobertura do serviço nacional de saúde espanhol a todos os residentes, incluindo migrantes sem documentação (ver Real Decreto-Ley 7/2018, e aqui). Atualmente, os migrantes sem documentos têm direito aos mesmos benefícios que os residentes depois de estarem em Espanha durante 90 dias ou através de um relatório dos serviços sociais. Ou seja, o apelo imediato que a medida teve em 2012 não sobreviveu a um escrutínio mais amplo da sociedade espanhola, embora tenha levado 6 anos a ser revertida.

Para informação sobre a situação em vários países europeus, sugiro uma consulta aqui (UHC Watch – WHO Barcelona Office for Health Systems Financing).

Daqui resulta que há o risco de se adoptarem medidas que não resolvem o problema que aparentemente se diz querer resolver, e que terão efeitos negativos sobre quem não se pretende atingir. Ou seja, é uma medida sem ou com muito poucos benefícios (face ao objetivo pretendido) mas com custos (que podem ser elevados) que não estão a ser tidos em conta.

Será interessante saber se as medidas propostas sobrevivem a uma avaliação prévia de impacto legislativo (sugiro a leitura de um documento da Assembleia da República, elaborado em 2024, avaliação prévia de impacto legislativo pelo Parlamento, das Metodologias de Avaliação de Impacto Normativo do Ministério da Justiça sobre produção legislativa, dos Guias de Avaliação de Impacto Legislativo para se ter uma ideia do que se deve fazer, elaborados PlanAPP, um departamento público de apoio à definição de políticas públicas, e o manual de Carlos Blanco de Morais, Guia de Avaliação de Impacto Normativo).

Chegando aqui a pergunta natural é que soluções alternativas devem ser colocadas como opção de resolução do problema. Para isso, é preciso primeiro conhecer as características reais do problema que se quer resolver. Até porque as declarações públicas de “indignação” com abuso por parte de alguns não residentes não coincidem com as pessoas a quem as medidas propostas se destinam, pelo menos de acordo com o que tem sido relatado (algo que já foi notado, ver aqui).

Se estivermos a falar de partos de pessoas não residentes, e que depois sairão do país, é natural que se procure uma solução diferente de pessoas que procuram residir em Portugal ou terem a nacionalidade portuguesa para usufruirem de medicamentos de muito elevado custo. Sem ter a informação sobre a preocupação base, a discussão utilizando outros dados será certamente distorcida, as decisões tomadas provavelmente erradas. Por exemplo, pedir comprovativos de residência a migrantes em situação irregular, que os terão de apresentar posteriormente se tratados por um problema urgente, não resolve a primeira situação (vai-se conseguir impedir a saída do país de mulheres que tenham vindo ter filhos no SNS, como se refere que sucede?) nem a segunda situação (para tratamentos continuados de muito elevado custo, valerá a pena a despesa e o tempo de ser residente ou nacional, com situação regularizada). Apenas se cairá na situação que houve em Espanha durante 6 anos (ver acima).


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sobre o programa “Ligue antes, salve vidas”

