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2 observações de final de dia: negociações governo – sindicatos, e solução (?) para as urgências hospitalares

Os tempos atuais do SNS vão sendo agitados. E começa difícil ir acompanhando tudo o que se vai passando. Sobre estes últimos dois dias, duas observações.

Primeiro, ainda sobre as negociações salariais. Da leitura dos relatos saídos na comunicação social, fico com a sensação de que há ainda algum caminho de linguagem para fazer entre sindicatos e Governo, e a necessidade de incorporar alguma segurança adicional ao acordo que vier a ser estabelecido.

No meu post anterior dei atenção ao aspeto do SNS manter a capacidade assistencial num contexto de redução de horários de trabalho, incluindo tempo de urgência, e incapacidade de contratar médicos em número suficiente no curto prazo. Por cada 7 médicos que passem de 40 horas semanais para 35h semanais, é preciso contratar mais 1. Não havendo número suficiente de médicos para contratar, o ajustamento para manter a capacidade assistencial tem que ser feito através de horas extraordinárias, que deveriam ser reduzidas e não aumentadas. O não se falar no mecanismo de ajustamento por parte dos sindicatos sugere que estão a pensar, provavelmente, em usar o recurso às horas extraordinárias. Mas a médio prazo, uma outra parte do ajustamento deve ser realizada por melhorias da atividade realizada e aumentos de produtividade, decorrentes de melhor organização e gestão – esses ganhos permitirão que as contratações adicionais não tenham de ser 1 médico adicional por cada 7 que passou a 35h. Com diversidade de situações contratuais é provável que alguns se mantenham nas 40h. Também ajudará. A restrição, assumida pelo Ministério da Saúde, de não baixar a capacidade assistencial do SNS é, por isso, um elemento central do acordo que venha a ser feito. A proposta feita no fim de semana pelo Ministério da Saúde tinha um faseamento na resposta ao pretendido pelos sindicatos que depende da capacidade de gerar eficiências de funcionamento, que seriam transferidas para os médicos via progressão gradual para o pretendido. Na minha leitura, a proposta feita é a de conforme se for abrindo espaço dentro da restrição, vai-se cumprindo o acordo. 

Do lado dos sindicatos, a proposta foi entendida como uma questão de incentivos e pagamento por desempenho – se o SNS funcionar melhor, então terão a “recompensa” prevista no acordo. Só que, como foi assinalado prontamente, o condicionalismo não depende da atuação dos médicos no sentido de que têm possibilidade de autonomamente cumprirem metas estabelecidas (como sucede quando se criam mecanismos de incentivos). Isto é, se o Governo, ou a Direção-Executiva do SNS, ou as equipas dirigentes das ULS, não conseguirem gerar as mudanças na organização do SNS que leve aos aumentos de produtividade, os médicos não veriam cumprido o acordo, independentemente do que fizessem. O que é compreensível.

O Governo traçou na proposta o caminho que será feito se for conseguido um melhor funcionamento do SNS. Falta agora ser mais completo, e dizer como garante aos sindicatos o cumprimento do que for acordado se não forem obtidos os ganhos de eficiência enunciados. Falta perceber qual o mecanismo que o Governo tem para cumprir o acordado se for o Governo a falhar na produção de alterações de levem a ganhos de eficiência. Não tenho a resposta, mas o Governo deverá ter uma para a apresentar aos sindicatos.

Claro que se os sindicatos bloquearem qualquer alteração do funcionamento do SNS que seja capaz de gerar mais eficiência de funcionamento, então seria razoável que não houvesse cumprimento do acordo por parte do Governo. 

Não basta definir o caminho a percorrer, para atender ao que é pretendido pelos sindicatos, e aceite pelo Governo. É preciso saber o que acontece se os pressupostos que o Governo indica não se verificarem por motivos que não sejam imputáveis aos Sindicatos e aos médicos. Embora não tenha sido verbalizado desta forma pelos Sindicatos, parece-me que será esse o obstáculo neste momento nesta parte da negociação (e não o faseamento, que foi publicamente admitido como aceite). 

A propósito da reorganização do SNS vem a minha segunda observação de hoje. O Ministro da Saúde voltou a referir o sucesso da experiência que está a decorrer na zona da Póvoa de Varzim / Vila do Conde, que cruza com uma notícia do Expresso, que remete para uma entrevista recente do Diretor Executivo do SNS ao Público, sobre criar um enquadramento legal para que só se possa ir à urgência referenciado de alguma forma. Estando de acordo com o princípio de que será necessário reduzir a utilização dos serviços de urgências, e que faz todo o sentido que seja primeiro procurado um ponto de contacto com o SNS que não seja as urgências nas situações que se antecipem ser menos graves, surge ainda assim uma perplexidade pela contradição que encerra: se a experiência piloto está a ser tão bem sucedida sem necessidade de um quadro legal que obrigue à referência, porque é necessário essa “ilegalização da ida à urgência por iniciativa própria”? 

E se a experiência está a ser assim tão bem sucedida, será possível conhecer a base de evidência, de forma replicável – do ponto de vista cientifico, saber qual a base de informação para classificar como sucesso, e conseguir reproduzir a análise que tenha sido feita pela Direção-Executiva do SNS? É que os dados publicamente disponíveis não tornam visível esse sucesso. (ao escrever esta frase, quase fiquei com medo que os dados disponíveis deixei de o estar, mas como também vi que o Ministro da Saúde disse que “não há nenhuma lei da rolha” no Ministério da Saúde, confio que continuaremos a ter informação regular). Além disso, fazer estas mudanças por imposição legal significa apenas que cairão ao primeiro caso adverso (alguém que venha a falecer depois de ter sido negado o acesso a uma urgência por não estar referenciado).

Com a atenção dada a esta experiência piloto na Póvoa de Varzim / Vila do Conde para sustentar políticas futuras, fiquei também com curiosidade se no inicio da experiência foi definido o protocolo de avaliação, com os critérios do que seria classificado como sucesso, e qual a recolha de informação a ser feita.  

(imagem criada em DALL-E 3)


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Governo, sindicatos médicos e impossibilidades

As negociações entre os sindicatos médicos e o Governo estão a chegar a um ponto em que será crucial estabelecerem acordo, ou pelo menos uma base de discussão para que se chegue a esse acordo em breve.

Um acordo que seja gerado terá de resolver várias “impossibilidades”, em que impossibilidade tem aqui o sentido de as várias posições expressas, se tomadas literalmente, levarem a um conjunto vazio de soluções, face às diferentes restrições que cada parte coloca.

