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Modelo C para as USF, primeiras impressões

3 comentários

Foi anunciado, pela Ministra da Saúde, o avançar da constituição de Unidades de Saúde Familiar (USF) modelo C. Sendo uma “novidade” prevista há décadas, devemos procurar conhecer bem as suas potenciais vantagens e os seus riscos de problemas.

Devemos pensar em como a criação deste modelo C para as USF afetará os cidadãos (utentes do Serviço Nacional de Saúde), os profissionais de saúde e o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e as suas contas e relações internas.

Face aos modelos já existentes de USF, o que muda realmente?

Para o cidadão, em termos de regras e condições para aceder a um médico de família, o modelo C não deverá diferir do modelo B atualmente dominante e tendencialmente generalizado a toda a população.

Se a criação de USF modelo C trouxer mais médicos de família para o SNS, mais pessoas poderão vir a ter médico de família atribuído. Neste caso, haverá uma evolução positiva para a população.

O principal risco, aliás reconhecido publicamente, é haver desvio de médicos de família para as novas USF modelo C que de outro modo estariam no SNS.

Desconheço se houve alguma quantificação prévia ou trabalho de conhecimento sobre este efeito, que será central para o sucesso ou insucesso da iniciativa. Tenho alguma curiosidade sobre que trabalho de apoio a esta iniciativa terá eventualmente sido dado pelo PlanAPP (“O PlanAPP é um organismo do Estado que apoia a definição e implementação de políticas públicas e a análise prospetiva”).

A sugestão de que se tentará de alguma forma administrativa impedir a passagem de médicos de família do SNS atual para o modelo C será provavelmente inconsequente.

Não será provavelmente possível impedir alguém de se desligar do SNS. Não será provavelmente realizável monitorar todas as contratações que as unidades modelo C, geridas por partes privadas, venham a fazer e ter o Ministério da Saíde, profissional de saúde a profissional de saúde, a aprovar, ou não cada, uma dessas contratações das USF modelo C. Além disso, tentar fazê-lo é desde logo uma contradição clara com a ideia do modelo C ter maior autonomia de gestão.

Adicionalmente, para os médicos que não estão atualmente no SNS e que poderiam vir a estar, é impossível evitar que considerem as USF modelo C como uma das suas alternativas de trabalho.

Para os profissionais de saúde, as USF modelo C têm, em princípio, a vantagem de lhes dar maior autonomia, supostamente na forma de se organizarem. Em contrapartida, o seu pagamento terá de sair das verbas de um contrato programa, que previsivelmente terá incluídos pagamentos de acordo com objetivos. 

Se assim for, irá haver para estas unidades uma maior incerteza financeira do que para os profissionais de saúde que permanecem no SNS (é normal que venham a ter uma incerteza financeira maior do que as USF modelo B, por exemplo). E não se excluirá o risco de algumas destas USF modelo C virem a ter resultados operacionais negativos e até mesmo de fecharem. A contratação de entidades privadas (com ou sem fins lucrativos) significa que estas terão de enfrentar o habitual risco de saída de atividade, como parte do quadro geral de funcionamento. 

Para o SNS enquanto entidade responsável por garantir aos residentes em Portugal o acesso a cuidados de saúde necessários, o modelo C acarreta exigências fortes na capacidade de estabelecer contratos programa, começando com o desenho das regras dos concursos que foi anunciado virem a ser usados para escolher os parceiros para estas USF modelo C a criar.

Será fácil pequenos detalhes que sejam ignorados ou mal tratados virem a criar grandes problemas no futuro.

Há duas características fundamentais que terão de ser muito bem estabelecidas. Primeiro, qual o horizonte temporal dos contratos. Não faz sentido serem anuais, pois será preciso algum tempo para que os grupos de profissionais que estejam em cada uma das unidades de modelo C possam ter interesse em fazer investimentos nos serviços que prestam.

Contudo, tem também de ser garantida a capacidade do SNS em tomar conta de uma destas unidades modelo C se houver mau desempenho, ou ameaça de saída ou fecho da unidade (tecnicamente, a capacidade obviamente existe, há que assegurar a capacidade legal de o fazer).