Nos últimos tempos têm surgido várias notícias e informações sobre estratégias a adotar pelas unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para o maior período de pressão sobre as urgências hospitalares que está associado usualmente ao Inverno. As duas grandes linhas de atuação são, tanto quanto se depreende da comunicação recente do SNS, a referenciação para consultas nos cuidados de saúde primários (o alargamento do projeto “ligue antes, salve vidas”, iniciado no segundo semestre de 2023 na zona de Póvoa de Varzim/Vila do Conde) e os centros de atendimento clínico (trazendo capacidade do sector privado para responder à procura dirigida ao SNS, que se traduz em tempos de espera muito elevados sempre que há falta de capacidade significativa nas unidades públicas.
A existência de quase um ano de experiência do projeto “ligue antes, salve vidas”, com a obrigação de telefonar para o SNS, em Póvoa de Varzim/Vila do Conde, e a recente disponibilização de informação estatística sobre a atividade da urgência hospitalar (até ao mês de setembro de 2024) permite uma primeira visão dos resultados.
Os quatro meses de atividade do Centro de Atendimento Clínico de Lisboa, para o qual surgiu informação na imprensa, ainda não estão refletidos na informação disponível para a utilização da urgência do Hospital de Santa Maria (presumivelmente o principal beneficiário da abertura deste Centro de Atendimento Clínico).
O projeto “ligue antes, salve vidas” em Vila do Conde/Póvoa do Varzim teve uma fase inicial de informação à população (de maio a dezembro de 2023), e a fase atual iniciou-se em janeiro de 2024. Nesta segunda fase, a regra é só serem atendidos em serviço de urgência hospitalar os casos que forem previamente triados pelo serviço telefónico SNS24, que se espera remeta os casos mais simples para os cuidados de saúde primários, com agendamento direto de consultas no próprio dia ou no dia seguinte. A chamada para o SNS24 tem de ser feita, mesmo que o seja a partir de um telefone fisicamente colocado perto do serviço de urgência hospitalar.
A medida de sucesso do projeto não é a existência de referenciação nos episódios de urgência, dado que essa vai existir sempre e por isso, por definição, aumenta face ao que sucedia anteriormente. O efeito que interessa conhecer é sobre o número de urgências atendidas por comparação com o que sucederia na ausência do projeto (o que é uma situação que não se observa diretamente).
Para procurar perceber os efeitos presentes, é útil comparar a evolução do número de episódios de urgência, na urgência hospitalar da ULS PVVC face ao seu passado, mas também face à evolução de outras unidades hospitalares, para captar efeito comuns e que possam tornar menos claro se o que se observou é resultado do projeto ou de outras medidas gerais, ou de uma tendência que viesse de meses e anos anteriores. No caso da urgência da Póvoa de Varzim/Vila do Conde o ponto de comparação mais natural é com a urgência hospitalar de Barcelos (pela dimensão, pela semelhança da população servida em termos da sua demografia e pela proximidade de evolução que houve antes do início do projeto). E felizmente, durante os nove meses de dados disponíveis, a unidade hospitalar de Barcelos não estava inserida no projeto.
O primeiro gráfico ilustra a evolução das urgências hospitalares nas duas unidades, usando a informação publicamente disponível. As linhas verticais representam os momentos chave: o início da informação sobre o projeto “ligue antes, salve vidas” na zona da urgência hospitalar de Póvoa do Varzim/Vila do Conde; e o momento de referenciação obrigatória.
O segundo gráfico tem a evolução da diferença entre urgências hospitalares da unidade de PVVC e da unidade de Barcelos.


Na análise visual (que é confirmada por análise estatística) resultam duas conclusões: a) a persuasão a menor utilização dos serviços de urgência através de comunicação na primeira fase do “ligue antes, salve vidas” não surtiu qualquer efeito; b) a obrigação da referenciação tem como resultado, ao fim de sensivelmente 4 meses, uma redução no número de urgências de cerca de 10%, já tendo em consideração uma evolução geral que teria lugar de qualquer modo (que é capturada pela diferença para a urgência hospitalar de Barcelos).
Antes de classificar como sucesso o projeto “ligue antes, salve vidas” (na zona de Póvoa de Varzim/Vila do Conde) é importante completar esta informação com outros elementos:
a) houve um desvio da procura de urgências para outras unidades hospitalares? No caso na zona geográfica da Póvoa de Varzim/Vila do Conde, o desvio de procura mais natural é para a urgência de Matosinhos. Os dados disponíveis não têm indícios desse desvio de procura;
b) houve o atendimento dessas pessoas nos cuidados de saúde primários, de forma satisfatória? Esta informação não está publicamente disponível, mas certamente a ACSS ou a Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde terão acesso a essa informação.
c) qual o grau de aceitação da população? (é natural que haja primeiro um aumento da insatisfação, mas será um efeito permanente ou dilui-se com o tempo).
Esta é a informação que a DE-SNS deveria recolher e analisar (e eventualmente
Se há um ano atrás, a informação pública sobre o projeto indicava ausência de qualquer efeito, a mudança de estratégia de “convencimento da população” para “obrigação da população” em usar a linha SNS24 terá tido os resultados pretendidos (pode-se discutir se a magnitude de redução de idas às urgências é a desejada, ou a esperada, ou a aproriada, ou não, mas de momento o efeito de redução da utilização da urgência é claro).