Antes de definir o que, a meu ver, são essas “impossibilidades”, vou estabelecer o meu ponto de partida, para que possa ser fácil perceber as “impossibilidades”.

Primeiro, a atividade do Serviço Nacional de Saúde (SNS): o movimento assistencial que o SNS tem que prestar é determinado pelas necessidades da população. A resposta que é dada pelo NS depende do input de horas médicas (e de outros profissionais de saúde e de equipamentos, que mantenho constantes, para focar no argumento principal das negociações entre sindicatos médicos e Governo) bem como da qualidade de gestão da organização. Segundo, o custo total é determinado pela soma do custo de cada recurso usado (profissional de saúde, consumo, etc.) multiplicado pela intensidade do seu uso. Terceiro, dentro do input das horas médicas, existe o contributo em horário normal e o contributo das horas extraordinárias (que por sua vez pode ser assegurado por médicos da instituição a fazer mais horas, ou por médicos contratados via empresas de serviços). Para simplificar a argumentação, pense-se na atividade como um todo, sendo que é também possível fazer os mesmos argumentos olhando separadamente para cada atividade desenvolvida pelos médicos (e concentro-me na atividade hospitalar, dado o destaque das urgências hospitalares nos problemas correntes do SNS em dar respostas à população).

As propostas dos sindicatos são, numa visão muito simplificada para efeitos de discussão, a redução dos horários de trabalho e os aumentos de salários.

A restrição social a ter em conta é não reduzir a capacidade de resposta assistencial do SNS (que é traduzida na comunicação das partes envolvidas como “defesa do SNS”).

Coloque-se ainda a restrição de sustentabilidade financeira do SNS como não ter despesa acima do que está previsto para o SNS no ano de 2024 (e que contém reforços substanciais de verbas dos últimos anos).

As possíveis variáveis de ajustamento do SNS às propostas dos sindicatos são três: número de profissionais contratados, contributo global das horas extraordinárias e qualidade de gestão e de organização das entidades do SNS (sobretudo hospitais, mas como tudo será Unidade Local de Saúde a partir de Janeiro de 2024, a unidade de decisão deixa de ser o hospital).

Deste quadro, resultam duas “impossibilidades”:

  1. Reduzir o contributo das horas extraordinárias e reduzir os horários de trabalho, mantendo a organização e funcionamento das entidades do SNS sem alteração, só é compatível com manter a atividade assistencial atual se houver um recrutamento muito substancial de médicos. Em números que não são realistas no curto prazo, o que gera a “impossibilidade”. E esta impossibilidade surge de forma independente de qualquer factor financeiro.
  2. Tendo um objetivo de reduzir o contributo das horas extraordinárias no funcionamento do SNS e de reduzir o horário de trabalho, é inevitável um maior recrutamento de médicos. Com aumentos de salários e maior número de profissionais, a pressão sobre a despesa será elevada (tanto mais que depois de fechada a negociação com os médicos é facilmente antecipáveis que os outros grupos profissionais também venham procurar assegurar aumentos de remuneração). Sem uma reorganização de modos de funcionamento, que levem a maior capacidade de assistência à população (maior produtividade), não será possível assegurar a sustentabilidade financeira sem quebras de qualidade e/ou redução de serviços disponibilizados.

Sendo o recurso a trabalho extraordinário e a empresas de prestação de serviços (médicos) mais caro do que aumentar o número de profissionais permanentes em horário de trabalho regular, há aqui uma margem para que a redução do contributo do trabalho extraordinário compense, em termos de custos financeiros, o aumento de profissionais ao serviço. Mas terá de existir essa capacidade de contratação por parte das entidades do SNS (por vezes prometida, e frequentemente negada a concretização dessa promessa).

Daqui resultam implicações para as negociações em curso:

a) é necessário programar uma evolução faseada, estabelecendo de forma muito transparente qual o objetivo final, incluindo o que será o contributo das horas extraordinárias. De acordo com os relatos na comunicação social, esta implicação aparente estar adquirida pelas partes (pelo menos, os sindicatos).

b) deve, no final do processo negociar, haver acordo sobre a necessidade de mudar formas funcionamento, que favoreçam maior capacidade assistencial, e parte de aumentos salariais futuros serem condicionais a aumentos de produtividade decorrentes de melhor organização e gestão das unidades do SNS.

O acordo que resultar das negociações terá de começar por estabelecer as condições remuneratórias como ponto de partida, para um caminho gradual de vários anos (3 a 5 anos?). Nessa trajetória prevista deverá ficar claro: 1) o ponto final a ser alcançado; 2) o compromisso do Governo com a evolução acordada das remunerações e dos horários de trabalho (embora não seja evidente que mecanismo evita que no futuro o Governo Dida que o contexto se alterou; talvez seja possível colocar o Conselho Económico e Social como observador do processo, dada a sua experiência em concertação social sobre salários e condições de trabalho?); 3) o compromisso dos sindicatos médicos na colaboração (ou pelo menos não oposição sistemática) a transformações organizacionais necessárias ao melhor funcionamento do SNS, incluindo maior diversidade de modalidades contratuais entre o SNS e os profissionais de saúde; 4) a definição de como as condições contratuais se ajustam ao ponto de ciclo de vida profissional e pessoal em que cada profissional de saúde se encontra.

E deixo duas referências de leitura sobre dois temas que surgiram na discussão pública. Por um lado, a ideia de equipas dedicadas ao serviço de urgência. A este respeito, a leitura sugerida é um artigo publicado há alguns anos, portanto fora do “calor do momento”: Ramos, P., Paiva, J.A. Dedication increases productivity: an analysis of the implementation of a dedicated medical team in the emergency department. Int J Emerg Med 10, 8 (2017). https://doi.org/10.1186/s12245-017-0136-9, tendo como resumo “Our study assesses the effect of an intervention in a large academic hospital ED in Portugal in 2002, and it is the first to test the hypothesis that implementing a dedicated team of doctors with EM expertise increases the productivity and reduces costs in the ED, maintaining the quality of care provided to patients. (…) Results: We found that medical productivity (number of patients treated per hour of medical work) increased dramatically after the creation of the dedicated team (…) and costs with ED medical work reduced both in regular hours and overtime. Moreover, hospitalisation rates decreased and the length of stay in the ED increased significantly after the creation of the dedicated team. Conclusions: Implementing a dedicated team of doctors increased the medical productivity and reduced costs in our ED. Our findings have straightforward implication for Portuguese policymakers aiming at reducing hospital costs while coping with increased ED demand.”