Qualquer um dos lados, SNS e entidades que participem no modelo C, quererá evitar ficar “refém” do outro lado, o que vai exigir um bom desenho contratual. Se for feito à pressa, é mais provável que venha a ter problemas.

O segundo aspecto central é qual a credibilidade de respeito do contrato programa por cada uma das partes. Mudanças políticas podem surgir, e essa incerteza poderá limitar a disponibilidade de investimento e esforço dos que vierem a ser parceiros no SNS no modelo C. 

Por outro lado, será preciso ter um conjunto de indicadores calculados em tempo (quase) real para monitorização de desempenho de forma auditável por terceiras partes que tenham de vir a arbitrar diferenças (ou mesmo conflitos).

Esta necessidade de capacidade técnica de análise económica e de análise legal dos contratos programa terá de existir centralmente no SNS. Não é uma capacidade que consiga ser sustentada em cada uma das ULS em que as unidades modelo C venham a estar inseridas.

Para o objetivo de conseguir maior cobertura da população por médicos de família, o sucesso da iniciativa depende da capacidade das USF modelo C em atrair profissionais de saúde que estão atualmente fora do SNS (se houver apenas passagem do SNS para este novo modelo, em termos agregados pouco mudará, embora haja provavelmente grupos de cidadãos que ficariam a ganhar e grupos que perderiam a assistência que têm atualmente de médico de família). 

Para que essa atração de “mais capacidade” ocorra, os contratos a estabelecer vão ser cruciais, e vão exigir uma forte capacidade técnica na sua elaboração.

A criação das USF modelo C, do ponto de vista político, é uma opção legítima. Do ponto de vista da necessidade, fica em aberto para se ver se os valores financeiros que venham a estar envolvidos não teriam capacidade de atrair profissionais de saúde para o modelo B atual, e para se ver se há, ou não, transferência dentro do SNS para este modelo C de profissionais de saúde. Do mesmo modo que se avançou para a criação das USF modelo C será interessante perceber que variantes das USF modelo B poderão ser ensaiadas, a partir de propostas dos profissionais de saúde. Ter alguma diversidade de experiências e ideias de organização poderá ser útil.

As USF modelo C não são, a meu ver, um objetivo em si mesmas. São um instrumento, que no atual contexto, terá o objetivo primordial de alargar a cobertura da população por médicos de família (equipas de saúde familiar, de forma mais lata). As zonas anunciadas para a sua criação sugerem que é esse o objetivo. Poderá ser alcançado se conseguir mobilizar mais capacidade (trazer para estas novas unidades profissionais de saúde que não estão atualmente no SNS) e de diferentes formas de organização para prestar o apoio necessário à população em termos de cuidados de saúde primários.

Claro que a reação mais imediata vai ser, está a ser, a de dizer que é privatização do SNS. Na verdade, este modelo C para as USF em termos filosóficos é um primo de menor dimensão das Parcerias Público-Privadas. E como estas últimas, o modelo C para as USF será tema de debate ideológico (no sentido de haver quem seja contra ou a favor apenas por envolver parceiros privados). Sendo um instrumento é mais útil discutir em que condições será útil. É uma privatização de gestão, sim, mas não é uma privatização do SNS no sentido em que a responsabilidade de garantir o acesso a cuidados de saúde passou para entidades privadas. Essa responsabilidade continua a pertencer ao SNS, que usa os instrumentos à sua disposição. Receio que esta discussão acabe por ser dominante, em lugar de perceber como se pode ter as USF modelo C como instrumento útil, e como deve ser abandonado se não produzir os resultados desejados. 

Desconhecida's avatar

Autor: Pedro Pita Barros, professor na Nova SBE

Professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa.

3 thoughts on “Modelo C para as USF, primeiras impressões

  1. Desconhecida's avatar

    De acordo com quase tudo. Apenas tenho uma discordância que pode parecer semântica, mas não é.

    As USF modelo C são parte do SNS. Assim, quando um médico passa de uma USF modelo B para uma USF modelo C, o SNS não está a perder médicos, da mesma forma que o SNS não perdia médicos quando os médicos passavam das UCSP para as USF A ou B.