Exemplos de alguma informação pública sobre o projecto “ligue antes, salve vidas”

Documento da Direção-Executiva

Expansão do projeto – DE-SNS

ULS Braga – YouTube

anuncio inicial, junho 2023

(fazendo google do termo “”ligue antes, salve vidas” encontram-se muitas noticias e relatos)


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Portaria 302/2024: Estrutura e Funcionamento das USF-C – um comentário

 

A Portaria 302/2024 fornece um processo estruturado para a criação de unidades USF-C, detalhando as etapas de candidatura, aprovação e implementação. O modelo USF-C promove o envolvimento do setor privado (com fins lucrativos) e social (privado sem fins lucrativos), aumentando potencialmente a capacidade de resposta às necessidades locais de saúde em termos de médicos de família. Nomeadamente, pela decisão em focar as populações sem médico de família e procurar garantir a equidade geográfica (ou pelo menos melhorar). Não deixa, contudo, de ser responsabilidade do SNS garantir que as USF-C dão acesso similar, pelo menos, a cuidados de saúde primários quanto comparadas com as USF-B. E nesse sentido, o da responsabilidade da garantia de acesso, as USF-C não são privatização dos cuidados de saúde primários (privatização seria o SNS deixar de ter responsabilidade na garantia de acesso). Os mecanismos de acompanhamento regular, incluindo a avaliação da qualidade através de uma matriz nacional e as revisões trimestrais/anuais, estão bem documentados, em termos conceptuais, ficando por conhecer os detalhes da sua concretização. O processo de seleção de entidades privadas não é totalmente transparente, nesta fase. Os critérios de adjudicação de contratos carecem de uma elaboração pormenorizada e o equilíbrio entre preços e outros elementos deverá ser devidamente justificado (eventualmente em documentos complementares às peças legais que venham a ser necessárias). Deverão existir métricas de avaliação explícitas para a qualidade além da experiência e qualificações. Por exemplo, incluir elementos de satisfação dos utentes ou resultados clínicos. Há que garantir a transparência através da publicação de relatórios de avaliação pormenorizados, ou de publicação regular da informação estatística, facilmente acessível a toda a população.Para evitar potencial fragmentação pela introdução de entidades privadas no quadro dos cuidados de saúde primários do SNS é necessário dar atenção aos requisitos de integração de processos e de informação, como a partilha obrigatória de dados e a interoperabilidade entre as unidades públicas USF-Cs e o SNS. É bom antecipar as necessidades de formação aos prestadores privados para garantir o alinhamento com os protocolos do SNS. Tomando agora alguns pontos em maior detalhe. Em termos de pagamentos e responsabilidade financeira, a conjugação de pagamentos por capitação e de incentivos ao nível da USF-C é complexo, tanto mais que em processo concursal as candidaturas indicarão o preço a que estão dispostas a prestar o conjunto de serviços a prestar (que precisa de ser definido claramente).Para a constituição das USF modelo C (USF-C) são considerados dois critérios, a serem ambos respeitados. Primeiro, a taxa de cobertura de utentes com médico de família tem de ser inferior à média nacional há mais de um ano (pelo menos, suponho). Aparentemente, outra forma de ler este critério quantitativo é estar, em dois anos consecutivos, pelo menos, abaixo da média nacional da taxa de cobertura por médico de família. Este não será um critério muito exigente, devido à inércia do indicador (quer as contratações de médicos de família quer a evolução da população de cada USF não geram flutuações muito grandes de ano para ano) e haverá sempre unidades acima da média nacional e unidades abaixo da média nacional. Não é claro se se está a falar da média simples do indicador, calculado para todas as USF, ou se é o valor médio ponderado, em que cada USF é ponderada pelo número de pessoas abrangida (o que faz com que a média nacional seja dada pelo valor total de pessoas sem médico de família sobre o total da população residente abrangida pelo SNS). Por outro lado, este critério é também compatível com valores muito elevados de cobertura. Atualmente, não é um critério que venha a da origem a situações menos naturais. Mas em situações com elevada cobertura da população residente por médicos de família poderá ser menos evidente o interesse deste critério. Como exemplo de uma situação extrema, que está longe de se verificar e que não é previsível que se venha a verificar a curto prazo, se todas as zonas relevantes menos uma tivessem cobertura de 97% da população, e uma zona geográfica tivesse cobertura de 95%, esta última zona cumpriria o critério de estar abaixo da média nacional, embora se possa argumentar que o valor absoluto elevado não justificaria a criação de uma USF-C. Esta observação leva ao papel do segundo critério, que exige um mínimo de 4000 utentes sem médico de família atribuído, sendo, contudo, necessário definir a zona geográfica relevante. Será natural que seja neste contexto uma ULS, embora em alguns casos tal possa corresponder a uma extensa área geográfica, e cumprir este critério em zona geográfica de grande dimensão obrigará a reafectar utentes por médico de família para manter concentração geográfica de utentes por USF.Quer num critério quer noutro, ganharia clareza ter sido especificada a unidade geográfica de referência. A especificação de um mínimo de utentes sem médico de família atribuído procura assegurar que há um problema quantitativamente relevante, em que a criação de uma USF-C crie massa crítica suficiente para que a nova