Por outro lado, as consequências da interrupção da atividade normal sobre os doentes (no caso, usando greves como elemento de interrupção não programa da atividade, onde está “greves” leia-se ausência de atividade por não se recorrer a horas extraordinárias: Costa, E. (2022).  The unintended consequences of hospital strikes on patient outcomes evidence from multiple strikes in the Portuguese National Health Service. Health Economics,  31(11),  2499–2511. https://doi.org/10.1002/hec.4576. Do resumo “Data suggests that hospital operations are partially disrupted during strikes, with sharp reductions in surgical admissions (up to 54%) and a decline on both inpatient and outpatient care admissions. (…) Results suggest a modest increase in hospital mortality limited for patients admitted during physicians’ strikes, and a slight reduction in mortality for patients already at the hospital when a strike takes place. Increases in readmission rates and length of stay are also found.” Seria aliás surpreendente que a redução de atividade não tivesse efeitos sobre os doentes, significaria que era trabalho desnecessário. Daí a importância de se encontrar um caminho de acordo para as negociações em curso.
Ambos os artigos têm referências para trabalhos com evidência de outros países sobre cada um dos assuntos, caso alguém queira saber mais.

(imagem criada com DALL-E 3)


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os 3 primeiros meses de “ligue antes, salve vidas” para reduzir a ida às urgências hospitalares

Na recente entrevista (de 24 de outubro de 20239 de Fernando Araújo ao Público, foi referida a experiência “Ligue Antes, Salve Vidas”, que está a ser feita na zona do Porto (Centro Hospitalar  da Póvoa de Varzim – Vila do Conde e Unidades de Saúde Familiar da zona geográfica em volta), para redução da pressão sobre as urgências. A ideia central é que as pessoas só cheguem ao serviço de urgência hospitalar depois de contactarem o SNS por outro meio, nomeadamente atendimento telefónico, que poderá marcar, se adequado, consulta na USF para o dia ou para o dia seguinte. A experiência começou no final de maio / inicio de junho (de acordo com a descrição publicamente disponível).

Da posição de Fernando Araújo, parece estar assente que se irá alargar esta ideia, pelo menos às zonas onde se verifique cobertura praticamente universal da população por médicos de família. Antes de o fazer, seria bom saber quais os efeitos associados com esta experiência. Há pelo menos três elementos de avaliação a conhecer: a) efeito sobre as urgências hospitalares do Centro Hospitalar  da Póvoa de Varzim – Vila do Conde; b) satisfação dos cidadãos com o novo modelo de funcionamento; e c) efeito sobre o funcionamento das USF, que recebem uma procura adicional que pode interferir com a sua atividade normal.

Dos elementos publicamente disponíveis, só é possível avaliar o efeito dos primeiros três meses no volume das urgências hospitalares. 

A principal conclusão dessa apreciação é simples: nos primeiros três meses de funcionamento do novo regime, a informação conhecida sugere que o efeito vai no sentido de uma redução do número de urgências mas não é ainda certo, não se podendo rejeitar do ponto de vista estatística (ou seja, ainda é cedo para se dizer com confiança que houve redução no número de urgências). A convicção de que o modelo funciona não resulta ainda em evidência que a corrobore (embora vá nesse sentido). Daqui a 3 meses, com 6 meses da situação de experiência, será altura de voltar a fazer as contas.

Tempo de justificar as afirmações acima. O primeiro passo é, naturalmente, olhar para a evolução das urgências no Centro Hospitalar  da Póvoa de Varzim – Vila do Conde, até ao mês Agosto de 2023, o último mês disponível.

Figura 1:


A Figura 1 mostra o efeito direto – os pontos à direita da linha vermelha correspondem ao número de episódios de urgência mensal. Como se comparam com os outros? Apenas desta figura 1 vê-se que o período da pandemia deve ser retirado pela descida anormal no número de urgências atendidas. Retirando essas observações, vê-se que há uma ligeira tendência geral de descida das urgências, sendo que pode haver regularidades periódicas (os mesmos meses terem mais ou menos procura de urgências em todos os anos, os chamados efeitos de sazonalidade). A questão que fica é saber se os três meses do novo sistema permitem alguma conclusão preliminar sobre esta experiência. Na figura 1 faz-se apenas a comparação antes / depois da medida. Contudo, podem existir fatores globais que estejam a influenciar – por exemplo, se fosse o caso de os episódios de urgência terem subidas muito em zonas comparáveis e sujeitas às mesmas influências que afectam a zona da Póvoa de Varzim e da Vila do Conde, então as observações na Figura 1 seriam favoráveis à ideia de um impacto positivo do novo modelo de funcionamento. É preciso por isso encontrar um ponto de comparação (tecnicamente um grupo de controlo).

A Figura 2 coloca a procura dos serviços de urgência do Centro Hospitalar  da Póvoa de Varzim – Vila do Conde em contexto de toda a região Norte. Constata-se que é um centro hospitalar na zona inferior do volume mensal de urgências.

Figura 2

Figura 3


A Figura 3 apresenta o número médio de episódios de urgência por hospital; não é importante estar a comparar hospital a hospital, sendo apenas relevante constatar que o Centro Hospitalar  da Póvoa de Varzim – Vila do Conde (o segundo da lista) tem um hospital com uma dimensão próxima, ainda que menor, no número médio de urgências: o hospital de Barcelos.

A Figura 4 mostra as urgências em cada uma destas unidades, sugerindo que o hospital de barcelos poderá ser tomado como comparador. Usando análise de regressão para perceber se fora do período de pandemia, e antes da adopção da nova forma de funcionamento), a evolução temporal é similar no Centro Hospitalar de Póvoa do Vazom e Vila do Conde, a resposta é positiva – a tendência de evolução é a mesma (tecnicamente, a hipótese de tendências paralelas de evolução não é rejeitada).

Figura 4

Esta análise gráfica pode ser tornada mais precisa de várias formas. 

A figura seguinte apresenta a análise de regressão em que se procura ver se os três últimos meses (representados pela variável post) foram substancialmente diferentes do passado (eliminado o efeito da pandemia e reconhecendo a possibilidade sazonalidade na existência de episódios de urgência). 

A variável post tem estimativa pontual de sinal negativo, mas não se rejeita estatisticamente a hipótese do coeficiente ser nulo. Ou seja, o efeito vai no sentido de estes três últimos meses terem menores urgências (menos 246 episódios por mês, menos 8 episódios por dia), mas não é possível ainda ter segurança para se afirmar que é apenas variação aleatória, ou se estará relacionada com a nova forma funcionamento. 