    Mesmo o risco financeiro é limitado. A única coisa que a DE (ou a Ministra, não sei quem decide estas coisas) tem de fazer é assegurar que o pagamento às USF C é igual ao que custa a operação de uma USF B. Se nessas condições os médicos quiserem ir para as C, melhor para eles, e o SNS nada perde.

    Abraço

    Álvaro Almeida

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  2. Desconhecida's avatar

    Hum… tens razão, devia ter sido mais preciso. Quando um médico passa de uma USF modelo B para uma USF modelo C, o SNS não perde capacidade global, mas também não acrescenta, ou acrescenta o trabalho adicional que o médico esteja disposto a fazer na USF modelo C face à USF modelo B. Do ponto de vista da população, a capacidade global variará na medida em que a atividade da USF modelo C comparar com a da USF modelo B. Haverá ainda assim efeitos distributivos se os utentes da USF modelo B que perde o médico não passarem todos para a USF modelo C para onde ele for (parece-me ser a situação em que há neutralidade total de efeitos sobre a população).

    Do ponto de vista da relação laboral entre o médico e o SNS, o SNS perde um médico se ele mudar para a USF modelo C, uma vez que sendo a USF modelo C paga por contrato, será depois a gestão da USF a pagar ao médico, da forma que entender adequada e for estabelecida (pressuposição minha, baseada na ideia de autonomia de gestão, incluindo a de recrutar e estruturar pagamentos aos profissionais que venham a ser recrutados para a USF modelo C).

    Sobre o risco financeiro, não sei se é assim tão limitado, novamente por causa da ideia de contrato a reger o pagamento à USF modelo C. Se for com preço fixo, o risco de custos associado com variações na atividade tem que ser totalmente absorvido pela unidade. Se esta for constituída por grupo de profissionais de saúde que se gere e paga, o risco de variações de custos é suportado pelos profissionais. É possível, até provável, que em média ganhem mais para compensar esse risco, mas vai lá estar. Tal como em 20 novas unidades deste tipo, é provável que haja alguma que venha a ter problemas financeiros. Adicionalmente, sendo por concurso, poderá ocorrer uma situação de “winner’s curse”, aqueles que forem mais optimistas quanto à sua capacidade de gerir e organizar aceitarão / proporão receber um valor mais baixo no contrato, mas como são os mais optimistas a ganhar, acabarão por não conseguir cumprir o que tinham pensado. Reconheço que o argumento é complexo, mas não é irrealista, e temos experiência desse tipo numa situação similar, quando há anos se fez os concursos para ter farmácias (privadas) dentro do perímetro hospitalar.

    Abraço, Pedro

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  3. Desconhecida's avatar

    Refletindo apressadamente sobre o assunto não sei se vai ser “a solução” para o problema dos cuidados de saúde primários em Portugal.

    Poderá ser uma ajuda, a juntar a um punhado de outras iniciativas que organizações têm implementado como seja o projeto “bata branca” ou os apoios, que alguns municípios fornecem, à fixação de profissionais de saúde.

    Uma forma de desresponsabilização governamental por aquelas áreas geográficas (Lisboa, Leiria, Algarve), provavelmente.

    Para o utente aparentemente não há inconvenientes, eles querem o serviço, independentemente se é num USCP, USF-A, USF-B, USF-C ou outro que se possa criar. Não se apercebem dos condicionalismos.

    O risco de sangramento de profissionais do SNS, aparentemente, fica estancado com a clausula travão (estar no mínimo há 3 anos fora do SNS).

    Porém há outros riscos e incertezas a ter em conta, tais como:

    • qual o equilíbrio da discricionariedade da USF-C com a da ULS correspondente?
    • o acesso será garantido?
    • a qualidade dos serviços serão garantidos independentemente do tipo de organização (USCP, USF-A, USF-B, USF-C) ou de localização geográfica?
    • que preço acarreta ao país?
    • qual é o custo de oportunidade desta medida?
    • que clausulas de incumprimento serão impostas?
    • que tipo de utentes serão alocados? todos os tipos ou vai haver uma diferenciação? 
    • como será feita a avaliação e monitorização? E por quem?
    • sendo um modelo privado, o qual se rege em função do lucro, que riscos trará esse lucro? Que tipo compensações se vão estabelecer?
    • qual a estrutura de custos?  
    • qual a vantagem competitiva? Qualidade ou quantidade?