unidade possa ter economias de escala suficientes para um funcionamento eficiente. É interessante que seja dado a conhecer o que deu origem a este critério quantitativo.O artigo 3º estabelece que cabe à ACSS fixar o valor da contratualização. Suponho que sejam os parâmetros do modelo de remuneração que será descrito em regulamentação específica. Este valor tem como referência a região, não sendo, porém, claro se região se refere à zona de abrangência de uma ULS ou se várias ULS se encontram inseridas numa mesma região.O artigo 4º controla, ou tenta controlar, a composição da equipa da USF-C, o que desde logo pode retirar autonomia e capacidade de inovação à proposta de organização da USF-C. Havendo um modelo de pagamento por capitação e um conjunto de indicadores de acompanhamento, o controle da capacidade assistencial deverá ser realizado através desses indicadores e não por controlo direto (que terá sempre custos de monitorizar acrescidos) da equipa da USF-C.O que é definido como número “adequado”, e por quem, poderá permitir alguma flexibilidade de avaliação das propostas a USF-C, que deverá sobretudo responder à questão de saber se a equipa proposta terá incapacidade em responder às exigências assistenciais previstas. Em caso afirmativo, a candidatura deverá ser rejeitada. De outro modo, não deverá ser rejeitada mesmo que a composição das equipas não corresponda a composição que seria escolhida por quem está a avaliar as candidaturas a USF-C (isto é, deve-se dar espaço à inovação na organização, em vez de ser um “jogo de adivinhar” o que está na cabeça de quem avalia). É colocada a restrição de os membros da equipa, sócios ou acionistas da candidatura a USF-C não serem aceitáveis se tiveram vínculo contratual ao sector público nos últimos 3 anos (e não estando atualmente em situação de reforma). Esta restrição procura assegurar que a criação das USF-C não implica uma transferência de capacidade dentro do SNS e que consegue trazer mais capacidade de médicos de família ao SNS. Sendo uma intenção adequada ao contexto do problema de falta de cobertura por médicos de família, a minha principal preocupação está na credibilidade futura desta imposição. É razoável esperar que no processo de candidatura a USF-C esta condição seja respeitada pelas candidaturas. Os problemas desta regra poderão surgir mais tarde. Se passados vários meses, uma USF-C aprovada e a funcionar colocar a questão de ter perdido alguns profissionais de saúde e só os conseguir substituir por outros profissionais de saúde que saíram há menos de 3 anos do SNS, deixando como opção à ULS (ou à ACSS, ou à Direção-Executiva) a decisão sobre encerrar a USF-C ou deixar realizar esse recrutamento, receio que se acabe por aceitar o recrutamento (que será provavelmente a melhor decisão a tomar nesse momento). A suceder, abre a possibilidade de outras situações similares irem surgindo, acabando por se traduzir em menor acréscimo de capacidade do que se antecipava mesmo no momento de aceitação das propostas vencedoras a USF-C. Não fazer esse recrutamento, se vier a ser necessário, corresponderia a ter USF-C a encerrar antes de concluírem um ciclo de contratação, gerando certamente problemas de gestão política, mesmo que seja uma parte minoritária das USF-C a apresentar este problema. E quantas mais USF-C se criarem mais provável é que, estatisticamente falando, surjam problemas que testam a coerência das regras, e sobretudo as destinadas a evitar migração de capacidade internamente ao SNS.A constituição de uma USF-C pode ser feita, de acordo com a Portaria, por concurso ou por contrato direto. As regras no formato de concurso permitem que o critério único seja o preço mais baixo (calculo que haja um preço máximo, definido com base na capacitação ajustada que seria aplicada se fosse uma USF-B), ou então é possível dar até 35% de ponderação a outros fatores (o que permite valores mais elevados para elementos como anos de experiência e habilitações dos profissionais da USF-C, “a inovação, o impacto social e a existência de municípios como parceiros”.Aqui a minha preocupação estará em como assegurar que uma vez obtido o preço mais elevado através da inclusão desses outros fatores, incluindo a composição das equipas, essa configuração de profissionais de saúde envolvidos não se altera ao final de alguns meses. Não me pareceu que exista qualquer mecanismo de revisão preço pago caso haja uma alteração significativa dos fatores que são incluídos nos 35% dos critérios que não são o preço. O aceitar preços mais elevados para “remunerar” elementos que podem ser facilmente alterados exigirá uma monitorização frequente e com consequências automáticas. E nesse sentido, a participação de municípios será algo mais facilmente verificável e mais facilmente uma característica permanente do que o “contributo para a inovação” (ou até mesmo a configuração das equipas). De outro modo, o sistema de seleção das candidaturas vencedoras fica vulnerável a manipulação. A monitorização está prevista (Artigo 10º) e os indicadores que garantam que não há diminuição dos elementos que foram usados na definição de “proposta economicamente mais vantajosa” devem estar presentes. A redação do Artigo 5º permite que haja um enviesamento a favor de candidaturas com participação de municípios, que se traduz em possibilidade de um pagamento (preço) mais elevado nesse caso. Não é apenas de em situação de igualdade de condições propostas, optar pela candidatura que tem um município como parceiro. O aumento de preço, usando apenas a matemática do critério, poderá ser significativo.É útil aqui ter um pouco mais de formalização na discussão. 