Figura 5

Figura 6


se em alternativa se considerar  uma mudança no ritmo de descida de episódios de urgência (figura 6), a conclusão é essencialmente a mesma – efeito na direção pretendida, mas ainda com muita incerteza, podendo ter sido apenas flutuações normais.

A figura 7 apresenta a comparação entre o Centro Hospitalar de Póvoa de Varzim – Vila do Conde com o hospital de Barcelos (tecnicamente, uma abordagem de diferença das diferenças). O coeficiente relevante aqui é “did”, que mede a diferença entre o número de episódios de urgência observado e o que seria de esperar que ocorresse na ausência da nova forma de funcionamento (e cuja tendência seria similar á do hospital de Barcelos).

O coeficiente da variável “did” é negativo, embora não seja estatisticamente diferente de zero. Esta análise metodologicamente mais robusta dá a mesma conclusão da análise antes /depois da medida anteriormente descrita. Em termos de estimativa pontual, é um efeito mais forte do que a análise antes/depois sugeria. Adicionalmente, a possibilidade da de alteração para um ritmo mais forte de redução de episódios de urgência, e também aí não há ainda resultados fortes do programa.

Figura 7


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sindicatos médicos, governo e negociações – observações (2)

As negociações desta semana entre o governo e os sindicatos médicos voltaram a não dar avanço, embora as posições dos sindicatos não pareçam ser exatamente as mesmas.

É sempre complicado analisar o que se passa, ou não passa, com a informação dada na comunicação social, com a informação prestada pelos sindicatos nos respetivos sítios de internet e com os dados publicamente disponíveis.

Tentemos organizar a discussão (do ponto de vista do observador externo). As negociações são sobre as remunerações, e do lado do Governo há que ter a preocupação da despesa global gerada.

A frase que se tem tornado popular “dinheiro não é o problema” deve ser entendida como significando que apenas colocar mais dinheiro não resolve o problema, e que com as atuais verbas atribuídas ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) deve-se fazer muito melhor, incluindo a organização do trabalho médico. Pelo que se consegue perceber dos dois últimos anos, o reforço de verbas para o SNS já incluía, no pensamento do Governo, o necessário para realizar aumentos de remunerações (embora só no final se venha a concluir se foi suficiente ou não). Em qualquer caso, a ideia de que esta frase significa que se pode satisfazer todos os pedidos de aumento salarial não se deve instalar, porque não será verdade. 

Dito isto, tentemos dar alguma ordem à situação, para procurar perceber o que está em causa das negociações, em termos de funcionamento do SNS. 

O meu ponto de partida é que neste momento existe um número global de horas de trabalho fornecido pelos médicos, parte deles, aparentemente substancial, em horas de trabalho extraordinário. A massa salarial global será a soma das horas de trabalho de cada médico vezes o seu salário. 

Do lado dos sindicatos, há duas grandes exigências que destaco: o valor de salário mensal deve subir e o número de horas semanal de trabalho (baixar das 40h para as 35h semanais).

As duas restrições globais que existem são em número global de horas de trabalho médico a assegurar e de aumento de massa salarial (para este ano, mas também para os próximos).

Tomando a primeira restrição, há três fatores imediatos que reduzirão o número de horas disponíveis – redução das horas de trabalho extraordinário, a redução do horário semanal se for aceite a proposta dos sindicatos, e a reforma de médicos nos próximos anos. Estes três fatores, conjuntamente, se forem compensados por recrutamento de novos médicos para o SNS implicam um número elevado de novas contratações para o SNS que provavelmente não é possível no curto prazo (próximo(s) ano(s)), além de se ter de ver especialidade a especialidade. Assim sendo, para se continuar a manter a atividade assistencial do SNS será necessário manter um número elevado de horas em trabalho extraordinário, reorganizar o trabalho de modo a serem eventualmente necessárias menos horas, conseguir redirecionar procura de serviços do SNS para onde possa haver menor pressão sobre trabalho extraordinário. Esta observação gera implicações evidentes para o que deve estar em negociação: saber que objetivos atingir a prazo e definir que trajetória seguir nos próximos anos para se alcançar esses objetivos.

E se é claro que existe o objetivo das 35h de trabalho semanal, é menos claro se também deve estar presente o objetivo de 0 (zero) horas de trabalho extraordinário. É uma clarificação que gostaria de ver da parte dos sindicatos e do Governo. É que se o número de horas de trabalho extraordinário, por médico, não for 0 mas 150 horas, ou 200 horas ou 250 horas, então estão a defender horários de trabalho superiores às 35h semanais, sendo que o valor horário desse trabalho suplementar é uma forma de acrescer ao salário base dos médicos. Nesse caso, seria mais transparente assumir que o horário de trabalho é 40 horas e ter um aumento remuneratório superior (coloca outra vez nas 40 horas porque 250h anuais de trabalho extraordinário dividas por períodos de 6h de trabalho dá aproximadamente 42 semanas com um período de 6h de trabalho adicional por semana). E este sistema é, aparentemente, bastante próximo da proposta do Governo para os médicos que fazem serviço de urgência. Claro que se o objetivo for zero horas de trabalho extraordinário, é preciso trabalhar as outras componentes – reorganização de serviços, modulação da procura no que fizer sentido e sobretudo contratação de médicos.

Um segundo aspeto que deverá ser clarificado é o que significa tratamento igual de todos os médicos. Se a todos forem dadas as mesmas opções, e diferentes médicos tiverem diferentes escolhas temos um resultado equitativo, mesmo que não sejam escolhas iguais (porque os médicos não são iguais nas suas preferências em cada momento). Ou seja, a igualdade deve ser nas opções e nas escolhas. E o leque de opções oferecido pelo SNS pode facilmente depender das necessidades locais do SNS. Por exemplo, a majoração para quem seja contratado para trabalhar em zonas mais carenciadas de médicos deve terminar? É uma diferenciação que não está associada ao trabalho médico em si. Por outro lado, não me parece fazer muito sentido dizer que o trabalho de urgência é especialmente penoso e dizer que quem faz mais trabalho de urgência não deve ser compensado via salário por isso. Como parece ser óbvio que o trabalho de urgência é mais penoso, então deverá ser reconhecido em termos salariais. O que aliás já acontece implicitamente através de tempo de descanso. Não vejo porque seja preferível dar maior salário médio por hora através de menos horas semanais trabalhadas em vez de pagar mais por hora. E como provavelmente o custo pessoal (penosidade) do trabalho é crescente a taxas crescentes no número de horas trabalhadas, a definição do número de horas seguidas em serviço de urgência deveria ser limitado, em ciclos de 12h ou até menos. O caso das horas extraordinárias para assegurar em serviço de urgência é o que tem surgido mais destacado nestas negociações, com pagamento diferenciado, pode ser que existam outras situações de diferenciação adequada de salários de acordo com o tipo de trabalho realizado.

