Apesar de ser necessário agora dar algum tempo para que sejam pensadas, discutidas e apresentadas propostas de solução, quer para os problemas pontuais de curto prazo quer para os problemas estruturais de longo prazo, duas das ideias que têm sido circuladas merecem desde logo um comentário.
Primeiro, a tentação da comissão nomeada pela Ministra da Saúde para entrar na regulação de preços (dos serviços prestados pelos tarefeiros). De forma sucinta, num mercado em funcionamento, com ajustamento de preços para que se consiga oferta (capacidade) para satisfazer a procura (necessidades), utilizar a imposição de preços máximos terá como efeitos a) pagar menos às empresas de prestação de serviços; b) ter mais situações de urgências fechadas por falta de capacidade para as manter abertas. Resolver problemas de falta de oferta através de limitação de preços que essa oferta pode receber significa apenas que haverá capacidade / oferta que deixará de estar disponível. Se os preços mais elevados pagos nalguns casos resultaram da necessidade de pagar mais para convencer profissionais de saúde a prestar esse serviço, limitar esse pagamento garante que não haverá essa capacidade. (este argumento falha se as empresas de prestação de serviços estiverem a exercer poder de mercado, ou se os gestores das entidades que contratam forem incompetentes na negociação – se for um destes ou ambos os casos que a comissão teve em mente, então deverá disponibilizar a informação que sustenta essa sua posição). Se os preços elevados resultam da interação entre procura e oferta, então a introdução de preços máximos vai resultar apenas em mais interrupção de serviços.
A falta de capacidade de oferta tem que ser resolvida através de aumentos de oferta ou de redução da procura. Como não é razoável pensar-se que rapidamente se consegue baixar a utilização de urgências por parte da população, então a preocupação deverá ser a de aumentar a oferta. Toda a lógica económica sugere fortemente que limitar preços não é uma forma de aumentar a oferta!
Segundo, foi referido por representantes do Ministério da Saúde que parte da solução estrutural virá a estar no estatuto do SNS, e ouve em pelo menos um caso a referência à ideia da Direção Executiva do SNS. Sobre uma análise global do estatuto do SNS proposta em Outubro de 2021 (não consegui encontrar uma versão atualizada), há um comentário detalhado aqui. Mas relevante para esta discussão sobre o potencial que a direção executivo do SNS, tal como prevista pelo Governo, tem para resolver de forma estrutural é olhar para três artigos do estatuto do SNS: Artº 9 – fala em funcionamento em rede, planeamento estratégico, emitir normas e monitorar – como funções, entre outras, da Direção Executiva do SNS. Do Art 27º também dito que esta direção executiva tratará de fazer inquéritos de satisfação a utentes e a profissionais (calculo que seja contratar quem faça esses inquéritos). No art 14º-3, é dito que a “política de recursos humanos do SNS, baseada num plano plurianual de recursos humanos e definida pelo membro do Governo responsável pela área da saúde”. Daqui se depreende que NÃO é a direção executiva do SNS que terá um papel nesse aspecto. O Art 90º-2 estabelece que o pagamento a unidades do SNS é feito através de contratos programa, programas plurianuais a celebrar entre ACSS, ARS e as unidades do SNS, e estes contratos programa são autorizados pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério das Finanças. E mais uma vez não há aqui qualquer papel da Direção Executiva. Ou seja, num problema que envolve pagamentos e gestão de recursos humanos, o estatuto do SNS prevê que cada aspecto seja tratado por entidades diferentes, e nenhuma delas é a Direção Executiva do SNS, que se limitará a observar, monitorizar e emitir normas, além de perguntar a utentes e a profissionais se estão satisfeitos (repito para acentuar que com esta estrutura não consigo perceber como é que esta Direção Executiva do SNS irá resolver o problema estrutural em causa).
Embora não falado (ainda, pelo menos), no estatuto do SNS existe um elemento prometedor – dedicação plena com uma carta de compromisso com metas e objetivos (ou seja, pagamento de acordo com o desempenho), embora os detalhes venham a ser cruciais (e existe a possibilidade de fazer mal).
Outras soluções que têm sido, e que virão certamente a ser discutidas, a) equipas dedicadas nas urgências (com pagamentos adequados) – reforço da oferta; b) maior autonomia dos hospitais para contratar – reforço da oferta; c) ter estratégias de recrutamento a longo prazo – reforço a prazo; d) redução da procura (de urgências), reduzindo as falsas urgências (sobre o que são falsas urgências, ver este post para se ter uma outra visão e porque não será tão fácil assim, e porque por vezes não se está a olhar da melhor forma); e) rever as exigências de equipas de urgência de acordo também com a procura que existe em cada momento do dia (intensidade e tipologia); f) partilha de equipas para urgências entre diferentes hospitais (serem os profissionais de saúde a deslocarem-se para garantir a composição das equipas). E provavelmente há ainda mais outras ideias a serem exploradas.
Duas curiosidades finais: que lições podemos retirar da organização na ARS Norte para as outras ARS? o que sucedeu ao Grupo de Apoio Técnico à implementação das Políticas de Saúde (GAPS), com um grupo de cuidados hospitalares.
Sem a preocupação de ser exaustivo, sugestões: debate online – como superar a crise das urgências? (via LinkedIn) e declarações ao observador do presidente da comissão para as urgências de obstetrícia.
Sobre o trabalho da comissão Ayres de Campos, aqui (a avançar no que me parece ser o bom sentido, de reorganizar a oferta, incluindo concentração de serviços). [atualizado 24/06/2022]
Sobre proposta de solução, por Miguel Soares de Oliveira, no Observador (aqui) [atualizado 04/07/2022]
(nota: se houver sugestões adicionais, irei adicionando à lista)