Face a uma proposta que tivesse um preço 10% abaixo do preço máximo admissível no concurso, com todos os outros fatores iguais, e sem município envolvido, se a ponderação dada à presença de munícipio for de 15% (e 85% para o elemento preço), então uma candidatura com a presença de munícipio pode ter um preço 18% superior, o que neste caso seria ter o preço de candidatura igual ao preço máximo. Se o critério der o menor peso possível ao preço, 65%, sendo o restante atribuído ao fator munícipio, então a vantagem de ter um munícipio como parceiro sai reforçada, e o preço poderia ser quase o dobro da candidatura sem ter um município como parceiro e ainda assim ter um “score” de pontuação mais favorável. Parece ser de alguma forma um “prémio” excessivo para esta participação de um munícípio. Daqui resulta que a ponderação dada à parceria com munícipio deverá ser cuidadosamente avaliada nas suas implicações quantitativas para evitar que o critério permita preços excessivamente acima dos candidaturas rivais (sem munícipio) e assim ganhar. A vantagem quantatitativa será dependente da regra usada, e a que usei como ilustração é apenas uma de muitas possíveis. E em cada regra, a vantagem surgirá de forma diferente.Calculo que haverá também que venha expressar a preocupação oposta – o ser dado atenção ao preço “negligencia” a qualidade dos cuidados prestados. Essa preocupação é controlada pela definição das condições de candidatura, por um lado, e por monitorização de indicadores, por outro lado. O preço (custo da prestação do serviço) deve ser sempre um fator importante. E incluir na ponderação outros elementos dificilmente verificáveis não facilita a transparência do processo (por exemplo, não é simples verificar que são cumpridas promessas de inovação).Sobre a utilização de critérios adicionais ao preço, deixo para leitura um texto sobre o assunto: Understanding public procurement within the healthsector: a priority in a post-COVID-19 world. Além deste aspeto, globalmente, será relevante conhecer os detalhes de como uma USF-C é encerrada – que circunstâncias, com base em indicadores, levam à decisão de terminar uma USF-C? Qual o máximo de responsabilidade (risco) financeira pode suportar a parte privada da relação? Como se irá processar a renvação da USF-C (novo concurso?)? etc.É sempre bom conhecer que decisões serão tomadas em todas as contingências que seja possível prever, incluindo as que se prefere que não aconteçam (e saber o que é feito nessas situações é também uma forma de criar um enquadramento tal que os agentes económicos envolvidos as procuram evitar), e ter definido claramente quem tem poder de decisã se surgirem contingências não antecipadas.  Sendo a iniciativa das USF-C uma decisão política, poderá ser um instrumento útil no processo de conseguir atrair especialistas de medicina geral e familiar para o SNS. Como formato novo e sobretudo, como formato contratual, terá exigências diferentes na construção e acompanhamento face às USF-B. É normal que venham a gerar posições contra e posições a favor. Em termos de resultado esperado, muito dependerá dos termos contratuais que venham a ser estabelecidos, e estes deverão ser fortemente escrutinados antes de serem adotados. Prevenção (de problemas) é também importante neste assunto.