Provavelmente, mais difícil de aceitar será a diferenciação de acordo com a necessidade (por especialidade), que economicamente faria todo o sentido – se há falta de especialistas numa área, pagar mais a esses especialistas é uma forma de tentar atrair profissionais para essa área. Mas é provavelmente melhor deixar esse ajustamento mais fino para negociações entre as instituições que contratam e os profissionais.

Chegando aqui, o que retenho para acompanhar as negociações? Tentar perceber das propostas qual a posição de cada parte (dos dois sindicatos e do Governo) sobre como se realiza o ajustamento para garantir a capacidade assistencial, que combinação de horas extraordinárias que se tornam normais e de recrutamento de profissionais cada um defende, e em que prazo se pretende atingir o que for negociado.

Há naturalmente outros elementos a acompanhar, como o que sucede à massa salarial e à capacidade financeira do SNS de a sustentar de forma duradoura, o que sucede noutras questões como condições de trabalho, evolução ao longo do tempo e desenvolvimento profissional, etc. Esses elementos ficam para outros comentários.


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avaliação do primeiro ano da DE-SNS: 14 valores

Estando a Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) criada há cerca de um ano, sendo conhecido o Diretor Executivo também há cerca de um ano, é natural que existam exercícios de avaliação deste primeiro ano.

Para dar um pouco mais de organização a esse tipo de exercícios, é útil pensar em três áreas centrais dessa avaliação da DE-SNS: 1) liderança (40%); 2) eficiência na utilização dos recursos disponíveis (35%); e 3) melhoria do funcionamento do SNS, com reflexo na saúde dos residentes em Portugal (30%)

Na parte da liderança, os aspetos centrais a avaliar são, por um lado, se a DE-SNS conseguiu gerar uma visão clara, e objetivos que sejam realizáveis; se conseguiu gerar uma base de apoio para as transformações que necessita de realizar para concretizar essa visão.

Por outro lado, é importante perceber o grau de transparência das decisões tomadas, e os mecanismos que sustentam uma autoridade de liderança pela substância das decisões (e não ditada apenas pela hierarquia formal determinada oficialmente). Nas práticas de transparência inclui-se a comunicação clara e regular com as diferentes partes intervenientes no SNS. Inclui-se igualmente a tomada de decisões com integridade e respeitando princípios éticos.

Visão e objetivos: 18

Transparência e comunicação: 8

Na parte de eficiência, tem-se em conta o que conseguiu fazer com os recursos disponíveis, por um lado. E por outro lado, a capacidade de sustentar as operações necessárias com o orçamento disponível. Face à exiguidade de recursos neste primeiro ano, a DE-SNS fez o trabalho possível, embora fique a sensação (talvez injusta) que algo mais deveria ter sido conseguido.

Eficiência: 16 

Na parte de melhoria de funcionamento do SNS, a comparação a fazer não é com que seria o melhor funcionamento possível do SNS e sim com o que teria acontecido na ausência da DE-SNS. O ano foi dominado pela urgência das urgências. Apesar de provavelmente a ação ter ficado aquém daquilo que a própria DE-SNS, foi melhor ter tido a sua presença e intervenção do que não ter tido. 

A utilização de métricas sobre o acesso a cuidados de saúde e sobre melhoria do estado de saúde da população é provavelmente injusta neste primeiro ano, dado que na prática terão sido apenas 6 a 7 de meses de capacidade de intervenção mínima.

Como exemplo positivo, a ligeira tendência de melhoria do número de inscritos para cirurgia dentro do tempo de espera (supostamente) garantido continuou durante os primeiros 7 meses de 2023, num contexto mais doentes inscritos. Como exemplo negativo, a dificuldade em estabelecer um funcionamento normal e regular dos serviços de urgência. 

Melhoria de funcionamento do SNS: 15

Indicadores de acesso a cuidados de saúde 12|

De onde resulta uma nota final: 14, mas com componentes desequilibradas. 

Face às novas condições de funcionamento dadas pelos estatutos publicados recentemente, a expectativa é que no próximo ano a DE-SNS consiga chegar pelo menos ao 17, tendo para isso que melhorar sobretudo na componente de envolvimento e comunicação (interna) associada com a criação das ULS.


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Fórmulas mágicas – encontro nacional das USF

(#vaicorrertudobem)

Decorreu a 14 de outubro de 2023, integrada na 14ª Encontro Nacional das USF, a sessão “USF Modelo B e ULS 2.0: fórmulas mágicas”, onde tive a oportunidade de participar na discussão, numa sessão que contou também com António Taveira Gomes, Isabel Gonçalves, José Luis Biscaia e Jorge Seguro Sanches (e moderada por Isabel Clímaco).

O atual momento dos cuidados de saúde primários tem duas transformações que não são independentes, a integração vertical em ULS (as ULS 2.0, na designação feliz da USF-AN) e a universalização do modelo B das USF. Estas transformações trazem naturalmente diversas perguntas, para as quais não tenho resposta imediata, e que talvez venham a necessitar de “fórmulas mágicas”: a) Como estruturar a avaliação de desempenho e incentivos no novo contexto? Em particular, o que muda com a integração dentro de uma ULS – será que deverão ser considerados indicadores de desempenho para as USF que estejam associados com o contributo para o desempenho da própria ULS?

b) Que outras variantes de USF? Será que há margem, para dentro da ULS, serem testados modelos diferentes de USF, para responder a necessidades específicas. Aqui surge no topo da lista de prioridades o ter de dar resposta às utentes sem médico de família atribuído, um problema que tem uma concentração regional (na zona de Lisboa e Algarve, neste caso em menor grau). A organização interna das ULS das diferentes regiões, poderá, neste quadro, ser diferente. 

c) Qual o grau de preparação dos CSP para esta mudança organizacional? Isto é, será que se vai conseguir fazer as mudanças de funcionamento que esta criação das ULS pressupõe, ou será que se irá acabar por manter tudo na mesma, apenas com uma “roupa institucional” diferente. 

Centrei a minha discussão nesta última questão, por a considerar central para que depois se consiga dar resposta às duas outras perguntas. Para esta discussão, usei um inquérito realizado a profissionais de cuidados de saúde primários (em termos técnicos, uma amostra de conveniência, com 303 respostas à data de tratamento da informação, ou seja no dia anterior à sessão).