    O problema reside no fator humano, seja na falta de médicos ou seja na sua má distribuição.

    Se o modelo C consegue atrair ou não profissionais? 

    Penso que irá depender muito do contrato programa, da gestão da USF-C e sobretudo das condições oferecidas aos profissionais.

    De lembrar que muitos municípios desenvolveram programas de captação e fixação de profissionais de saúde e continuam a existir falta de recursos humanos.

    O modelo USF-C é uma inovação ou uma privatização ou “um primo de menor dimensão das Parcerias Público-Privadas”?

    – Não deixa de ser uma inovação pelo fato de nunca se ter implementado antes.

    – Privatização poder-se-á evoluir para esse campo se o modelo for um sucesso, com todos os problemas subjacentes às privatizações.

    – “Um primo de menor dimensão das Parcerias Público-Privadas” se tiverem os mesmos resultados que as PPP hospitalares, sendo consideradas um sucesso para entidades como UTAP, TC, ARS e ERS, porque não.

    De lembrar que o aumento de USF-B não se traduziu em bons resultados indicadores

    Segundo o Relatório Anual Acesso a Cuidados de Saúde nos estabelecimentos do SNS e entidades convencionadas (2021) da ACSS.

    Vemos que na década entre 2010 e 2019

    número de USF’s passaram de 277 para 564 (103,61%)

    o   modelo A de 160 para 290 (81,25%)

    o   modelo B de 117 para 279 (138,46%)

    ·      número de UCSP passaram de 518 para 345 (-33,39%)

    Os números de consultas médicas no mesmo período:

    ·      total: passaram de 33 195 para 31 569 (-4,89%)

    o   presenciais: de 21 897 para 20 715 (-5,39%)

    o   não presenciais: de 7 194 para 9 241 (28,45%)

    o   domicílios médicos: de 174 para 198 (13,79%)

    o   complementar / consulta aberta: de 3 930 para 1 414 (-64,02%)

    Outro aspeto, na elaboração dos contratos programas ter em atenção os indicadores que se estabelecem para não se criarem problemas organizacionais.

    Pelos indicadores de desempenho anuais propostos, os profissionais sabem desde logo se vão conseguir atingir ou não, há muitos que dependem da ida do utente ao serviço, se ele não for o objetivo não é atingido por mais telefonemas que façam para comparecer. 

    É uma nova abordagem que poderá (não é certo, mas tem potencial) para vir ajudar a minimizar os problemas dos cuidados de saúde primários. 

    Porém dever-se-ia olhar para outro aspeto, a literacia em saúde.

    Pergunto-me: 

    Que impacto têm tido as diversas campanhas de sensibilização e de promoção da saúde e de vida ativa? 

    Que avaliação tem sido feita dessas campanhas?

    Como é que o utente se move no SNS?

    O utente sabe distinguir os diversos tipos de serviços?

    Quantos utentes utilizam mal os diferentes serviços de saúde? (idas às urgências que deveriam ser assistidas nos cuidados primários)

    Quantos utentes utilizam os serviços sem necessidade, retirando a vez a outros utentes? (utentes que vão mais que uma vez por mês ou semana ao médico de família)

    Finalmente, não sei se esta medida é um objetivo em si mesma ou se um meio para se chegar a ele. 

    Se for encarada de um ponto vista tático (para o curto prazo) será um fim em si mesma (ou seja, desresponsabilização do governo central pela saúde daquelas populações, dado que será contratualizada com terceiros)

    Se for encarada de um ponto de vista estratégico (a o médio longo prazo) penso que será um meio para alcançar esse objetivo.

    Concordo com a ideia de serem “um instrumento, que no atual contexto, terá o objetivo primordial de alargar a cobertura da população por médicos de família”.

    A medida tem potencial (como muitas que se elaboram em Portugal), porém depende da implementação, operacionalização e monitorização.

    Atenciosamente,

    Agostinho Santos

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