Usando ideias das teorias de gestão da mudança em organizações, dividir as questões em quadro grandes grupos:

Grupo 1: Informação, comunicação e envolvimento – clareza e transparência da comunicação e da informação partilhada, participação dos profissionais de saúde nos processos de decisão

Grupo 2: Liderança e gestão da mudança – alinhamento da cultura organizacional, papel da liderança 

Grupo 3: Recursos e competências – recursos necessários para realizar a mudança

Grupo 4: Resultados – expectativa de impacto e valor gerado 

(para os mais interessados, cada um destes grupos recebeu uma ponderação para um score global, dados respetivamente por 35% + 30% + 20% + 15%). A classificação vai de 1 pior a 5 melhor. Os gráficos seguintes apresentam o conjunto das respostas obtidas, por grupo temático. (no final do texto deixo as respostas a 4 das perguntas realizadas, uma por cada grupo temático).

Sem grande surpresa face ao que se vai sabendo, as respostas estão sobretudo do lado negativo. Essa parte corresponde à confirmação com dados. Mais interessante são as nuances que se encontram.

Resultou desta inquirição uma falta de dinâmica favorável às transformações que se pretendem realizar. Não há nenhuma área em que os CSP estão preparados para a mudança organizacional

Pretendida. A análise por grupo temática sugere que essa falta de dinâmica não resulta da falta de conhecimento das vantagens apontadas ao modelo de ULS ou ao que ele significa. As respostas mais positivas encontram-se precisamente na expectativa de impacto e de valor gerado pela transformação. Não há grande confiança no modelo, mas admitem-se alguns méritos. Também a falta de recursos necessários para realizar a mudança não é o aspeto mais negativo. A área em que os profissionais inquiridos se sentem mais negativos é a comunicação e a liderança, ou a sua falta. Sobretudo parece clara a falta de envolvimento e de participação, para que sintam que são parte ativa dessa transformação e não apenas alguém que obedece a quem manda. Este elemento de falta de envolvimento é tanto mais surpreendente quanto uma análise à situação de “segurança emocional”, isto é, os profissionais de saúde sentirem que têm possibilidade na sua unidade de discutirem temas quanto à atividade desenvolvida, mostra que há “confiança” em poder falar nesses espaços. 

Os inquiridos puderam adicionar observações próprias que entendessem adequadas. Vários (62 em 303) colocaram questões ou observações. Não cabendo aqui reproduzir ou apresentar todas as observações, escolhi um conjunto de frases representativo (pela frequência com que a mesma ideia foi expressa por diferentes pessoas):

“não vi, nem vejo, qualquer intenção ou ação prática para consulta dos profissionais de saúde dos CSprimários, no sentido de sugerirem medidas práticas para otimizar a prestação de cuidados de saúde”

“Ninguém sabe o que vai acontecer.”

“Modelo organizativo por excelência, porém apenas no papel face às diferentes culturas entre os dois níveis de cuidados.” 

“Como vai o processo respeitar a autonomia das USF?”

“Houve uma aposta total num modelo que até ao momento não parece ter demonstrado superioridade.”

Neste ponto, é claro que há a necessidade da DE-SNS, enquanto entidade que lidera este processo de transformação, (re)pensar a forma como interage com as unidades de saúde e com os seus profissionais que vão ser parte desta transformação. Claramente não basta dizer “o caminho é por aqui, e as vantagens são estas”. É preciso mais.

O que fazer então? (para que as ULS 2.0 funcionem)

Deixo duas sugestões de acção, não são obviamente as únicas, e provavelmente os profissionais de saúde terão maior imaginação de encontrar formas úteis de darem o seu contributo:

Acção 1: criar em cada ULS uma plataforma formal para os profissionais dos CSP expressarem a sua voz e influenciarem o processo de integração (criar um grupo representante, em ligação direta à gestão de topo da ULS, com papel de rever e dar feedback na definição e na aplicação da estratégia de integração)

Acção 2: “Diálogos internos” – discussão aberta, sem atas ou atribuição nominal de posições, de profissionais das várias unidades envolvidas, para discutir culturas das diferentes organizações, expectativas e receios face ao processo; produzir um conjunto de valores comuns a serem seguidos a todos os níveis; estadias em outras unidades

Claro que se pode colocar a pergunta de porquê esta preocupação com o envolvimento dos profissionais, e se não bastará dizer-lhes que vai ser tudo organizado em ULS, e que terão de ajustar-se. Esta visão mais mecânica, se surgir nalgum momento, cria um problema: com a criação de muitas ULS ao mesmo tempo, é provável que algumas corram muito bem, e que algumas corram mal. Não é possível prever e antecipar devidamente tudo o que possa suceder num processo desta natureza, em todos os lugares onde vai ocorrer. Daí a necessidade de ter os profissionais envolvidos de modo a que quando surgirem problemas tenham o empenho de os resolver localmente, de procurar as melhores soluções, em lugar de remeter para o “grau superior da hierarquia” para os resolver. Não se promover e garantir o envolvimento ativo dos profissionais de saúde significa que há o risco de nos primeiros meses de criação das novas ULS a DE-SNS ficar “afogada” em problemas para resolver, e em que a melhor solução precisa provavelmente de conhecimento local. 

Se a criação das ULS é uma das questões centrais no SNS neste momento, não se deve colocar de lado o que será a revisão do funcionamento, leia-se mecanismos de pagamento, associados às USF modelo B. Há igualmente aqui diversas perguntas relevantes: qual o balanço entre indicadores nacionais e contratualização intra-ULS que será encontrado? Será que a gestão de uma ULS pode definir ou propor internamente outros indicadores de desempenho, adequados aos seus objetivos? 

O pagamento por capitação (ajustada) ao nível da ULS significa mais risco (financeiro) assumido pela ULS,como se repercute na USF modelo B? Espera-se que o modelo por capitação tenha influência nas decisões da ULS, estimulando o interesse na prevenção, mas como se refletirá no modelo de pagamento? Um dos riscos do modelo ULS é criar desequilíbrios entre a área hospitalar a área dos cuidados de saúde primários (USF modelo B, depois da generalização da sua existência), uma preocupação com alguma razão de existir. Neste ponto, deixo a sugestão de criar um “fundo de poupança comum” – pagamento de “incentivos/prémios” com as poupanças resultantes de maior prevenção, a ser dividido entre as partes hospitalar e cuidados de saúde primários com regras previamente definidas.

Muito mais ficou, e fica, por tratar, em próximos textos irei retomar alguns dos temas.

Deixo agora as respostas a quatro das perguntas colocadas, uma por cada grupo temático analisado. As possibilidades de resposta vão de discordo completamente a concordo completamente, em 5 níveis. A ausência de um dos níveis significa que não houve qualquer resposta.


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Ideias soltas sobre as negociações entre sindicatos médicos e Governo

As negociações salariais entre os sindicatos médicos e o Governo (deveria ser o CEO do Serviço Nacional de Saúde (SNS) a conduzir?) têm sido um foco de tensão no SNS. Para quem segue há elementos que é difícil perceber, sendo que os vários aspetos que têm surgido na discussão pública terão impacto importante no funcionamento e nas contas do SNS. Exemplos de noticias sobre a evolução das negociações estão aqui(DN), aqui (FNAM) e aqui (jornal ECO). A posição da FNAM (em Setembro) está claramente expressa aqui.

Há três pontos que, neste momento, merecem atenção e onde deveria ser possível encontrar entendimento de princípio sobre o problema, para depois se procurar como avançar.

  1. A alteração do horário semana de trabalho de 40h para 35h implica um aumento significativo de despesa e uma necessidade de contratação para que o SNS continue a manter constante a capacidade assistencial. Um exemplo simples ajuda a ilustrar: se houver 1000 médicos a trabalhar 40h por semana, a passagem para 35h por semana significa a necessidade de recrutar 5000h/35 = 142,86 médicos. A despesa que trará dependerá do nível salarial a que ocorrer o recrutamento. Só essa alteração será um esforço financeiro considerável e é um aumento salarial por hora relevante (ainda que seja reposição de situação passada).
  2. A presunção de que é “natural” os serviços de urgência serem assegurados por um grande volume de trabalho em horas extraordinárias não é uma forma adequada de funcionamento dos serviços de urgência (aqui). Embora não seja clara a forma de resolver o problema, a solução terá provavelmente de incluir elementos diversos como equipas dedicadas (aqui) de forma a aumentar a produtividade (aumentar a capacidade de resolução de casos em condições de segurança para os doentes), recrutamento de profissionais – que se adicionam aos do ponto anterior, que eram apenas para manter a capacidade existente -, reformulação da forma de funcionamento da rede de hospitais com urgência aberta, e reforço de outras formas de primeiro contacto dos utentes com o SNS. É natural que algumas das soluções sejam objeto de negociação com os sindicatos. Não se pode esgotar aí a margem de gestão que cada organização (hospital, centro hospitalar ou Unidade Local de Saúde) necessita de ter para dar resposta às necessidades da população.
  3. Ainda sobre o funcionamento dos serviços de urgência, tem sido referido ao longo dos anos o esforço que requere aos profissionais de saúde (reconhecido com as regras sobre a possibilidade de deixar de prestar esse serviço a partir de certa idade do médico). É por isso razoável, a meu ver, a proposta de pagamento diferenciado a quem faz (mais) horas em serviço de urgência. Em geral, contemplar a flexibilidade de opções de envolvimento com a correspondente diferenciação salarial, se levar a mais opções de escolha para os profissionais de saúde dificilmente será negativo para estes (podem sempre ignorar as opções adicionais). Constatando-se que o SNS tem dificuldade em atrair profissionais (e em reter os seus profissionais atuais), reduzir a flexibilidade na apresentação de opções é favorecer as entidades, que em Portugal e além-fronteiras, conseguem fazer propostas mais flexíveis.

Não é apenas o aumento salarial que está em causa, e os seus efeitos em termos de despesa permanente. Também o princípio de ser necessária mais diversidade de opções deverá fazer parte da discussão. E reconhecer as implicações dos resultados das negociações em termos de necessidades de contratação de mais profissionais, o que não será nem fácil nem automático. Temos, assim, enquanto “observador externo”, diversos pontos a acompanhar nas negociações (salários- efeitos preço, necessidades de contratação- efeitos quantidade, diversidade de contratos – efeitos de “incentivos” / enquadramento salarial para atingir objetivos).


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sobre a proposta do Orçamento do Estado para 2024, primeiras impressões no campo da saúde

As primeiras impressões sobre a proposta para o Orçamento do Estado para 2024, deixadas no Público. Sem prejuízo de uma análise mais detalhada nos próximos dias, em termos de documentos complementares, seria interessante que a DE-SNS apresentasse nas próximas semanas o orçamento do SNS – isto é, como a verba destinada ao SNS, acrescida de outras fontes de receita, como as taxas moderadoras, será utilizada.

Além do que está previsto para a área da saúde, e olhando para um aspecto muito particular, a proposta de orçamento do estado dá importância, e bem, a uma categoria de despesa que tem o risco de ser muito importante nos próximos anos – os juros pagos na dívida pública. Não tendo Portugal qualquer controle sobre a taxa de juro que paga nas suas emissões de dívida pública, a forma mais eficaz de acautelar subidas das taxas de juro na dívida pública é reduzir a dívida pública. Assim, a prudência que possa haver quanto a este efeito é avisada e desejável, dada a instabilidade internacional que se vai ter nos próximos meses (anos?).

E para uma discussão mais detalhada, sessão online dia 27 de outubro de 2023, ver aqui. (adicionado 14h00, 11/11/2023)


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Urgências, emergência e caos 

Tem sido evidente o caos criado pela recusa dos médicos em realizarem mais horas de trabalho extraordinário do que aquele que é devido, afetando dessa forma o funcionamento dos serviços de urgência no Serviço Nacional de Saúde, e gerando a necessidade de uma resposta de emergência.

A resolução deste problema não será fácil nem imediato, e sobretudo a solução imediata que seja encontrada não será provavelmente uma solução duradoura.

Quem olhar apressadamente para as notícias que circulam, daria a sensação que bastaria (?) ao Governo reatar negociações e aceitar aumentos salariais mais elevados para que o problema se resolvesse. Dificilmente esta é uma solução, e o risco de na pressão deste momento não se tomarem as melhores decisões é grande.

Como ponto de partida, se grande parte das urgências está a ser assegurada com recurso a trabalho extraordinário, e se há um limite de 150 horas anuais para os médicos terem de fazer esse trabalho extraordinário, deveria ter sido previsto, com tempo, que a sobrecarga de horas extraordinárias não se poderia manter indefinidamente, nem deveria ser o modo de funcionamento normal. Esperar que haja sempre disponibilidade de profissionais para trabalharem mais e mais não é uma boa forma de gerir os serviços.

Assim, qualquer solução deve partir do princípio de que as 150 horas de anuais em trabalho extraordinário deverão ser um recurso a ser usado em condições especiais, e não como parte do funcionamento base.

Há então que procurar soluções de natureza duradoura, que no caso das urgências devem ter três linhas – a primeira linha, a procura de serviços de urgência é a que deve ser, ou deverão ser facultadas outras respostas de acesso que reduzam a pressão sobre os serviços de urgência? A pergunta é sobretudo retórica, pois a resposta tem sido dada ao longo dos anos, de ser necessário reorientar o primeiro ponto de acesso para que não seja a urgência hospitalar. Face à falta de médicos de família nalgumas áreas do país, com destaque para Lisboa, é necessário encontrar soluções temporárias – e até existem propostas de grupos do SNS para o fazer, mas depois encontram o muro interno do SNS decorrente da aliança da burocracia e da indiferença. Entre melhor e mais contratação de médicos de família e reorganização, ainda que temporária, para dar maior capacidade de resolução de casos, deveria estar parte da resposta. Ainda neste campo, seria bom saber se a experiência piloto na zona da Póvoa do Varzim / Vila do Conde está a ser bem sucedida (está aqui o anúncio, não encontrei informação sobre os resultados). 

A segunda linha é a, também frequentemente falada, criação de equipas de urgência dedicadas. Mais uma vez, aqui não se percebe bem qual o argumento técnico para não serem utilizadas, e não creio que fosse especialmente complicado definir e colocar em ação com rapidez, usando a experiência já existente nalguns hospitais. E dando depois o tempo necessário para uma estruturação do recrutamento e treino de mais equipas de forma mais generalizada. Em Janeiro de 2023, essa possibilidade foi colocada, mas não teve aparentemente sequência em termos de ação. Estas equipas terão maior capacidade de resolução, e são potencialmente menos perturbadoras da atividade normal do hospital.

A terceira linha de intervenção imediata, o tão falado funcionamento em rede, coordenado pela DE-SNS. A este respeito, o comunicado da DE-SNS, de 07 de outubro de 2023, disponível aqui, é lacónico, e não aparenta ter encontrado soluções concretas. Ou se as houve, não foram anunciadas neste comunicado. A intervenção da DE-SNS parece ser mais uma de “magistério de influência” do que “decisão executiva”. Mas mesmo sem os (famosos) estatutos (“missing in action”, não se sabe se realmente existem ou não, e se sim o que serão), seria útil que houvesse um sinal político de força à DE-SNS para tomar decisões executivas de coordenação da rede.

No meio desta complexidade, será de evitar criar mais problemas. Aceitar, como parece ter sido o caso segundo os meios de comunicação social, que o horário base dos médicos passa de 40h para 35h por semana significa, aritmeticamente, a necessária de recrutar 1/8 face ao existente de médicos hoje, só para manter o que está a ser feito. Não parece que possa ser realizável nas próximas semanas. A menos que o que um diz não é o que outro ouve (ou quer ouvir). Já agora seria interessante ter a atualização da informação no portal da transparência do SNS sobre as horas extraordinárias, em que acordo com a informação disponível no portal a última atualização foi feita a 26 de setembro de 2023 16:00, mas os dados mais recentes referem-se desde há muito tempo a 2017 (será que a rotina de atualização automática dos dados não está ela própria atualizada?)A discussão da semana de trabalho terá de ser feita num contexto de discussão para tempo longo. E se é certo que as negociações entre sindicatos e Governo terão de ser retomadas (deveria ser a DE-SNS a conduzir as negociações com os profissionais do SNS?), pelo menos que cada parte siga uma regras simples “só prometer o que pode cumprir, cumprir o que prometer”.


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Decisões de triagem na urgência e a importância de chegar no momento certo

Aviso: este não é um texto sobre a atual crise das urgências e sim sobre aspectos do sistema de triagem nas urgências que poderá não ser conhecido, apesar de ter efeitos sobre os doentes que procuram o serviço de urgência.

A European Association of Health Economics tem a decorrer um seminário europeu, todas as semanas, terça-feira à hora de almoço (12h30 – 13h30 de Portugal). 

Na passada terça-feira, 03 de outubro, Simone Ferro, da Università degli Studi di Milano Statale, apresentou um trabalho (conjunto com Chiara Serra) sobre o funcionamento das urgências, em concreto sobre o processo de triagem. Usando dados de episódios de 9 hospitais italianos, encontrou um efeito em que a triagem tem mais probabilidade de atribuir uma situação de menor prioridade no início dos turnos dos profissionais que estão a fazer triagem. Ao longo do tempo do turno, vão-se tornando menos exigentes para atribuir maior prioridade. Este efeito acaba por ter consequências, pois tendo menor prioridade não só esperam mais como são tratados como tendo condições menos graves. Acabam por regressar ao hospital mais frequentemente nos meses que se seguem. A triagem inicial, segundo os autores, influencia também a atenção que os médicos dão a esses doentes.

Os autores não distinguem se este efeito se deve a cansaço criado pelo tempo que se está no turno, se decorre do cansaço de ver um número crescente de casos ao longo do turno, ou se resulta da comparação de cada caso em triagem com os recentemente observados.

Não sei se este efeito também está presente, ou não, nos hospitais portugueses, e seria bom conhecer, pois ter melhor ou pior tratamento não deverá ser dependente do momento a que se chega ao serviço. A existir este efeito, significa que alguns casos poderão ser erradamente classificados como menos graves, ou seja, verdes e azuis, os tais que se quer deixar de atender nos hospitais. Para aperfeiçoar o processo de admissão à urgência hospitalar, além de rever o algoritmo de triagem, talvez seja relevante conhecer se este tipo de efeitos também existe. A informação necessária, recolhida por rotina nas admissões de episódio de urgência, provavelmente é já recolhida, mas não usada para gerar conhecimento que motive mudanças no funcionamento dos serviços. Fica a sugestão de que algum centro hospitalar com serviços de urgência com grande afluência faça esta, e eventualmente, outras “perguntas” aos dados que tem, e consiga depois ter a capacidade de aproveitar esse conhecimento para melhorar o serviço que presta à população. 

Neste caso, consoante o motivo para a fadiga durante o processo de triagem, se este efeito estiver presente, diferentes estratégias podem ser adoptadas, desde turnos mais curtos a pausas coordenadas dentro das equipas, a maior apoio de instrumentos que contrabalancem o efeito.